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Champanhe França

Troyes, das mais pitorescas cidades medievais francesas

Troyes, Champanhe, França. Becos, casas de madeiras, e uma certa insalubridade medieval. Muitos pensam que Idade Média é só fortificação de pedra, associando o período às frequentes guerras e à vida de guerreiro que se levava.

Porém, o medievo europeu — sobretudo o medievo tardio, após o florescimento das cidades nos idos de 1100 — foi também aquele período algo insalubre dos centros apertados, gente lá e cá, esterco das carruagens nas ruas, e casas feitas de forma simples, por vezes com armações de madeira e barro.

Bem-vindos a Troyes [lê-se Trruá], antiga capital do Condado de Champanhe (de que já lhes falei um pouco em visita a Provins), e uma das cidades históricas mais pitorescas de toda a França. Fica 170 Km a sudeste da capital.

Normalmente, você toma um trem de 1h45 saído da Gare de l’Est em Paris e chega a Troyes para o que é um bate-e-volta excelente, se você curte este visual tradicional e, sobretudo, esse casario com madeira. Venhamos, e vejamos um tanto do que eu descobri aqui.

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O casario de enxaimel (estas armações em madeira) típicas que fazem a graça do pitoresco centro histórico de Troyes, no antigo Condado de Champanhe, França.

Augustobona Tricassium vira Troyes

Como tantas na França, a fundação desta cidade data do tempo dos romanos. Ou, como eles gostam de dizer aqui, do período galo-romano (quando os gauleses e romanos se misturaram por séculos após as invasões de Júlio César, período que corresponde aproximadamente aos idos de 50 a.C. – 450 d.C.).

As estradas romanas faziam deste lugar um entreposto comercial importante, que levava desde a Itália até o que eles então chamavam Germania inferior (ou seja, as regiões baixas do que viria a se tornar as comercialmente prósperas Holanda e Flandres).

As Feiras de Champanhe, com seus mercadores trazendo de quase tudo a esta região, sob os auspícios do conde, são algo que eu detalhei melhor em Provins. Eram mercados vinculados ao calendário litúrgico e que ocorriam mais de uma vez no ano — o precursor das “feiras de são fulano” que ainda ocorrem aqui e ali Ocidente afora.

No fim do século IX, Troyes é a escolhida para ser capital do Condado de Champanhe. O seu comércio prospera, e durante a Guerra dos Cem Anos ela é até mesmo cotada para ser a nova capital da França. Não pelo rei em Paris, mas pelos borgonhos, do ducado vizinho que queriam destroná-lo, e os seus aliados ingleses. 

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Nas estreitas ruas de Troyes.

Dando umas voltas por Troyes

Eu preciso ser franco com vocês e dizer que quase tudo que era mais antigo queimou-se num fogo de 1524. Afinal, aqueles aglomerados centros medievais com casas de madeira eram predispostos não apenas às doenças, mas também aos incêndios.

O que você hoje vê é quase todo do século XVI — moradias de 500 anos atrás ainda deveras antigas — juntamente com as sobreviventes de pedra. Quais? As igrejas, naturalmente. A Catedral de São Pedro e São Paulo (Cathédrale Saint-Pierre-et-Saint-Paul de Troyes) data de 1208, e a bela Igreja de Santa Madalena (Église Sainte-Madeleine) é ainda mais antiga, já mencionada em documentos de 1157.

Quase tudo isso fica no miolo histórico conhecido como O Coração de Troyes (Le Cœur de Troyes). O nome não é dado puramente por charme; é que o formato deste centro histórico, circundado por canais, lembra um pouco mesmo o órgão.

Você chega de trem à estação à esquerda do mapa, e caminha uns 15 minutos até chegar ali — não deixando de ver algumas belezas góticas no caminho.

Mapa de Troyes
O miolo histórico conhecido como O Coração de Troyes (Le Cœur de Troyes). No centro do centro desta cidade medieval fica a sua catedral, naturalmente.
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A área do coração junto com aquela adjacência à esquerda vira o que eles aqui chamam de a rolha (le bouchon). Os franceses são criativos. É onde se concentram as atrações de interesse turístico.
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A bela Estação Ferroviária de Troyes (Gare de Troyes), que fica na ponta esquerda da rolha.
Canal e casas de enxaimel em Troyes
Canais ao redor da “rolha” em Troyes.

