O Sri Lanka não surge com o imperialismo europeu dos séculos XVI-XX; ele tem uma História própria que os antecede.
Polonnaruwa, reino medieval srilanquês (1055-1232), é uma dessas expressões. Hoje, é um sítio arqueológico tombado pela UNESCO como Patrimônio Mundial da Humanidade onde você encontra ruínas budistas ainda relativamente bem preservadas, talvez as mais impressionantes de todo o país.
Àquela época, antes da chegada mais significativa do islã ou do cristianismo a estas bandas, os reinos deste Sul e Sudeste da Ásia vacilavam entre serem budistas ou hinduístas. É quando surgem as magníficas construções do Angkor Wat, no Camboja; de Prambanan e Borobudur, na Indonésia; e quando os budistas do Sri Lanka erigem a sua Polonnaruwa, que hoje vamos conhecer.
Trata-se de uma viagem relativamente rápida, um passeio de um turno saindo de Sigiriya. Mais abaixo, eu farei as várias considerações práticas, além de mostrar o local com o seu histórico.

O histórico: O que foi Polonnaruwa
Com os posts anteriores nas Cavernas de Dambulla e em visita ao templo hindu de Muthu Mariamman, eu lhes detalhei como o Sri Lanka é feito de duas nações principais: há os cingaleses, gente budista e que historicamente governou a maioria da ilha, e os tâmil, gente de origem sul-indiana, mas que há milênios também atravessou o estreito e vive aqui. Cada qual tem a sua língua, e eles por décadas estiveram em guerra civil. Há um histórico por detrás disso.
Há milênios, essas duas gentes conflitam-se — ou convivem em paz, a depender do período — nesta ilha que é o Sri Lanka. Em 993 a.C., após mil anos de preponderância budista dos cingaleses, emerge um império tâmil com sede no sul da Índia, a Dinastia Chola, que então invade e toma todo o Sri Lanka. É o fim do reino budista cingalês com sede em Anuradhapura — cidade ancestral que visitaremos depois nesta viagem.
Os tâmil Chola levam o então rei budista cingalês para a Índia como prisioneiro de guerra, e lá ele falece. São estes novos governantes, hindus, que transferem a capital de Anuradhapura cá para Polonnaruwa, e por 53 anos são eles que governam, até um descendente da linhagem real cingalesa — que se tornaria o rei Vijayabahu I — recuperar a coroa e a independência destas insulares terras.

Polonnaruwa emerge como centro de um novo reino cingalês budista — o segundo mais importante na História deste país, após o longevo reino antigo de Anuradhapura.
Isso se dá em 1055, quando a maré vira, e estes budistas cingaleses não só recuperam o controle sobre toda a ilha do Sri Lanka como também conquistam um pedaço do território nativo dos tâmil lá na Índia por um período. Foi a volta do cipó de aroeira no lombo de quem mandou dar.
Os novos reis cingaleses então edificam palácios e templos neste sítio do centro do Sri Lanka, muitos dos quais seguem com suas ruínas em estado relativamente bom de conservação (se você levar em conta a sua vetustez e o fato de aqui estarmos num lugar tropical úmido, dado à deterioração, ao contrário da secura que preserva as ruínas gregas ou egípcias).
As obras são quase todas do século XII, apogeu deste reino sob o rei Parakramabāhu I (1123-1186). Ele mandou fazer aqui um palácio real com banhos, templos budistas, e enormes esculturas hoje quase milenares na rocha. São coisas que você ainda encontra aqui preservadas.

