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Sri Lanka

Templo Hindu e os Tâmil no Sri Lanka: Muthu Mariamman

Eis uma das religiões mais ancestrais da humanidade — talvez a mais ancestral de todas ainda em atividade —, nesta colcha de retalhos que convencionamos chamar de “hinduísmo”.

Qualquer indiano lhe dirá sem pestanejar que “hinduísmo” é um nome bastante geral, designando no máximo uma família de religiões. Acabou sendo usado por ocidentais para descrever a diversidade de espiritualidades aqui do Sul da Ásia.

Os tâmil, povo presente tanto no sul da Índia quanto no norte aqui do Sri Lanka, fazem parte desse colorido. Têm as suas divindades, estética, vestuário e rituais distintos dos outros. Uma das mais cultuadas é precisamente Muthu Mariamman, literalmente a “pérola” Mariamman, deusa da chuva. Num sentido poético, são os pingos da água divina do céu que desde sempre trouxe a vida a este agrário povo sul-asiático.

Neste regime climático das monções (as fortes chuvas anuais que governam a agricultura desta região do Oriente), a oração para que venham as águas — pedindo para chover, mas chover de mansinho, como cantaram Gordurinha e Nelinho na sua Súplica Cearense — é parte fundamental da identidade religiosa e cultural dos tâmil.

Bem-vindos, portanto, a esta breve visita a um templo hindu tâmil no Sri Lanka, para conhecer algo da sua religiosidade e da sua História nestas bandas.

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Diante do coloridíssimo templo hindu a Muthu Mariamman, próximo a Kandy, no Sri Lanka.

O povo tâmil e sua religião

Os tâmil (ou tâmeis, ou tâmiles, ou tâmis, ou tâmules — todos estes nomes horríveis para designar um povo bonito) são cerca de 77 milhões de pessoas, um população maior que a de países inteiros. Estão concentrados sobretudo no estado sul-indiano de Tamil Nadu (69 milhões) e no norte aqui no Sri Lanka (3 milhões), afora os demais espalhados pela Índia e mundo afora.

Povo Tamil no Mapa India e Sri Lanka
Ali vive a maioria dos 77 milhões de tâmil. Falam a língua tâmil, e são em geral hindus.

Eles são de um moreno jambo que chega às vezes à pele negra retinta, somada a cabelos ondulados e olhos escuros ou cor-de-mel que podem enfeitiçar.

Fazem parte da diversidade humana, para confundir aqueles cujos olhos só veem preto ou branco, sem enxergar nem tons nem colorido.

A sua língua, o tâmil, é considerada uma das línguas clássicas da Índia — é tão vetusta quanto o sânscrito ou o grego antigo — e talvez seja a mais falada língua clássica do mundo ainda em pleno uso desde a Antiguidade.

O tâmil não pertence à família indo-europeia, mas à família dravídica de línguas do Sul da Ásia. Conta com o seu próprio alfabeto que, distinto daquele do cingalês, dá um nó na sua mente com os símbolos estranhos ao visitante. Viva a diversidade.  

Foto povo tamil
Gente tâmil. (Foto de Staffan Widstrand.)

Os tâmil guardam consigo até hoje muitos elementos milenares de religião popular pré-védica — isto é, anterior aos Vedas, as escrituras hindus dos idos de 1500-900 a.C. Alguns observam que aqueles são também elementos de um maior respeito ao feminino, de antes de as religiões vinculadas à Terra terem sido, em grande medida, substituídas por religiões predominantemente masculinas (o judaísmo, o cristianismo, o islã, e o próprio budismo). 

Os Vedas consolidaram, em sânscrito, as revelações que já vinham sendo transmitidas oralmente há séculos, registrando mantras, rituais, e contos dos deuses. A eles se somam as obras literárias (tidas como sagradas porém arte humana, não revelação), como o Bhagavad Gita.  É onde se destacam as divindades hindus mais famosas: Brahma (criador), Vishnu (mantenedor), e Shiva (renovador), que alguns aí interpretam como sendo três faces de um só Deus. A interpretação ali é relativamente livre, e os tâmil em geral lhes têm grande respeito.

Porém, entre os tâmil é Mariamman — que, literalmente, quer dizer algo como a Mãe Chuva —aquela que mais encontra templos hindus dedicados a si.

Todas as religiões do mundo, afinal, partem de experiências regionais das pessoas com seu ambiente: sejam as parábolas sobre o deserto e os cordeiros nas religiões abraâmicas, a relação dos pescadores com Iemanjá nas religiões afro-brasileiras, ou aquela dos tâmil com a chuva. Um ateu dará explicações antropológicas, e um ecumênico dirá que são as muitas manifestações do divino.