Começando pelo mais antigo: o medieval

A Igreja de Santa Madalena é, como eu lhes disse, do que há de mais antigo aqui em Troyes. Mencionada pela primeira vez em 1157, ela é ainda mais velha — não se sabe exatamente de quando.

É uma obra de arte da arquitetura gótica, talvez mais requintada até que a própria catedral, embora menor. Ela é um encanto por dentro, com retoques impressionantes de arquitetura gótica, além dos vitrais coloridos ao fundo.

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A Igreja de Santa Madalena (Église Sainte-Madeleine), tudo indica que do século XII, mocada ali entre as casas.
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Seu interior, com um órgão ao fundo sobre a porta de entrada.
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O altar ali sob os enfeites góticos e com vitrais ao fundo.

Esta é uma igreja de interior quase quadrado, anterior ao desenho da chamada cruz latina que viria a se tornar o padrão da arquitetura católica (em que você tem um longo eixo longitudinal que vai da porta até o altar, cruzado por um eixo transversal mais curto lá perto do altar, emulando o formato da cruz de Cristo).

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Os vitrais.
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Em detalhes.
Interior com vitrais e altar da Igreja de Santa Madalena, em Troyes.
Igreja de Santa Madalena, em Troyes.
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Detalhe pouco é bobagem. Um esplendor da arquitetura gótica neste interior.

Há outras igrejas góticas além desta, como a bela Basílica de Santo Urbano (Basilique Saint-Urbain), ainda que menos impressionantes no interior. Ele, depois canonizado, foi bispo aqui e depois papa — algo de que Troyes até hoje se orgulha.

Para não dizer que tudo se resume à presença católica aqui, Troyes foi também renomada no judaísmo durante a Idade Média. Aqui nasceu, viveu, escreveu e morreu o rabino Rachi, apelido de Shlomo Yitzchaki (1040-1105), que fez dos mais importantes comentários do Talmude.  

A Casa de Rachi (Maison Rachi) é aberta à visitação, ainda que apenas sob reserva (pelo site). Custa a bagatela de 24 euros (!) por pessoa para uma visita guiada, então fica para quem for realmente vidrado em judaísmo ou tenha os bolsos profundos. 

De toda maneira, nesse lado a gente já vai aos poucos se embriocando pelas ruelas de Troyes, sob o seu casario de enxaimel, até chegar à famosa Ruela dos Gatos (La Ruelle des Chats).

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A Basílica de Santo Urbano (Basilique Saint-Urbain), de 1262, em Troyes. Ele era aqui desta cidade.
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No miolo histórico, uma das casas de enxaimel mais notáveis: a Casa de Rachi, pensador judeu e comentarista do Talmude que viveu aqui no século XI. A casa é hoje um centro de estudos judaicos onde se pode fazer uma visita guiada sob reserva pelo site.
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O centro histórico de Troyes vai ficando assim.

Enxaimel, pombos, e a Ruela dos Gatos

Aqui há casas de enxaimel por toda parte.

Fazia um dia nublado, com um certo vento que exigia das pessoas os leves casacos que você vê na foto acima. As nuvens acinzentadas pairavam sem dizer se choveria ou não, embora não parecesse que fosse.

Naquele clima, chegar até a Ruela dos Gatos e seu histórico entorno me fez sentir um pouco como devia ser o medievo aqui.

Troyes hoje oferece uma jornada light no que era a França daquele tempo, com sua higiene precária. A tal da Ruela dos Gatos hoje talvez devesse se chamar Ruela dos Pombos, tamanha a presença de penas e cagança pelo beco, a lembrar dos tempos em que também a França era subdesenvolvida. Você passa ali tirando fotos, vendo a coisa, e a temer pela sua cabeça.

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A Ruela dos Gatos é assim. Você ouve o arrulhar dos pombos acima, e o chão — embora a foto não revele em detalhes — é um “encanto” de refugos e penas.
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A cara é mimosa, mas não vi gato. O nome, diz a lenda, se deve pela facilidade com que os gatos passavam de uma sacada a outra num pulo.
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A Ruela dos Gatos em Troyes, hoje, mostrando um tanto de como eram as cidades francesas séculos atrás.

Eu não vou negar que o aspecto é de algo acabado e insalubre — meio favelão histórico, pitoresco mas não necessariamente belo ou atraente. Vale, entretanto, pela historicidade com suas casas tortas em madeira do século XVI. É, em verdade, mais pitoresco que belo. 

