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Sri Lanka

As milenares Cavernas de Dambulla e os primórdios do budismo no Sri Lanka

As grutas ou cavernas de Dambulla (Dambulla caves) são dos lugares mais ancestrais e belos do budismo no Sri Lanka. Quem se interessa por religião, por budismo especificamente, ou simplesmente por arte e História cultural humanas precisa conhecer.

Estamos aqui num lugar dos primórdios do budismo no Sri Lanka, dos séculos I e II a.C. À época, o Sri Lanka era habitado por diversos grupos indígenas. Estavam misturados aos tâmil, vindos do sul da Índia, como também a uma outra gente — os chamados cingaleses — que havia migrado desde o norte da Índia. Praticava-se aqui o animismo, com culto às árvores, à natureza e aos ancestrais, e influências hindus ou proto-budistas aqui e ali.

Por volta do ano 247 a.C., o grande imperador indiano Ashoka (reino 268-232 a.C.), que havia se convertido ao budismo, então envia para cá o seu filho Mahinda como missionário. O reino cingalês de Anuradhapura, à época o maior desta ilha, acaba por abraçar a nova religião — numa história que eu ainda vos contarei em maior detalhe na visita a Anuradhapura, em breve.

Estas cavernas, utilizadas desde a pré-história, transformam-se em mosteiro, o que continuam sendo até hoje.

Erigem-se imagens de Buda, e fazem pinturas antigas que nos séculos XVII e XVIII seriam atualizadas a mando do rei de Kandy. São o que você ainda encontra aqui, neste lugar tombado pela UNESCO como Patrimônio Mundial da Humanidade.

Ilustração budista nas Cavernas de Dambulla, Sri Lanka
Pinturas antigas no teto da caverna, coma a figura do Buda em meditação, rodeado mas imperturbado pelos vários espíritos algo agitados ao fundo.
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Esta é apenas uma das várias grutas nestas Cavernas de Dambulla, dos mais antigos santuários budistas que há no Sri Lanka (e, por conseguinte, no mundo).

Dambulla em mais detalhes

Estamos 70 Km ao norte da cidade de Kandy, e a caminho de Sigiriya. É um ótimo percurso no qual se deter para fazer uma parada curta aqui. A visita às Cavernas de Dambulla dura pouco mais de 1h no total.

Há um total de cinco grutas decoradas, todas elas são adjacentes numa área do mosteiro, e datadas da Antiguidade.

Não imagine algo completamente no meio da selva. Ao longo dos últimos dois milênios, os monges budistas construíram uma certa estrutura aqui — um mosteiro pegado nas rochas.

Mosteiro de Dambulla no Sri Lanka
O aspecto do lugar é este, de mosteiro, com as entradas para as cavernas aqui à esquerda.

Estas entradas e arcadas brancas datam de 1938. Antes, a coisa era mais básica.

A História conta que estas cavernas pré-históricas foram transformadas em templos a mando do rei Valagamba (r. 103 a.C. e depois 89-77 a.C.) por gratidão a monges budistas que o acolheram na hora do aperto.

Os monges, na sua tradição ascética, já buscavam cavernas como lugares de retiro. Ali podiam meditar quietos e isolados das pulsões da sociedade. 

Quando a capital Anuradhapura é invadida por tâmils do sul da Índia, Valagamba estava no trono há apenas cinco meses. Tinha ocorrido um levante contra ele, de que os invasores se aproveitaram. Valagamba acabou perdendo em batalha contra os tâmil e fugiu. Dizem até que a rainha desceu da carroça na fuga, para que essa ficasse mais leve e o rei conseguisse escapar.

Mapa Dambulla no Sri Lanka
Eis ali Dambulla no Sri Lanka. Anuradhapura, a principal cidade à época, fica mais ao norte. Note como o sul da Índia fica pertinho.

Por 14 anos o rei viveu em exílio, acolhido pelos monges. Os comandantes tâmil que tomaram o poder, enquanto isso, acabaram eliminando uns aos outros em sucessão, cada qual querendo o poder para si.

Dizem que o Sri Lanka jamais conheceu tamanha miséria como naquele período, quando uma imensa seca também arruinou as plantações.

Em 89 a.C., Valagamba consegue recuperar seu trono derrotando os últimos tâmil — e até localizou a rainha Somadevi de volta.