Shiva em Coimbatore
Imensa imagem do deus Shiva em Coimbatore, Índia. Inaugurada em 2017 (depois da minha passagem pela cidade, então preciso retornar) no estado de Tamil Nadu, onde vive a maioria dos tâmil.
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Mulheres tâmil em vistosas vestes e flores no cabelo, em estilo característico, no interior do templo hindu a Muthu Mariamman (a “pérola mãe chuva”), no Sri Lanka.
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O teto pintado como o céu azul de onde vem a chuva, neste templo a Muthu Mariamman perto da cidade de Kandy.

Visitando o templo hindu a Muthu Mariamman no Sri Lanka

Você encontrará templos a Mariamman aqui no Sri Lanka como também na Índia, na Malásia e em Singapura. Todos esses são lugares da Ásia onde os retintos indianos tendem a ser de origem tâmil.

Estes templos parecem-se caracteristicamente com colinas coloridas e repletas de personagens. Essa arquitetura representa as esferas celestes do Monte Meru, tradicional morada divina nos mitos indianos. É uma arquitetura típica do sul da Índia, que você dificilmente vê no norte. Os tâmil a trouxeram cá ao Sri Lanka ainda na Antiguidade, quando começaram a migrar para esta ilha.

Alguns de vocês talvez estejam então se perguntando: Cadê uma figura aí dessa deusa Mariamman?

Eu vou mostrar, mas preciso fazer observar que esse costume de se ter grandes imagens sacras é algo greco-romano e, depois, renascentista ocidental.

Os budistas o abraçaram por influência helênica com as invasões de Alexandre (como pontuei na postagem anterior nas Cavernas de Dambulla), e os católicos se especializaram em esculpir suas figuras sacras, mas se você observar nas demais religiões do mundo — o Islã, a religião tradicional chinesa, o taoismo, as dos índios — você não verá tanto isso. Essa imagem gigante de Shiva ali recém-inaugurada é influência ocidental (razão pela qual só foi feita recentemente).

Vista exterior do templo hindu a Muthu Mariamman no Sri Lanka
O coloridíssimo templo hindu a Muthu Mariamman nos arredores de Kandy, Sri Lanka. Notem a colorida “colina” que imita o Monte Meru. 

O formato desses templos altos tem a mesma origem da estupa dos budistas, apontando para o céu.

Imagems no templo hindu a Muthu Mariamman no Sri Lanka
Em detalhes. A deixar claro: os hindus ilustram as suas deidades desde a Antiguidade, mas costuma ser bem mais nestas ilustrações coletivas que um destaque individual a este ou aquele, como fazem os budistas ou os católicos. É questão de costume artístico e estético.
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Eis a figura de Mariamman pintada no teto deste templo. Há tantas manifestações distintas quanto as de Nossa Senhora no cristianismo católico.
Interior de templo hindu a Muthu Mariamman no Sri Lanka
O interior deste templo hindu com os sacerdotes ali semi-nus (faz calor aqui, afinal), e algumas pessoas à vontade sentadas no chão.

Visitantes que venham a turismo são bem-vindos, mas há um modesto custo de entrada de 250 rúpias (USD 1) para adentrar a área externa ou 500 rúpias (USD 2) para o acesso total, que inclua o interior. Se você for um curioso cultural ou entusiasta das religiões do mundo, eu diria que vale a pena.

Eu acessei a área com os olhos cheios de tanto colorido. Acho que nem no Carnaval baiano se atrevem a tamanha explosão de cores. Fosse na Micareta lá de Feira de Santana, ainda assim se daria destaque: “Eu estava ali naquele todo coloridão.”

Há imagens de muitas cores por todas as partes, inclusive pintadas no teto. Já o chão é aquele bastante básico que você viu acima. (Atenção com as poças d’água que se acumulam). Os ocidentais, geralmente habituados a templos suntuosos — feitos por castas religiosas historicamente ricas — por vezes até estranham esta estrutura simples dos templos hindus.

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À entrada, com a vista para as colinas do Sri Lanka.
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O mui colorido interior deste templo hindu.
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Note a figura da lótus, que tanto no budismo quanto no hinduísmo simboliza o desabrochar da espiritualidade e do aprendizado. A lótus é notável por crescer tão bela mesmo na água suja.
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Senhor Ganesha, o deus com cabeça de elefante. É filho de Shiva.
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Note-se que é um lugar simples, bastante “povo”, sem pretensões elitistas.

Lá e cá, as pessoas de pele morena-escura circulavam nas suas vestes coloridas que lhes caem tão bem, suas crianças por perto a olhar, e às vezes homens ou mulheres a marchar em direção a algum dos pequenos pavilhões segurando com as duas mãos uma bandeja de oferendas de frutas — bananas, mamão, coco — doces e flores.

Fitas coloridas fazem a vida, e sacerdotes de saião amarrado na cintura caminham despretensiosos. Estamos todos descalços, naturalmente.

