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Sri Lanka

Anuradhapura e a milenar árvore sagrada dos budistas no Sri Lanka

(Este será um post longo.)

Do ponto de vista histórico e religioso, Anuradhapura talvez seja a cidade mais importante do Sri Lanka. Foi a sua primeira grande capital, numa época que ficou conhecida como o Período Anuradhapura na História deste país (377 a.C. – 1017 d.C.).

Notem aí uma época imensa, de mais de um milênio. Foi quando o budismo — a religião predominante neste país — foi introduzido ao Sri Lanka, e com ele uma árvore que é descendente direta, feita com um enxerto daquela sob a qual Buda se iluminou, na Índia. A árvore sagrada ainda está aqui — viva, frondosa — e é a mais antiga árvore plantada vivente de que se tem registro: data de 236 a.C.

Eu não preciso dizer que há um certo surrealismo em estar diante de um organismo tão antigo.

Venhamos conhecer Anuradhapura, hoje uma cidade dos nossos tempos, mas plena de ruínas e templos da Antiguidade no Sri Lanka. A árvore sagrada é, inevitavelmente, o seu elemento mais significativo.

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Bem-vindos a Anuradhapura, que foi a primeira capital do Sri Lanka. Hoje, é talvez o mais histórico dos seus sítios.

O Período Anuradhapura

Antes de eu mostrar a árvore ou falar da minha visita, uma breve introdução para vocês entenderem a significância deste lugar.

O Sri Lanka é uma ilha que nem sempre foi unida num só governo; pelo contrário, pela maior parte do tempo houve aqui distintos reinos. Mais importante era a divisão — ainda presente na sociedade — entre cingaleses, falantes de cingalês e em geral budistas, e os tâmil, oriundos do sul da Índia, falantes da língua tâmil e de religião hindu. Falei mais sobre essa divisão em Kandy, Dambulla, e na visita a um templo hindu lá perto.

O povo cingalês teria chegado aqui por volta de 500-540 a.C., oriundos do norte da Índia, quando seu rei Vijaya de lá saiu acompanhado por centenas de súditos. Sua língua, de fato, origina-se do sânscrito e é indo-europeia (como as demais línguas do norte indiano e diferentemente dos idiomas do sul da Índia ou da gente indígena do Sri Lanka, com quem os cingaleses se misturaram).

Anuradhapura torna-se capital quando esses cingaleses e as tribos indígenas conseguem um entendimento e aceitam uma monarquia que os governe a todos. Isso teria se dado no ano 377 a.C. Aristóteles, lá na Grécia, tinha 7 anos de idade.

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Em rituais religiosos, os músicos aqui se vestem à maneira antiga: descalços, um pano na cabeça (que certamente ajudava muitos a carregar coisas), e um roupão enrolado no corpo. Na rua, os srilanqueses já não se vestem mais assim, mas em casa ainda é possível encontrá-los desta maneira — e dizem ser bastante confortável. (Sem nada por debaixo.)

Foi a chegada do budismo quem começou a dar contornos particulares à cultura cingalesa no Sri Lanka.

Antes, eu preciso lhes apresentar — a quem ainda não o conhecer — o grande imperador indiano Ashoka (304-232 a.C.). No Sul da Ásia, ele é um personagem tão famoso e fundamental quanto Júlio César ou Otávio Augusto para a Europa.

Ashoka, o Grande, foi dos maiores monarcas da História da Índia. Expandiu um império que ia desde Bangladesh até o Afeganistão. A quem acha que os britânicos é que uniram a Índia num país só pra primeira vez, os indianos geralmente respondem que vá conhecer a sua História e os numerosos imperadores locais que já o haviam feito antes. Ashoka, provavelmente, foi dos maiores.

Suas conquistas, porém, fizeram-no refletir sobre a crueldade da vida — tantas mortes, tanto sofrimento—, e ele então se converteu ao budismo.

Ashoka o Grande
Ilustração de Ashoka, o Grande (304-232 a.C.). Ele é considerado um dos grandes imperadores da História da Índia, tendo consolidado um império que cobria quase todo o atual território desse país e mais além. Converteu-se ao budismo no meio da vida, ao perceber o tanto de sofrimento que havia no mundo.

Ashoka é importante para a História do Sri Lanka — e para aquilo que você hoje encontra aqui em Anuradhapura — porque dois dos seus filhos fizeram votos monásticos após sua conversão ao budismo, e como monges missionários eles vieram espalhar “a boa nova” aqui nestas terras.