Visitando Polonnaruwa
O Sri Lanka é um país complexo em termos de estações do ano. Embora seja uma ilha relativamente pequena (menor que o Estado da Paraíba), a estação chuvosa depende de onde você está. De novembro a abril, as temperaturas aqui se reduzem, o céu nubla com facilidade, e chove um pouco ou um muito. Já de maio a outubro são os 6 meses secos, de temperaturas mais elevadas e sol a pino. (Bem-vindos à zonas equatorial.) Na costa sul do país é o contrário.
Isso significa que, neste começo de ano, eu peguei Polonnaruwa algo nublada e com um chuvisquinho. Foi bom, pois eu havia lido relatos dramáticos de viajantes gringos se queixando do calor. Não é nada tão diferente do Brasil; vamos e venhamos.
Polonnaruwa se vê idealmente num bate-e-volta a partir de Sigiriya, que fica a 1h de carro. Há uma cidade(zinha) moderna chamada Polonnaruwa, mas não se recomenda muito hospedar-se lá, pois não há nada de interesse. Há quem venha de tuk-tuk, mais barato, mas aí demora mais. O ideal é ter um carro com motorista que vá parando aqui e ali, pois o sítio é espalhado (lembra uma versão menor e mais modesta do seu contemporâneo Angkor Wat, no Camboja).
Paguei 8.000 rúpias (USD 40 na ocasião) no total pelo passeio de um turno com o motorista. Já o ingresso para Polonnaruwa sai o equivalente a USD 25 por pessoa, pago sempre em rúpias. Sai-se logo após o café da manhã, para visitar tudo antes de o sol esquentar demais, e se termina com um almoço por sua conta, retornando a Sigiriya após a refeição.

Há uma quantidade grande de lugares e lugarejos aqui neste sítio arqueológico que se estende por quilômetros. Você não vai ver tudo — nem isso seria necessário. Os principais pontos, que você não deve perder, são os seguintes:
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- O Museu de Polonnaruwa
- O Palácio do Rei Parakramabahu, com os banhos reais
- O chamado Quadrângulo sagrado, com o templo Vatadage
- O antigo templo Lankathilaka
- A estátuas budistas de rocha em Gal Vihara (ou Gal Viharaya)
Veremos esses lugares um a um.
O Museu de Polonnaruwa é uma série de exibições (meio cansativas, estilo Wikipédia) com placas de conteúdo contando sobre aquele tempo, os diâmetros das obras, um pouco geral sobre comércio, reis e tal. Há muitos objetos de pedra da Idade Média, erodidas estátuas de Buda dos séculos VIII e IX, além de badulaques e itens hindus da época. São várias imagens e ícones sagrados das deidades, com detalhes sobre cada obra, mas meio difícil de reter.
No museu, você entra por um lado e sai pela outra ponta, que termina com uma breve livraria (mais que propriamente lojinha) no final.
Ele é interessante, mas eu recomendo cuidar para não acabar gastando muito tempo ali, ou você depois ficará cansado ou com fome antes de terminar de ter visto o principal.

O museu não permite tirar fotos das coleções no seu interior, mas não se preocupem: o principal fica na área externo.
O entorno do museu, em si, me lembrava algum campus universitário brasileiro: aquela terra tropical umedecida, de grama aqui ou árvores ali, onde uma senhora varria as folhas e um policial de ar cansado fazia as vistas. Quase não havia outros turistas, devido ainda à pandemia.
Começou um chuvisquinho logo quando me retirei, aquela chuva de caboclo que mais cai nas árvores que em você. Por entre rochas lisas d’água, consumidas pelo tempo, e a terra ficando molhada, circulavam alguns cachorros soltos ao que eu saltava do carro dali a poucos minutos para visitar meu primeiro sítio: a zona do antigo palácio real do rei Parakramabāhu I.
Os musgos cobrem os tijolinhos do século XII, e o limo tomava conta do que um dia foram os banhos desta budista realeza cingalesa.





Os leões são extremamente simbólicos aqui no Sri Lanka, mais do que vós imaginais. Quando fizeram Polonnaruwa, decorá-la com muitas figuras de leão era premente.
Eu comentei na postagem em Kandy que o nome da etnia budista daqui, os cingaleses, carregam um nome que literalmente significa “gente do leão” (singh em sânscrito, daí também Singapura, ou “cidade do leão”, e o leonino símbolo que você encontra lá naquela cidade-estado.)
Os leões são, portanto, um símbolo nacional cingalês em contraste aos tâmil hindus identificados aqui com a vaca, animal deveras respeitado no hinduísmo. Daí o leão na bandeira do antigo Reino de Kandy e na atual República do Sri Lanka.
Daí estas estátuas em Polonnaruwa, simbolizando a retomada de poder pelos cingaleses aqui.
É curioso (e algo triste), pois as culturas asiáticas seguem repletas de referências — as fantasias de leões na China, a figura do leão de Judá na Bíblia hebraica, símbolos na antiguidade persa — a um animal que foi quase extinto aqui na Ásia. Tornou-se um animal quase que exclusivamente africano. Os únicos leões asiáticos remanescentes estão no Parque Nacional Gir, no norte da Índia.