Foi então que, temendo pelo futuro, o rei Valagamba ordenou que os ensinamentos budistas — transmitidos oralmente por séculos desde c. 450 a.C. — fossem finalmente registrados por escrito, o que viria a acontecer no Quarto Concílio Budista em 29 a.C. Fez-se ali o chamado Cânone Pali (nome da língua em que foi escrito), a escritura budista mais antiga de todas.

Não foi muito diferente do cristianismo ou do islã, onde os ensinamentos também se deram inicialmente por via oral, e depois é que os aprendizes escreveram de memória.

Em retribuição à acolhida, o rei Valagamba reconheceu estas cavernas nas proximidades da cidadezinha de Dambulla como um templo, e honrou os monges. Fizeram ilustrações, mas as que se encontram aqui hoje são quase todas dos séculos XVII ou XVIII, quando os reis budistas em Kandy ordenaram revitalizar o lugar.

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Buda deitado sob as rochas pintadas no interior da caverna.
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Os detalhes das ilustrações, quase todas dos séculos XVII ou XVIII, por cima de outras mais antigas.
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Numa das cavernas de Dambulla.

A figura do Buda deitado, que desperta muita curiosidade de ocidentais, não é necessariamente ele dormindo.

Originalmente, simboliza o momento da sua morte, quando com cerca de 80 anos o Buda histórico, Sidarta Gautama, deixou seu corpo físico para atingir o chamado parinirvana. Esse termo sânscrito descreve a “passagem” de alguém que já havia alcançado a iluminação em vida.

Note-o, contudo, muito tranquilo. Os budistas não creem na morte. Como diria muito tempo depois o Beatle convertido George Harrison, “A morte não existe, exceto no sentido físico.” Daí o Buda deitado ter depois se tornado um símbolo de serenidade.

Gandara Morte de Buda
O falecimento de Buda aos 80 anos, retratado em arte Gandara do século II ou III d.C. Gandara foi um reino da Antiguidade na região do atual Paquistão, que era budista e foi influenciado pela arte grega trazida pelos exércitos de Alexandre, o Grande. É quando surgem as realistas esculturas budistas que conhecemos, a partir do que ficou conhecido como greco-budismo. (Eu deixo a critério de vocês avaliar se essa influência, depois, também não teria ido no sentido contrário para inspirar as ilustrações medievais e renascentistas das reações à morte ou ressurreição de Cristo. Olhe a imagem de novo.)

São vários Budas deitados aqui em Dambulla, em meio a um total de 153 imagens nas cavernas. Afora o próprio Buda, há figuras de alguns reis cingaleses daqui e também de deidades hindus. 

Como assim deidades hindus no templo budista??, pode se perguntar você, muito acadêmico. É que sempre houve certa mistura. Ainda que interpretações teológicas distintas tenham sempre sido razão de conflitos em toda a humanidade, no geral a maioria dos hindus vê Buda como parte do seu panteão, enquanto que os budistas — sobretudo aqui no Sul e Sudeste Asiático — honram também deidades como Vishnu ou Ganesha.

Essa divisão rígida quase cartesiana entre budismo e hinduísmo é imaginada, fruto dos mais ortodoxos ou do racionalismo ocidental de pôr tudo numa caixinha e categorizar diferenças que nem sempre correspondem ao mundo real. 

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Note ali as figuras de Vishnu e Shiva por detrás dos tios, aqui em Dambulla.
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Escultura antiga de um dos reis cingaleses no interior das cavernas.
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As cavernas de Dambulla são assim. Não são muito profundas — não têm nada a ver com cavernas de trilha, dessas onde se caminha um tempo com uma lanterna. Os interiores aqui são modestamente iluminados, e relativamente curtos, como salões internos na rocha.
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Você entra e sai de vários saguões, com 5 principais lado a lado.

Você vê múltiplos Budas porque esta é uma tradição, tanto teológica quanto ritual.

Os budistas têm muito forte esta crença de que a palavra sagrada escrita, o mantra cantado, ou mesmo a figura de Buda espantam o mal. Nas minhas viagens à Mongólia e ao Butão, eu mostrei a tradição lá de se rodar umas roletas com mantra escrito nelas para aportar boa energia.