O primeiro deles foi Mahinda (285-205 a.C.), também conhecido como Arahat Mahinda (ou venerável Mahinda, Arahat sendo a palavra em sânscrito que significa alguém esclarecido, iluminado sobre a natureza das coisas e que merece honras, embora ainda não tenha chegado ao nível de Buda.) Foi ele quem, por volta do ano 250 a.C., veio aqui e converteu o rei cingalês de Anuradhapura ao budismo, Isso se deu em Mihintale, aqui perto, num lugar conhecido como A Pedra da Anunciação, e que visitaremos depois.

O segundo missionário foi a filha mais velha de Ashoka, também convertida. Foi ela, Sanghamitta (282-203 a.C.), quem trouxe o enxerto da árvore sagrada da iluminação para cá. Isso teria se dado em 236 a.C. (algumas fontes falam erroneamente em 288 a.C., mas é um equívoco, pois naquele ano Ashoka nem era rei ainda).

O lugar onde Buda alcançou a iluminação chama-se hoje Bodh Gaya, na Índia. Porém, a árvore original já não é mais. Depois que a dinastia de Ashoka foi substituída um século depois dele, os novos reis retornaram ao hinduísmo e mandaram cortar a árvore. Plantaram-se novas sempre, e até hoje existe uma árvore Bodhi (Ficus religiosa) no mesmo lugar lá em Bodh Gaya, como também em Sarnath — o lugar onde Buda começou a pregar seus ensinamentos, e que eu visitei. Ambas são enxertos desta daqui de Anuradhapura, portanto “netas” da árvore original.

O Sri Lanka se mantém então como uma herança do tempo em que a Índia foi budista.

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Monge em robe laranja e fiéis vestidos de branco, para simbolizar a pureza, em visita a um templo budista aqui em Anuradhapura. (Eu tratei em mais detalhes das tradições budistas do Sri Lanka neste outro post.)

Visitando Anuradhapura

Faz calor, como a foto acima talvez já lhe dê a entender. Faz calor como no Brasil tropical, aquele calor úmido e potente que faz as pessoas fugirem do sol depois das dez da manhã. As pedras no chão ficam quentes como fogo — o que é uma beleza se combinado à regra budista de entrar descalços nos espaços sacros. Há aquele fulgor às 1-2h da tarde em que você olha para fora e diz “não saio nesse sol nem com a p…“.  

Eu, entretanto, saí. Anuradhapura é uma visita melhor começada já logo no início da manhã — tão cedo quanto você possa —, e daí você se prepara para uma jornada de várias horas de entra-em-templo, sai-de-templo. Ou melhor, entra-em-santuário e sai-de-santuário, assim em espaços abertos, pois quase tudo fica do lado de fora (sob o sol). Esqueça as gentilezas do frescor da altitude encontrada em Kandy ou Ella. 

Quando chegamos a Anuradhapura, a cidade estava sem luz, e eu por um instante tive uma palhinha do que devem ter passado aqueles no Amapá que ficaram sem energia elétrica em 2020. Aqui, haviam previsto manutenção da rede elétrica e deixado a cidade inteira sem luz das 8 da manhã até as 5:30 da tarde. Eram 5:45. Ela logo voltaria — e tornaria a cair. Chegado de Sigiriya e de Ritigala, suor grudado no corpo, banho frio e na penumbra foi a saída. Eu ficava semi-nu à luz de velas no anoitecer, sabendo que se abrisse a janela seria comido pelos mosquitos.

Coitado do Sri Lanka, entraria numa crise econômica imensa em 2022, com racionamento diário de energia, inflação etc. É um país ainda muito frágil economicamente, e politicamente bem pior do que o Brasil (quatro ministros eram da própria família do presidente, para vocês terem uma ideia). Para vocês verem que há sempre um hiato entre o que a religião diz e o que as pessoas fazem. Gandhi, à época do colonialismo britânico, disse que “Seus cristãos não tem nada a ver com seu Cristo.

Amanhã seria um novo dia, e com muita herança cultural por visitar.

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No dia seguinte.