As pedras da lua são algo muito tradicional aqui do Sri Lanka — milenar. Você verá muitas originais, de época, pelos seus sítios arqueológicos, assim como encontrará incontáveis souvenirs nesse formato.
Na Antiguidade, como no reino cingalês de Anuradhapura, viam-se muitos animais ali retratados. Já nas pedras da lua aqui de Polonnaruwa, se você reparar bem, há apenas elefantes e cavalos. Deixaram de gravar leões e vacas, para tentar conciliar os ânimos entre entre as gentes cingalesas e tâmil aqui no Sri Lanka. Sábio rei. (Note, portanto, ali em pleno século XII, a aplicação do que hoje chamaríamos de “politicamente correto”.)
Eu saí da área do antigo Palácio Real rumo ao chamado Quadrângulo Sagrado, onde aproveitei para fazer uma boquinha. A hora do lanche é a hora mais feliz, já certamente se sabia desde o século XII também.
Ao verem aproximar-se um veículo, os pobres vendedores logo se aproximam. Eles não são tantos, mas tampouco são muitos os turistas. Isso quer dizer que dois ou três estarão já à sua porta antes mesmo de você a abrir, quase não dando conta de segurar tantos souvenirs em mãos, e prontos a oferecê-los: “Excuse me, sir. Good morning, sir. Please look, sir.“
Numa semi-roda de cadeiras plásticas — daquelas de igreja evangélica de bairro — dispostas sobre a terra nua e sob o frondoso arvoredo, uma senhora idosa de cabelo grisalho preso e cimitarra em mão se sentava junto a um monte de cocos amarelos. Assim são os cocos daqui (coco-rei, chamam eles, mas a água é igual). Umas laranjas murchas punham-se na pobreza de uma bancada de toalha plástica azul e “vitrine” de salgados, daquelas de vendedor de frente de laboratório ou repartição pública de manhã.
Os guias, talvez habituados aos gringos cheios de dedos e incertezas, sempre fazem uma cara engraçada (de leve surpresa que tentam esconder) quando me veem interromper a visita para, sem pestanejo, sentar-me a uma bodega destas sem eira nem beira, e ali comer com o povo.




Já nem me lembro quanto isso me custou, mas sei que foi gostoso. Acho que paguei 100 rúpias pela água de coco. Aí foi curioso quando, eu ali sentado, apareceu um casal russo, a quem a água de coco de repente custava 250.
Preço, aqui, sempre é uma coisa subjetiva. É como uma realidade quântica, sem objetividade que não dependa de um observador.
Sendo assim, tome cuidado com os preços dos vendedores de souvenir que o abordarão. Leve o que quiser, e compadeça-se na medida da sua compaixão (um me abordou que não tinha pernas, usava pernas de plástico). Só não acredite nos materiais de que eles dizem que os produtos são feitos (mármore, mogno…). Aqui, você sai com a impressão de que só existe coisa feita de material nobre.
Vamos ao Quadrângulo Sagrado, onde ficavam os templos. Atravessei a pista, despedindo-me da gentil vó da cimitarra, e adentrei.




A relíquia de um dos dentes do Buda histórico, Sidarta Gautama (falecido no século V a.C.), teria sido trazida ao Sri Lanka no século IV d.C., da Índia, pelo príncipe Dantha e a princesa Hemamala — a qual teria escondido o dente sagrado no seu próprio cabelo. Fugiam de perseguições hindus e para cá vieram, onde os cingaleses budistas os acolheram.
Se puro mito nacional, caso verídico ou história baseada em fatos reais, eu não sei. Sei que o dente passou séculos aqui antes de ter sido levado a Kandy, onde segue sendo venerado num grande templo.