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Eu no templo hindu. Atrás, um sacerdote de saião. (Se era apenas um ajudante, não sei ao certo.)
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Homem levando bananas numa bandeja de oferendas que são deixadas nos altares.
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Mulher diante de um dos muitos pavilhões neste templo hindu.
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Um ritual que acontecia numa área reservada do templo. Um sacerdote fazia o que me pareceu o equivalente hindu da exposição do santíssimo, por assim dizer.
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Um monge budista ali contemplando.

Sim, como eu regularmente digo, as divisões rígidas que às vezes se imaginam academicamente aqui nas religiões orientais são muito mais produto da mente ocidental cartesiana que da realidade. Na prática, as coisas se misturam — e as pessoas misturam as coisas.

Como visitante, eu aqui não me demorei muito. Os olhos ficam buscando cada detalhe; os pés, fosse este um país de clima frio, reclamaria de um chão liso e gélido, mas aqui neste Sri Lanka tropical o chão liso é fresquinho como seus equivalentes no Brasil. Não incomoda.

Nos altares, nada de ouro nem garbo. Pétalas de flores, imagens de pedra, e a ocasional vela que é um pratinho de óleo de coco com um pavio de pano. 

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Altar neste templo hindu a Muthu Mariamman. Nada muito chique; simplicidade é a palavra.

Eu admiro esta religiosidade popular. Acho-a mais coerente com os valores da humildade do que os grandes templos suntuosos que se veem por aí em tantas religiões. Gosto de visitá-los, mas os percebo mesmo mais como produto de um espírito de realeza imperial que de inclusão, gente, povo.

Se religião é virtude, não deveria haver necessidade de luxo.

Então eu deixo aqui este breve testemunho dos tâmil. Eu falarei mais sobre eles quando — um dia quem sabe — for ao extremo norte do país, na região de Jaffna, onde eles se concentram.

A Guerra Civil do Sri Lanka (1983-2009) gerou mágoas e derramou sangue entre os cingaleses budistas e estes tâmil hindus. (Ó, Deus, tantos fratricídios sobre a Terra…). Eles entretanto seguem aqui, sendo a minoria mais expressiva deste país (11%). Estão por aí; você os verá sem nem saber; mas agora sabe um pouquinho mais sobre eles.

Sigamos rumo a Sigiriya.

Mairon Giovani
Cidadão do mundo e viajante independente. Gosta de cultura, risadas, e comida bem feita. Não acha que viajar sozinho seja tão assustador quanto costumam imaginar, e se joga com frequência em novos ambientes. Crê que um país deixa de ser um mero lugar no mapa a partir do momento em que você o conhece e vive experiências com as pessoas de lá.

One thought on “Templo Hindu e os Tâmil no Sri Lanka: Muthu Mariamman

  1. Que beleza, meu amigo viajante!… Que riqueza de cores, luzes, detalhes, figuras, pinturas, de grande arte e significado. Que bela arquitetura!…
    Belíssima essa foto com o templo, o azul diáfano do céu tropical e o verde das matas. Pujante.
    A grandiosa estátua de Shiva, de uma beleza estrema, projetada para o Alto, entre os Céus e a terra, está esplendorosa. Espetacular.
    Lindo o templos, com suas cores, luzes, arte, histórias, numa simplicidade plena de riqueza e significação.
    Espetacular esse céu pintado. Parece real. Impressionante.
    Graciosa a pirâmide simbolizando o Monte sagrado com seus diversos, múltiplos e coloridos personagens. Belo também o seu arco decorado. As imagens, as cores, a singeleza, a reverencia, a alegria que subjaz no ambiente, tudo inspira calma, graça e leveza, a despeito das cores vivazes.
    Linda a representação da Mariamman. Reflete calma alegria, confiança, positividade, benevolência. Um encanto. Lindos os tons, quentes na terra, suaves nos céus, envolta no verde da natureza pródiga.
    Simples , singelo e rico em cores , luzes, detalhes, o interior do templo.
    Bela ambientação, com as colinas do Sri Lanka em torno e o lindo céu azul. Em meio à simplicidade do ambiente social.
    Formosos os vistosos altares, tetos decorados portas e portais. Sobretudo com essa lotus belíssima. Um misto de requinte, arte e singeleza.
    Lord Ganesha aparece lindo, colorido, com significativo olhar, belas roupas e linda poltrona. Um lord.
    E a participação do povo é um espetáculo à parte. Simples, autêntico na sua manifestação religiosa, reverente e humilde. Uma maravilha. Emocionante ver as ofertas simples e belas que levam como se nelas levassem também sua alma, seus corações. Gente simples, humilde, tranquila e reverente. Impressionante. Belo exemplo de fé e de religiosidade.
    Gostei muito da postagem . Aprecio muito essa alma simples do asiático nas suas manifestações religiosas. E sua adesão aos eventos e rituais. Parece ser uma religiosidade popular na região.
    Valeu, jovem amigo viajante.
    Linda postagem.
    Que bom conhecer esse mundo maravilhoso da religiosidade e cultura do Sri Lanka. Salve a Ásia magnífica, cheia de encantos.
    Que venham mais belezas.

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