Anuradhapura, hoje, é uma moderna cidade congestionada de Terceiro Mundo. Não espere encontrar um vilarejo pitoresco onde tudo se faz a pé. Infelizmente, não. Kandy, inclusive, é bem melhor de circular que Anuradhapura. É que aqui as heranças são muito antigas, e o que sobra são templos e sítios arqueológicos espalhados, aonde se vai de tuk-tuk, não a pé.

É um pouco como Polonnaruwa, ou como Bagan em Myanmar, só que num meio mais urbano e movimentado. Ou seja, você precisa contratar um tuk-tuk que passe umas horas com você levando-o de um lugar a outro. Coisa de USD 15 é um preço médio.

A isso se somam os USD 25 (estes, por pessoa) do ingresso á zona arqueológica e área de visitação de Anuradhapura, que inclui um museu até bem posto e vários sítios com heranças de outrora.

Duas observações aqui: a primeira é que você não precisa pagar nada para visitar o templo onde fica a árvore sagrada. Os postos de cobrança são nos demais, dentre os muitos templos e estupas históricas que há aqui em Anuradhapura. A segunda é que eu recomendo você mesmo(a) comprar o ingresso, quando chegar a hora. Os tuk-tukeiros daqui são notórios por organizar um “pacotão”, mais barato que o ingresso, que não incluem os principais sítios, porque o levam somente aonde não há verificação de tíquete. Olho vivo, e de preferência vá com um tuk-tukeiro bem recomendado pela sua acomodação. (Eu posso passar contatos a quem quiser.)

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Anuradhapura hoje é uma cidade moderna e bem espalhada. Não ache que vai fazer nada a pé aqui.
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O Museu Arqueológico de Anuradhapura, onde se compra o ingresso oficial. (Evite cambistas, ou que alguém se ofereça para comprar por você, para não ser enrolado.)
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Eis o ingresso oficial, com pedaços ali que se destacam. Note, porém, que vários lugares têm entradas modestas à parte ou nenhum custo de entrada, como é o caso do templo da árvore sagrada. Você só precisa destes ingressos oficiais se quiser visitar toda a zona arqueológica (o que eu recomendo aos que tiverem pelo menos um dia inteiro em Anuradhapura).

O sítio todo de Anuradhapura é tombado pela UNESCO como Patrimônio Mundial da Humanidade. No entanto, você verá que o grosso dos visitantes são gente local, fiéis budistas indo lá contemplar, rezar e levar oferendas. Os turistas, em verdade, são minoria.

Eu sugiro tentar fazer o programa todo em cerca de 5h, entre um café da manhã cedo e um almoço ligeiramente tardio. Mais do que isso provavelmente o cansará (você fica templed out, como se diz em inglês) a menos que você seja um grande aficionado.

Eram 9h da manhã quando saímos (o que já foi algo tarde, mas é que a minha noite seguinte seria deveras curta, e eu quis dormir um pouco mais nesta véspera). Às 9:15 já estávamos em Issurumuniya, o primeiro templo que visitamos.

Ele é dos templos mais antigos que há, tendo sido construído originalmente no século III a.C. pelo mesmo rei (Devanampiya Tissa) que aceitou o budismo no Sri Lanka pela primeira vez.

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O templo Issurumuniya em Anuradhapura. Ele foi renovado no século V d.C. Há um pequenino museu aqui, com peças mui antigas ao lado de um templo atual.
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Obra dos séculos VI-VIII retratando a família do rei com contornos budistas característicos.
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Estes são os chamados enamorados (lovers) de Isurumuni, obra datada entre os séculos IV e VI d.C., que se crê retratar o príncipe Saliya, que no século II a.C. abandonou suas pretensões de ascender ao trono para ficar com a sua amada Asokamala, uma moça de origem social humilde.
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Templo moderno aqui, bastante colorido, com algumas fiéis ali.

Kelum, meu motorista desta manhã, me esperava ali. Era um homem moreno de 42 anos com ar de pai de família ganhando o seu sustento. Sabia onde parar, por onde ir, e os horários de abertura e fechamento (inclusive os intervalos para almoço) dos templos vários, então é útil ter alguém com esse conhecimento local.

Por isso, passamos apenas rapidamente num outro templo, de uma grande estupa branca, antes de seguir ao templo da sagrada árvore Bodhi, que fecha ao meio-dia.

