Não chame qualquer vinho espumante de champanhe. Champanhe (ou Champagne) é uma região da França, o histórico condado — e depois província — a partir de onde essa bebida se difundiu. Primeiro na alta sociedade europeia, e depois para o mundo.
Vamos conhecer um pouco dela aqui na origem e participar de uma degustação. Há vários lugares onde fazê-lo. A região fica 140 Km a leste de Paris num misto de campos de uvas e cidades históricas. Não é exatamente “na roça”, pois as principais cidades aqui são de médio porte, e a produção de vinhos — embora preserve saberes e métodos tradicionais — hoje é um agronegócio de ponta.
Cheguemos a Reims, a principal cidade desta região de Champanhe. Há trens de alta velocidade (Trains à Grande Vitesse – TGV) desde Paris que chegam aqui em meros 45 minutos. (Se comprada com antecedência de algumas semanas ou uns poucos meses, você consegue essa passagem por até €18.)
Havia um cheiro de flores no ar quando desembarquei, numa manhã cálida de sol com os seus 16 graus em Reims.



Champanhe: A região da França e o surgimento da bebida
Um pano de fundo é essencial para se compreender a origem disto tudo. Champagne em francês significa o mesmo que Campania em italiano — ou seja, os campos.
O nome se originou nos tempos dos romanos antigos, que colonizaram esta região a partir das invasões de Júlio César nos idos de 50 a.C. Teve ali início o chamado Período Gallo-Romano (séc I a.C. – séc V d.C.), que mesclou nativos gauleses à gente do Mediterrâneo sob a batuta de Roma.
São dessa época as primeiras adegas ainda preservadas nesta região — inclusive o subsolo da que visitaremos. Embora os celtas e depois os gregos já tivessem aparecido com vinho aqui na atual França, foi com os romanos que o cultivo de vinícolas se difundiu.
Já se conhecia, inclusive, o fenômeno natural da formação de borbulhas no interior das garrafas de vinho, mas ainda se estava longe de valorizar isso. Pelo contrário, era visto como defeito.

Eu já lhes falei no post em Provins como o Condado de Champanhe era uma região próspera na Idade Média. Faziam-se aqui as chamadas Feiras de Champanhe várias vezes no ano, de acordo com o calendário religioso. Nada tinha a ver com a bebida, mas com o nome da região. Vendiam-se mercadorias oriundas de toda a Europa e mais além.
Dizem, inclusive, que foi aquele mesmo conde Teobaldo IV (1201-1253) — o mesmo supostamente responsável por trazer a rosa à Europa — quem trouxe consigo também uvas ao retornar de uma das Cruzadas no Levante. Uma delas teria sido a variedade que, cruzada com outra já existente aqui, teria originado a famosa chardonnay, uma das poucas aceitas no fabrico de champanhe.
Não se sabe ao certo se esse foi realmente o caso. Os europeus cristãos, afinal, em tempo começaram a dizer que tudo o que surgia de diferente havia sido trazido nas Cruzadas. O fato é que chardonnay, assim como as variedades pinot, são as típicas aqui de Champanhe e as únicas utilizadas na bebida verdadeira de origem.
Quem desenvolveu muito isso foram os frades, ainda naquela Idade Média, que nas suas abadias produziam vinho. As borbulhas, porém, eram vistas como um mau sinal, sinal de um vinho defeituoso, defeito este causado pela fase da lua ou por ação do demônio — já que garrafas de vidro vagabundo medieval explodiam sozinhas pela pressão.

Uma das mais famosas dessas abadias francesas, a Abadia de São Nicásio (Abbaye Saint-Nicaise), fica aqui em Reims.
A sua homenagem é a um bispo aqui da cidade, fundador da Catedral de Reims e martirizado ainda no século V.
As fundações dessa abadia beneditina de 1231 são ainda o subsolo de uma das adegas do fabricante Taittinger, que você pode visitar.
Mas por que as borbulhas se formam, afinal? Se não era a ação de espíritos sobre o vinho, o que ocorre?