Daqui, pode-se seguir adiante e ainda ver muitos outros templos e estupas, mas esses acima são os mais bonitos, na minha opinião.
O que ainda merece atenção depois são, sobretudo, o Lankathilaka e as estátuas de gnaisse em Gal Vihara.
Mais um pouquinho com o carro, e mais caminhada leve por entre antigos templos em ruínas e muretas nos campos.



Gal Vihara (que em cingalês quer dizer “mosteiro de rocha”) costuma ser a parada final num roteiro aqui, caso você vá retornar para o lado de Sigiriya.
Não aceite ir embora de Polonnaruwa sem vê-la. É uma parada praticamente obrigatória.



Polonnaruwa deixa aí todo este legado do que foi o Sri Lanka medieval.
O reino perduraria até 1215, quando então foi atacado e destruído por invasores vindos do leste da Índia (desta vez não os tâmil, mas um outro povo conhecido como kalingas).
A monarquia cingalesa mais uma vez se desbaratou, e o Sri Lanka experimentaria três séculos de divisão entre reinos menores e relativamente independentes — vários deles, cingaleses, com os tâmil tendo o seu reino hindu no norte da ilha.
Foi o contexto que os portugueses aqui encontraram, quando aportaram pela primeira vez na ilha em 1505. Do que ocorre depois eu já contei em detalhes aqui e aqui. Por sorte, estas obras medievais que acabaram abandonadas na floresta se mantiveram, até serem redescobertas no século XIX.
Depois de 3h por aqui circulando, entre múltiplas paradas com o carro e caminhadas por sobre a grama e a terra sob o chuvisco que parou, era hora de partir.
Esqueci de dizer, mas esse percurso todo se pode fazer com os pés calçados.
Guarde seu ingresso, pois mesmo depois de remover todas as partes, eles na saída da zona arqueológica checam o canhoto que fica com você.
Foi hora de almoçar e retornar a Sigiriya, pois mais me esperava adiante.

Aí foi engraçado eu, no restaurante, perguntar o que era aquilo redondinho no molho escuro, no canto superior esquerdo da foto.
“Guarda-chuva“, respondeu-me a humilde mulher com convicção, buscando seu inglês. Era manga selvagem (versão menor e ligeiramente mais ácida dessa fruta que é nativa daqui, e que eles usam também na comida). Vai ver a palavra em cingalês é parecida, e ela se atrapalhou.
Ah, Sri Lanka, você me apronta cada uma.


Meu amigo, que beleza esse sítio!… Quanto detalhe, quanta história, tanta arte e simbologia!…
Tamanha representatividade cultural e religiosa, é um dos pontos altos, nessa Asia secular.
Tem semelhanças com outros que vi em vossas postagens, creio que no Camboja e na Ilha de Java.
Impressionantes as ruínas ainda de pé apesar dos séculos.
Que maravilha!…
E todo esse complexo rodeado por essa natureza esplendorosa!.. exuberante nos seus belíssimos tons de verde.
Um espetáculo.
Maravilhosas essas esculturas em pedra.
Os tons que as pedras refletem são encantadores. Ora rosa, ora dourado , ocre ou lilás, todos lindos
Uma riqueza de detalhes. A vida , as crenças, os valores, contad@s nas pedras artisticamente esculpidos. Uma preciosidade que desafia o tempo.
Lindo sitio. Bela região.
A expressão de calma, de quietude dos ícones, o clima de paz do ambiente, a presença pujante da natureza, a vida que brota dessas estruturas e histórias de um tempo passado , tudo isso cria um ambiente mágico e vivo que é facilmente percebido por que chega, e ali passa algumas horas, embebido nesse passado que parece tão presente e tão vívido. Como que aqueles seres representados permanecessem ali, e saudassem com boas vindas a todos os que aparecem para os visitar. Há, pelo visto a presença imaterial deles. E o povo do lugar parece com eles conviver muito bem.
Essa sensação de que os seres homenageados se encontram presentes em cada ambiente desses, acompanha todas essas representações religiosas na Ásia. Na visão da sua amiga aqui.
Bela postagem!… Encantadora, mágica. Parece que se entra na máquina do tempo.
Amei, jovem viajante.
Parabéns pela escolha dos lugares e obrigado por nos fazer viajar por esses páramos geniais.