O Templo da Árvore de 2.250 anos

O calor começava a subir gentilmente ao que já havíamos passado das 10h da manhã quando chegamos lá. O templo é todo um complexo a céu aberto, e — como você haveria de esperar — há um detector de metais pelo qual é preciso passar para aceder ao templo. Em 1985, os separatistas dos Tigres Tâmil mataram mais de uma centena de pessoas aqui no contexto da Guerra Civil do Sri Lanka. Por sorte, a árvore não teve problemas. Mas ainda que estes tempos sejam outros, os cuidados aqui se mantêm.

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A grande estupa branca que visitei ainda no caminho para a árvore sagrada.
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Para-se o tuk-tuk longe, e é preciso caminhar um tanto até o local onde deixar os sapatos. Quase todos são fieis e vêm de branco, como sinal de pureza.
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Vamos adentrando, aqui já todos pisando descalços nesta areia.
A árvore do ano 236 a.C. em Anuradhapura, Sri Lanka
E eis ela ali, humilde, a Ficus religiosa de 236 a.C., a mais antiga árvore plantada ainda viva de que se tem registro no mundo.

Toda árvore Bodhi (Ficus religiosa) é sagrada no budismo. Há quem diga que esta tenha sido uma adaptação budista das práticas animistas de veneração da natureza que há havia antes nesta ilha. Seja como for, todas são bem-quistas, e é comum que quase todo templo budista aqui no Sri Lanka tenha uma, mas esta — pela idade e origem — é sem dúvida a mais especial de todas. Eles a chamam de Jaya Sri Maha Bodhi.

Você adentra a área para um espaço circundado de nichos por todos os lados onde centenas de fieis punham flores de lótus como oferenda.

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Há espaços assim em redor da árvore de 236 a.C. Por segurança, não é permitido tocá-la (senão era capaz de cada pessoa querer levar uma folha).
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As pessoas orando e trazendo oferendas de flores ali deixadas.
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Há flores, pequeninas imagens de Buda, ali um embrulho com especiarias, e tigelinhas de arroz (com passas!).
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Há sempre muita gente, mas o ambiente é de calma. Em meio às folhas, a bandeira budista multicores.
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Daquele balde, recebi estas flores de lótus que depositaria no altar, seus pingos d’água refrescando a minha mão.
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Eu ali diante da vetusta árvore.

Há uma atmosfera bastante tranquila neste lugar, um frescor que aplacava o calor ao mesmo tempo em que produzia som do farfalhar naquelas folhas lá em cima.

Eu preciso dizer que é uma sensação curiosa, estar diante de um ser vivo tão antigo. É como se eu passasse num filme rápido quase toda a História humana na minha cabeça, todo o ocorrido de 236 a.C. para cá quando esta árvore já estava aqui. 

Obviamente, é um exercício que se faz apenas superficialmente na imaginação, mas a sensação — esta bem profunda — é a de que você entrou na máquina do tempo e pôde, por alguma razão misteriosa, ter com alguém tão velho, originário de um passado tão remoto.

Qualquer pessoa com alguma sensibilidade terá uma grande sensação de paz neste lugar. Foi como se todo aquele movimento de gente não importasse. Nem o calor importasse. Dá vontade de você ficar ali um tempo, e não sair mais.

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A antiga árvore que mal cabe na foto, em Anuradhapura. Note que plantaram outras árvores Bodhi ao redor.
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As pessoas olhando e orando em meio ao colorido das bandeiras budistas.

Outras paragens antigas em Anuradhapura

Eu vou confessar que, depois que você encontra a árvore, tudo o mais que há para ver aqui parece menos interessante. É assim. Mas vá da mesma forma. 

Se você quiser detalhes e minúcias de cada lugar, contrate um guia por um valor adicional (Kelum era só motorista), mas aí tenha em conta que a visita durará bem mais tempo — provavelmente o dia inteiro, e você se arrisca a ficar um tanto saturado no meio do caminho. Vai de cada um.

Antes de sair, eu cheguei a fazer um vídeo da celebração que mostrei no meu post anterior sobre o budismo no Sri Lanka. Foi após aquilo que pusemos o tuk-tuk na estrada de novo, desta vez rumo ao museu. 

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O interior do Museu Arqueológico de Anuradhapura, com muitas peças de mais de mil anos. Note ali também aqueles afrescos coloridos.
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Uma chamada pedra-guarda (guardstone), muito típica dos templos daqui com imagens de bodisatvas iluminados. Esta tem mais de um milênio, datada de entre os séculos VIII e X d.C.
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Outras paragens mais adiante em Anuradhapura, como esta gigante estupa com o que parece um olho no topo.