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Topava morar ali em cima? Uma ideia das aglomeradas cidades francesas de antigamente, neste preservado centro histórico de Troyes.
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As medievalescas ruas com casas de enxaimel em Troyes. Uma viagem no tempo.

Você aí pode exercitar a sua imaginação e visualizar os moradores de rua, os dejetos humanos acumulados, o cheirume que becos assim estreitos certamente eram, alguns séculos atrás.

Hoje, a única preocupação certamente é a criptococose dos fungos nas (abundantes) fezes de pombo. À época, a diversidade de moléstias possíveis era bem maior.

Dito isso, há partes muito belas neste xadrez de enxaimel que é o centro histórico de Troyes.

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No amadeirado centro histórico de Troyes.
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A cara ligeiramente preocupada. Ao ouvir o arrulhar dos pombos nos telhados — e sabe-se lá onde mais, pois aquilo que o ouvido escuta o olho nem sempre vê — quem tem cocoruto tem medo.
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No vazio por onde passava o vento.
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A beleza das casas mais conservadas no centro de Troyes, cidade histórica da França.

Pausa para o almoço

Voltemos de repente aos tempos (pós-)modernos do século XXI para almoçar. Não sei bem o que os franceses da Idade Média ou do século XVI comiam, mas hoje aqui eu me reguei a vinho branco acompanhando um prato de massa com cogumelos no molho.

Eu tive que atender o telefone para uma daquelas chamadas longas, e acabei quase perdendo a hora do almoço aqui. A maioria dos restaurantes na França para de servir depois das 14h, então me sobrou o Le Tablier, que não foi mau. Eu estava ali perto da Rua Urbano IV, em homenagem ao papa filho de Troyes.

Eu daqui via também, na esquina, a Igreja de São João do Mercado (St. Jean-du-Marché ou, se você estiver se sentindo mais erudito hoje, Sanctus Johannes ad Mercaturam, como a chamavam em latim na Idade Média.) Não sei exatamente o porquê do nome; coisas da França do medievo.

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Meu humilde almoço aqui em Troyes. Vinho, aqui na França, também é humilde. Você consegue facilmente uma taça por 3 euros. Se bobear, sai mais barato que lata de refrigerante em algumas praças de alimentação de shopping no Brasil.
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Diante de uma loja em Troyes. Para não dizerem que eu não falei do champanhe, já que estamos na Região de Champanhe, olhem um aí bem grande. A garrafa é de verdade — eles aqui fazem destas gigantes também. Numa das postagens seguintes eu ainda falarei melhor sobre a feitura e degustação da bebida.

A Catedral de São Pedro e São Paulo

Eu dali me dirigi finalmente a conhecer a Catedral de Troyes, que vocês chegam a ver refletida na vitrine da foto acima. Em bela pedra, a edificação gótica data de 1208 e sobreviveu a todos os incêndios que acometeram esta cidade.

Ela é uma imensidão gótica, cobrindo uma área de 1.500m². 

Como é típico destas catedrais europeias em cidades medievais, você mal consegue tomar a distância necessária para fotografar a igreja toda.

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A Catedral de Troyes, edificada a partir de 1208, no centro histórico da cidade.
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A Catedral de São Pedro e São Paulo em Troyes (Cathédrale Saint-Pierre-et-Saint-Paul).
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Seu vasto interior.
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A imagem de Maria e as subsequentes arcadas góticas fazendo um efeito. Eu acho o contraste de claro e escuro encantador nestas igrejas.
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Imensa arcada gótica com muitos vitrais ao fundo.

Encerrando a visita

Eu circularia ainda um tempo ali por Troyes mais algumas horas, vendo também das ruas “normais” da cidade, mais para fora do miolo do centro histórico.

Os canais ao redor do “coração” tem avenidas bonitas, bem pacatas, arborizadas e boas de se sentar por uns instantes. É ali que há também um monumento-coração em homenagem à cidade, bom de fotografar.

Coeur de Troyes
O coração de Troyes.
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Com o canal que circunda o “coração” de Troyes, no centro.
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Áreas boas onde se sentar. Tudo relativamente pacato por aqui, exceto por aquelas ruas apertadas no miolo do centro histórico.
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Mais das autênticas casas de enxaimel, sempre presentes aqui em Troyes.
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A prefeitura da cidade com as bandeiras francesas.

Epílogo: Alberto, prazer.

Eu nem me demorei tanto assim, e não sei por que cargas d’água o trem de retorno a Paris ia cheio.