Afora isso, há a crença de que houve não somente um, mas muitos Budas em outras eras, ou no universo afora. Algumas tradições chegam a dizer que pode haver, inclusive, vários Budas em vida ao mesmo tempo (você pode ler mais sobre os detalhes do budismo no Sri Lanka nesse post).

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Budas num altar com flores nas Cavernas de Dambulla. (A cobra sobre a cabeça do Buda sentado é a naga sagrada que o protegeu durante a meditação.)
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Muitos Budas.
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Este mosteiro das Cavernas de Dambulla fica assim, numa colina 160m acima das planícies ao redor.

Visitando as Cavernas de Dambulla

Este mosteiro fica próximo da cidade de Dambulla, e cerca de 70 Km a norte de Kandy. É um lugar ideal para se visitar como uma parada no trajeto entre Kandy e Sigiriya — duas das paragens obrigatórias neste chamado Triângulo Cultural do Sri Lanka.

Dambulla, com seus 75 mil habitantes, é uma cidade moderna (de Terceiro Mundo) sem grandes atrativos. Nunca vi quem recomendasse se instalar aqui. Ademais, a visita a estas cavernas é relativamente curta: você não precisa dormir aqui para isso.

Qualquer motorista em Kandy ou Sigiriya negocia um transfer com você entre uma cidade e outra, normalmente com Dambulla e possivelmente outras paradas pelo caminho. Sai na casa de USD 40. (8.000 rúpias à ocasião. Se quiser o WhatsApp do motorista que me levou, me escreva no @maironpelomundo no Facebook ou Instagram.)

O bilhete de entrada para visitar as Cavernas de Dambulla sai por aproximadamente USD 8 (pagando sempre o equivalente em rúpias srilanquesas, nunca em dólares). Se você quiser mais, próximo há também o chamado Templo Dourado (Golden Temple), que tem um ingresso à parte por USD 10.

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A estrada nestas partes do Sri Lanka é assim. (Sim, aqui se dirige na mão inglesa, pois o país foi colônia britânica.)
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Você passa pelo lado das verdejantes plantações rasteiras de arroz…
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…até chegar a esta entrada para as Cavernas de Dambulla. Note que há muitas entradas, mas esta é a da bilheteria, senão você terá que dar uma volta.
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O ingresso para estrangeiros por 1.500 rúpias. Como a moeda srilanquesa é volátil, seu valor nominal se altera, mas costuma corresponder a USD 8.
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Você terá esta escadaria diante de si.

Eu levaria um total de 1h em visita a estas Cavernas de Dambulla: 20 minutos subindo a escadaria, 30 minutos lá em cima na visita propriamente dita, e 10 minutos descendo.

Subi sozinho, o que sempre torna a visita mais rápida. Se você for papeando com alguém ou quiser tirar fotos em mil poses, calcule mais tempo. A subida é menos cansativa do que se imagina. Eu sempre chego achando que a subida será mais difícil do que ela no fim se revela, mas talvez seja melhor assim do que o contrário.

Uns monges de robe alaranjado desciam de chinelo, vindo no sentindo contrário, ao que eu adentrei a mata com som de natureza.

A escadaria atravessa um ambiente de rochas e plantas. Por ali, vi a lótus roxa que alguém deixou em cima do parapeito, e mais adiante eu encontraria um macaco comendo frutas. Há alguns deles por aqui, e se recomendam os cuidados de sempre para eles não roubarem algum objeto seu.

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Os monges que por mim passaram.
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E a lótus que alguém deixou.
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O caminho.
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As vistas vão ficando magníficas…
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Você encontra alguns poucos vendedores pelo trajeto oferecendo rochas e lembranças.
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Quase chegando lá. Faltava ainda mais um pouco.
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O macaco.

No sentindo contrário, descendo do mosteiro, vinha um rapaz srilanquês de seus 25 anos com uma bandeja de frutas em mãos. Não é raro que os fieis façam oferendas e, se não as deixam lá, compartilham-nas depois com as pessoas (e os animais), mesmo estranhos. Ofereceu-me gentilmente.

Apropriei-me de uns pedaços de manga madura que me melaram minha mão daquele jeito habitual, com o sumo amarelo e doce que escorre. O macaco olhava mesmo já de posse de uma maçã e de uma banana — mais guloso que eu.

Quando lhe joguei as cascas dos pedaços de manga ali perto, ele interrompeu a refeição, foi buscar o resto de manga para já tê-lo consigo, e então continuou com a maçã. (Marx deveria ter visto que talvez haja uma gana animalesca por detrás da acumulação capitalista.)