Esta estupa (Jetavanaramaya) data dos idos do ano 300 d.C., e era o centro monástico de uma das várias ordens budistas que floresceram aqui em Anuradhapura durante a antiguidade.

Originalmente com um total de 122m de altura devido a um pilar no topo, ela foi a maior edificação não-piramidal da Antiguidade. Hoje, mesmo em ruínas e com “apenas” 71m de altura devido à perda do pilar, é ainda um monumento imenso e impressionante.

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Eis-me aqui de ingresso, no que foi a grane estupa do mosteiro da Ordem Jetavana. (Você também há de notar o sol na minha testa e de imaginar como o chão já ia ficando.)
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Foi aqui que quase tive diante de mim a cena proverbial do “macaco na mão de Buda”. O macaco, em verdade, comia das oferendas de frutas, e Lord Buddha não parecia se incomodar muito.
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São estupas imensas e impressionantes, esta com 71m de altura, da antiga ordem budista dos monges Jetavana.

A Piscina de Elefante e a Estupa de Abhayagiri

Na próxima parada, vendo-me começar a ficar com fome e o almoço ainda distante, resolvi comprar uma bobagem para comer. Eu estava diante das chamadas Piscinas Gêmeas (Twin Ponds).

Comprei uma destas frituras de rua para enganar o estômago e um refrigerante para descer — uma garrafeta plástica de 150ml de uma Fanta cor-de-rosa que eu nem sei gosto deveria ter. (Chame-me de imprudente.) O salgado estava digno, mas a Fanta, eu não resisti e tive que dizer em voz alta — com sinceridade e em bom inglês — que era uma das piores coisas que eu já havia tomado na vida. O vendedor achou estranho e pediu que eu repetisse que tinha dito. Outros dois homens srilanqueses olharam. Eu repeti. Eles riram.

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As Piscinas Gêmeas (Twin Ponds ou Kuttam pokuna), reservatórios de água da antiguidade do que era o Mosteiro de Abhayagiri aqui em Anuradhapura.
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Hoje, macacos circulam a gosto. Há peixes nas piscinas. (São portanto piscinas num sentido original da palavra, não no sentido contemporâneo.)

Com os pés na areia que já queimava sob o sol de quase meio-dia, circulei ali vendo o sol intimidar até os macacos. 

Aqui, existiu desde o século I a.C. o chamado Abhayagiri Vihara, ou Mosteiro Abhayagiri, um dos vários — de várias ordens distintas do budismo, que às vezes competiam entre si pelos favores e preferência da realeza.

As disputas eram sérias, talvez correspondentes às lutas intestinas — quando não guerras — entre as diferentes leituras teológicas do cristianismo em Constantinopla durante a Idade Média ou, mais tarde, entre católicos e protestantes no Ocidente. Abhayagiri, por exemplo, foi encerrado e abandonado depois que uma outra ordem rival ganhou os favores do rei, e a opção dada a estes monges foi que (a) abandonassem o monasticismo, tornando-se pessoas laicas, ou (b) tentassem ser admitidos na ordem que sobrou, começando como noviços. 

Isso se deu no século XII, quando a capital deste reino cingalês foi transferida para Polonnaruwa, e este antigo mosteiro da ordem agora proibida caiu em abandono — até ser “descoberta” no meio do que havia virado selva pelos exploradores ingleses já no século XIX.

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A grande estupa do que foi o Mosteiro de Abhayagiri, fundado no século I a.C. aqui em Anuradhapura. Com ele, estabeleceu-se toda uma ordem monástica que duraria mais de mil anos. Quem a estabeleceu foi o rei Valagamba, aquele de quem vos falei na visita às Cavernas de Dambulla, que fugiu e depois voltou.
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Estes pilares de pedra seguem de pé. Sustentavam, naquela época há milênios atrás, o que eram estruturas de madeira que já não são mais.
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Com a grande estupa de Abhayagiri, também chamada Abhayagiri Dagoba. Esta ordem foi quem primeiro abrigou a relíquia do dente de Buda hoje conservada em Kandy.

No meu post em Kandy, que seria capital nos idos dos séculos XVI-XIX, enquanto os impérios europeus tomavam conta do litoral, eu tratei da relíquia do que se crê ser um dente do próprio Buda conservado aqui até hoje.