Mal houve onde sentar neste trem regional, e o lugar que me foi assinalado acabou sendo num vagão pleno de crianças. Do meu lado, sentaria-se dali a pouco uma moça francesa ligeiramente mais jovem que eu — e com aquele ar de imperatriz que as francesas frequentemente têm perante estranhos.

Eram daqueles arranjos de poltronas com duas de frente para duas, e mesas entre elas fazendo um espaço para quatro pessoas irem conversando (ou não). De frente para nós, iam dois garotos morenos de seus 8 anos que conversavam, rodavam, e aprontavam com outros garotos levantados dos outros assentos e circulando pelo corredor. Parecia quase excursão de umas três famílias responsáveis por umas nove crianças.

Uma criança menor no outro lado do corredor — coitada — reagia gritando a tudo como se estivesse sendo exorcizada, enquanto que duas pré-adolescentes (irmãs mais velhas de um dos garotos de frente a mim) conversavam entre si numa língua afegã. Sim, era uma mistura de franceses brancos, franceses de origem africana, e refugiados afegãos.   

O hiper-ativo garoto afegão sentado diante de mim me olhava e, em francês, não demorou a puxar conversa.

— “Você está jogando?“, indagou ele me vendo ao celular.

Não, eu estava lendo notícias do Brasil. Ele quis ver a tela, viu o idioma, não entendeu o que estava escrito, e perguntou que língua era.

— “Português“, respondi eu.

— “Você é português?“, perguntou ele como uma flecha, naquele tom rápido e empolgado das crianças hiperativas.

— “Não”, respondi sorrindo e deixando ele no ar, já que tínhamos bastante tempo.

— “Você é americano??”, perguntou ele de repente franzindo a cara, como que numa hostilidade infantil, mas ainda assim hostil.

Esse é o tipo de pergunta que eu respondo de acordo com o contexto. Adoro uma oportunidade de fazer lembrar que latino-americano também é americano, mas neste caso — e com uma criança de 8 anos — achei por bem não entrar naquela discussão.

— “Não”, respondi monossilábico na brincadeira, ainda mantendo o mistério. Mas ele pareceu agora mais movido pela possibilidade de eu ser dos Estados Unidos do que em descobrir de onde eu era.  

— “Eu não gosto dos americanos, porque eles invadiram o meu país”, explicou ele gratuitamente, e carregando um rancor de infância que, creio, infelizmente carregará por muito tempo, se não por toda a vida.

Achei aquilo forte, e fiquei a refletir sobre o fiasco de os Estados Unidos passarem 20 anos lá, gastando trilhões, e o balanço incluir o ressentimento até das crianças.

A moça francesa ao meu lado, pedagógica, tentou tergiversar que as coisas eram complexas, etc. O menino não se convenceu, mas deixou aquilo para lá, e se voltou para mim novamente, como que intrigado ou atiçado pelo meu quase-silêncio.

— “Você é italiano?!”, palpitou desta vez como quem estava crente de agora ter acertado. 

— “Eu não sou italiano“.

— “Mas você tem cara de italiano. De Albeeeerto“, disse ele com aquele tom exagerado do sotaque italiano.

— “Eu sou brasileiro“.

Ele quis saber algumas coisas de futebol, e eu de quebra perguntei sobre de onde ele era, e quem eram aquelas pessoas. Fosse qual fosse o tema, eu agora para ele era Alberto. Dizer que esse não era o meu nome era inútil.

Falou que não tinha mais o pai, e que morava com a mãe e o padrasto — de quem ele segredou não gostar muito. Ambos estavam no trem e apareceriam dali a um tempo para reunir os seus.

Esse é Albeeerto, do Brasil“, apresentou-me ele a este e aquele, com quem eu então trocava cumprimentos com o olhar. Não tinha mais jeito.

Quando desembarcamos em Paris, ele foi embora falando o meu nome em alto e bom tom. Quer dizer, não, mas também não importava. Dizem que quem viaja vive muitas vidas, e naquela ali —por uma hora — Alberto era eu. Prazer. 

coeur a noite
A coração de Troyes iluminado à noite.
Mairon Giovani
Cidadão do mundo e viajante independente. Gosta de cultura, risadas, e comida bem feita. Não acha que viajar sozinho seja tão assustador quanto costumam imaginar, e se joga com frequência em novos ambientes. Crê que um país deixa de ser um mero lugar no mapa a partir do momento em que você o conhece e vive experiências com as pessoas de lá.

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