Segui escada acima contemplando a paisagem, até chegar ao amplo espaço aberto onde se deixam os sapatos. É um pátio pavimentado onde há também uns poucos ambulantes.

Costuma ser de bom tom — e esperado — deixar uma gorjeta de 20, 50 ou 100 rúpias a quem guarda os sapatos, então é sempre útil ter dessas notas pequenas consigo. Se seu pé for sensível, conserve as meias em dias de sol, pois a rocha esquenta pra danar.

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A área aonde se chega cá em cima, após uns 20 minutos de escadaria.
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Nesta área há um lugar onde deixar os calçados. Você só entra na área das Cavernas de Dambulla descalços, ou no máximo de meias, como é de praxe em templos budistas.
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A entrada para as Cavernas de Dambulla, e o lugar onde checam seu ingresso.
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A vista por detrás das portas para a área interna do mosteiro.

As Cavernas de Dambulla estão logo ali, e você as visita em coisa de meia hora. Esse chão aí do pátio interno esquenta, embora haja também áreas molhadas por uma pequenina queda d’água saída das rochas. Fica a seu critério se prefere molhar os pés ou ir de meia (ou molhar as meias, se você se sentir radical).

Embora haja turistas — como também ofertas de guias por preços a serem negociados — o ambiente é pacato e convida à contemplação.

Há monges aqui e ali, como há também macacos a circular em busca de algo, mas impera a tranquilidade imposta pelos ventos nas árvores, e há aquela sensação de paz que se tem quando se está em lugares altos circundados pela natureza.

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O pátio interno do mosteiro das Cavernas de Dambulla.
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Macacos e gente daqui também.
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Monges de robe laranja, e srilanqueses vestidos de branco — cor habitual em visita aos templos budistas aqui no Sri Lanka, como sinal de pureza.
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Sob a sombra de uma grande árvore Bodhi, uma Ficus religiosa, espécie sob a qual o Buda alcançou a iluminação. Elas aqui são sagradas.
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No pátio das Cavernas de Dambulla.

Os interiores das cavernas eu já lhes mostrei. Você as adentra uma a uma, visitando uma porta após a outra. Lá, as imagens estão quietas, olhando para você num silêncio que só é interrompido quando alguém que se aproxima.

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As imagens de Buda no interior das Cavernas de Dambulla, Sri Lanka.
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O Buda deitado, e outros em meditação. Note também as paredes e o teto pintados.

Você ali circula um tempo até tomar seu caminho e deixar estas cavernas milenares para trás.

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O chamado Templo Dourado (Golden Temple) do outro lado. Tem um ingresso separado, e é um templo mais convencional. Fica a seu critério.
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Sigiriya nos aguarda, neste Sri Lanka verde aí adentro. 

Pé na estrada.

Mairon Giovani
Cidadão do mundo e viajante independente. Gosta de cultura, risadas, e comida bem feita. Não acha que viajar sozinho seja tão assustador quanto costumam imaginar, e se joga com frequência em novos ambientes. Crê que um país deixa de ser um mero lugar no mapa a partir do momento em que você o conhece e vive experiências com as pessoas de lá.

One thought on “As milenares Cavernas de Dambulla e os primórdios do budismo no Sri Lanka

  1. Lindo Mosteiro: belo pátio, muito verde, árvores frondosas, e respira mesmo muita paz. Belas paragens.
    Haja escadas. Jesus.
    O interior das cavernas é precioso. Raras belezas , cheias de cor, de graça, pura arte e cultura a serviço da espiritualidade. Belissimas imagens. Paredes, tetos, portas artisticamente decoradas, com fino gosto.
    Parece um mundo paralelo de paz, tranquilidade e elevação. Belíssimo passeio.
    Linda a entrada para o Templo Dourado. Esse buda dourado é soberbo.
    Lindas também as casinhas brancas de arcadas. Uma graça.
    O ambiente é muito agradável.
    Só não agradam aqui à sua amiga as cavernas, pois não sou amiga de tocas nem buracos hahaha , nem os macacos ladrões, por já ter sido vítima de tentativa de furto por um deles hahaha. No mais tudo lindo.
    Valeu, amigo viajante.
    Gostando muito do Sri Lanka

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