Ele teria sido trazido ao Sri Lanka no século IV d.C. por obra da princesa Hemamali e seu marido, o príncipe Dantha, fugidos da Índia numa perseguição hindu. Trouxeram-na então à segurança deste reino budista no Sri Lanka, que desde então tem o dente de Buda como uma espécie de paládio protetor da nação.

Há quem sugira que, na década de 1550, o arcebispo português de Goa teria moído esse dente de Buda em praça pública na tentativa de trazer as pessoas ao cristianismo (muito persuasivo), mas a tese original é que ele segue guardado, hoje no templo que vos mostrei antes em Kandy

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A quem ficou a se perguntar, eis a Piscina de Elefante — bem maior que as outras.
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A milenar Piscina de Elefante (Elephant Pond ou Eth pokuna) era outro dos reservatórios d’água do Mosteiro Abhayagiri. São quase 160m de extensão, por mais de 50m de largura e quase 10m de profundidade.
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É praticamente um açude da Antiguidade.

A Pedra da Lua da Antiguidade

Quem viu a minha postagem na cidade medieval histórica de Polonnaruwa me viu falar da Pedra da Lua (Moonstone), um costume arquitetônico aqui dos cingaleses de ter, à entrada dos templos, um semi-círculo mostrando animais no que seria a roda das encarnações (o samsara).

Em Anuradhapura, você encontra das versões mais antigas dessas pedras. Eu cheguei a falar que, à altura de quando a capital foi transferida para Polonnaruwa no século XII, após um período dominados pelos tâmil vindos do sul da Índia, tais pedras evitavam retratar vacas (sagradas aos hindus) ou leões (símbolo do povo cingalês). Foi uma espécie de politicamente correto avant la lettre.

Aqui em Anuradhapura, porém, você encontra a versão original da pedra da lua com vacas e leões em meio aos demais. (A referência à lua é pelo formato semicircular.)  

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Note uma pedra da lua aqui em Anuradhapura. Na Antiguidade e no medievo srilanqueses, elas eram usadas assim à entrada.
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Note os vários animais a circular na roda das encarnações (o samsara), do qual — de acordo com a crença budista — só se sai depois de várias vidas e aprendizados rumo à iluminação. Veja ali elefantes, cavalos, leões e vacas na área externa. Em Polonnaruwa, veem-se apenas cavalos e elefantes. (Já no círculo interno você tem o que me parecem patos, talvez vistos aqui como animais menos adiantados que aqueles outros.)

Thuparama (247-207 a.C.), a mais antiga estupa do Sri Lanka

(Eu avisei que era bastante coisa, então imagine que este passeio requer mesmo fôlego.)

Thuparama parece nome de líder indígena brasileiro, mas se trata da estupa mais antiga em todo o Sri Lanka, do século III a.C. É modesta, pois data ainda dos primórdios do budismo no país, já nos anos seguintes à vinda de Arahat Mahinda (o filho de Ashoka).

Estávamos ainda no reinado daquele mesmo monarca que Mahinda converteu, o primeiro rei budista deste povo cingalês: Devanampiya Tissa. Sabe-se apenas que a estupa foi erigida durante o seu reino, mas não se sabe exatamente em que ano.

As estupas, como vocês sabem, são características no budismo como monumentos — pequenos ou grandes — que apontam para o céu como um símbolo de elevação. As primeiras, como esta, foram mais modestas, até chegarmos às imensas como Abhayagiri ou Ruwanwelisaya, que mostrarei a seguir para encerrar este passeio.

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Pilares de pedra da Antiguidade. Lá ao fim, a estupa que foi destruída e reconstruída diversas vezes. Essa atual data de 1842.
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Estas colunas sustentavam um teto num pavilhão de madeira que há muito já não é mais. Restou apenas o que era de rocha.
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Nicho budista com oferendas de flores no que é hoje Thuparama, a mais antiga estupa do Sri Lanka, em Anuradhapura.

Finalizando com Ruwanwelisaya

Eu já estava comigo “meu Deus, isso não acaba hoje, e eu quero almoçar (!)“, com aquele drama do visitante que tem fome e já passa da uma da tarde. Em vez disso, eu tinha daquele fulgurante sol quente dos trópicos sobre a cabeça e esquentando já o chão de uma maneira que fazia até os habituados srilanqueses buscarem a sombra — ou andarem correndo e aos risos de zoeira conforme tinham que pisar no chão quente.

Eu via, enfim, Ruwanwelisaya antes de encerrar este passeio no restaurante. Esta última grande estupa que eu veria neste périplo matinal data originalmente do século II a.C. São 55m de uma grande — e, sob o sol, quase reluzente — estrutura arredondada branca que dizem também conter relíquias do Buda sob as suas fundações. (Eu não sei exatamente que relíquias são; não me consta que seja dente; às vezes é um pedaço da roupa ou algo assim.)

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A grande estupa de Ruwanwelisaya, em Anuradhapura. (Esse chão estava quente feito asfalto — aquela moça de vermelho não demoraria a dar pulos de gazela e depois disparar para a sombra.)
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Diante de Ruwanwelisaya, templo que aqui existe desde o século II a.C. As pessoas ali descendo a escada pela pequena sombra.
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A grande estupa branca de 55m é um dos principais ícones de Anuradhapura e sua Antiguidade budista.
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Grandiosa!

Como manda o figurino, dei ali uma volta em sentido horário — o que se faz para que você tenha a mão direita voltada para o lugar sagrado. (Vale lembrar que, na Ásia, a mão esquerda é tradicionalmente usada para limpar-se após as necessidades. Então também só se come usando a mão direita.)

Comungar com a natureza ou integrar-se na atmosfera daquele lugar santo fica mais difícil sob o sol de 1-2h da tarde, digamos assim.

Muito satisfeito com o périplo, eu não via a hora de almoçar, e assim foi. À tarde, mais coisas me esperavam. Entre delas, uma visita a uma loja ayurvédica e uma marcha em Mihintale — onde o budismo foi introduzido no Sri Lanka — ao cair do sol. Não deixe de fazer nem uma coisa nem outra.

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Bom almoço.
Mairon Giovani
Cidadão do mundo e viajante independente. Gosta de cultura, risadas, e comida bem feita. Não acha que viajar sozinho seja tão assustador quanto costumam imaginar, e se joga com frequência em novos ambientes. Crê que um país deixa de ser um mero lugar no mapa a partir do momento em que você o conhece e vive experiências com as pessoas de lá.

2 thoughts on “Anuradhapura e a milenar árvore sagrada dos budistas no Sri Lanka

  1. Nossa!… Que maravilha!… Que lugares lindos!… Quanto verde!… Que Natureza magnifica!… Quanta história representada de forma soberba, com requintada arte e beleza.
    Que monumentos. Interiores maravilhosos, ícones pujantes. Um espetáculo!.
    Todo o sitio transborda paz, elevação e espiritualidade, sobretudo diante da natureza exuberante que o cerca.
    Essa árvore é fantástica, e parece respirar a leveza do Infinito e retribuir assim tanta manifestação de carinho, de veneração do povo que ali vai. Há um clima sagrado no ar que a todos envolve.
    Emocionantes essas manifestações simples e cheias de sentimentos , desse povo humilde, ou não, diante de suas crenças e ídolos.
    A energia que parece circular é quase palpável. A reverência à Natureza, a simbologia que a reveste são tocantes.
    A sensação do Sagrado se encontra ã flor da pele, por assim dizer, dentre essas pessoas e contagia inclusive quem lê e aprecia essas imagens.
    A vida parece brotar dessas histórias e cenas. Magnífica sensação. Incrível.
    É isso que sua amiga aqui percebe, meu caro viajante. Maravilha.
    Parabéns meu jovem amigo, pela escolha do país, dos locais e por nos enriquecer com essas sensações e visões tao belas.
    E que história palpitante.
    Amei conhecer esse país aqui pelas vossas postagens.
    Valeu.

  2. Lindas as paisagens e as imagens. Natureza prodigiosa.
    Belo o contraste entre a procissão de pessoas de branco, diante do verde das matas e o laranja do roupão dos monges. Com as flores dando o toque, diante de um lindo céu azul. Uma pintura.
    Quanta curiosidade nessas histórias de vidas.
    E o senhor parece vivê-las enquanto escreve e descreve. Fantástico.
    Encantei-me pelo país.
    Haja peripécias que o senhor fez hahah
    By the way, a comilança me pareceu saborosa ”tiene una buena cara”haha
    Valeu
    Amei.

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