A elaboração do champanhe e o savoir-faire francês
Um pouquinho sobre a feitura e o processo.
O champanhe é feito através de um processo de dupla fermentação. A primeira é a mesma fermentação dos vinhos, na qual o açúcar do sumo da uva se transforma em álcool com a ação de uma levedura (em geral, a Saccharomyces cerevisae).
Já a segunda fermentação se dá quando a levedura encontra o álcool já fermentado, e nessa nova reação se formam bolhas de gás carbônico. Hoje em dia, essa segunda fermentação é feita propositadamente, adicionando-se levedura e açúcar à mistura de vinho branco para formar borbulhas.
Na época medieval, dos sustos que os frades tomavam com as garrafas explodindo, havia uma particularidade desta região de Champanhe. Se você notar, esta região é das mais ao norte que há produzindo vinho. As vinícolas crescem bem em regiões temperadas, mas não muito frias. É por isso que se planta uva na Califórnia, não no Canadá; no meio da Argentina, não na Patagônia; e sobretudo nos países do Mediterrâneo, não na Europa nórdica. A própria região de Champanhe já é um tanto mais fria que o ideal, e uvas tintas pouco se dão bem aqui.
Um problema era que as baixas temperaturas do inverno interrompem a ação da levedura — que “desperta” de novo na primavera e, encontrando álcool já em parte fermentado, forma bolhas. Como à época medieval se usavam vidros fracos, as garrafas estouravam com facilidade quando o tempo começava a esquentar. A ideia de se fazer caves ou adegas profundas foi exatamente para contrabalançar isso, mantendo no subsolo uma temperatura estável ao longo do ano.


Como os reis franceses, por tradição, eram sempre coroados aqui em Reims (no post seguinte vocês saberão por que), o vinho branco daqui ganhou estirpe. Era servido nos imensos festejos de coroação e ganhou a fama de ser “o vinho dos reis”.
Os frades e outros trabalhavam com afinco para contrabalançar as limitações que o clima impunha às uvas. O mais famoso deles foi Dom Pérignon [lê-se Pê-rrim-NHÔN], monge beneditino que nasceu e morreu nos mesmos anos do rei Luís XIV (1638-1715).
Foi ele quem aprimorou o cultivo das uvas desta região e encontrou as misturas consideradas as mais harmoniosas — embora ainda a essa época se visse a presença de bolhas como um defeito horrendo, e ele buscasse meios de evitá-las. Acabaram por começar a utilizar vidros mais grossos nas garrafas e também rolhas de cortiça, trazidas da Espanha. (Antes, utilizavam-se uns tampões feitos com fibra vegetal de cânhamo.)
Somente após a morte de Luís XIV, durante a chamada Regência (1715-1723) de Filipe II, o Duque de Orleans, durante a menor idade de Luís XV, é que se começou a apreciar a presença de bolhas. Dizem até que pegaram o gosto da aristocracia inglesa, que recebia os vinhos borbulhados por lá e gostavam. Pourquoi pas?

Começou-se então a produzir o vinho borbulhado deliberadamente a partir do século XVIII. O processo tradicional leva de 2-5 anos.
Pega-se vinho (quase sempre branco) e adiciona-se algo de açúcar e levedura para iniciar a segunda fermentação. No caso dos mais baratos, feitos também com uvas mais baratas, põe-se tudo num tanque pressurizado onde se processa grande quantidade de vinho de uma vez. Este método requer algumas semanas, e é aquele utilizado para fabricar os espumantes mais baratos (jamais um champanhe).
O champanhe — e outros espumantes de estirpe — requerem que esse processo seja feito garrafa por garrafa, daí elas serem viradas de cabeça para baixo. Ali é para que qualquer resquício de levedura venha para o pescoço da garrafa, em vez de se depositar no fundo.
Regularmente, as garrafas são giradas para que aquela deposição de levedura se mexa, até que ao fim o pescoço da garrada é congelado, e aquele resíduo é removido. Inteira-se o montante retirado congelado com uma solução doce, para completar a garrafa, e ela é fechada com uma rolha.



Visitando uma produção e fazendo a degustação em Reims
Há incontáveis produtores de champanhe em Champanhe, e uma meia dúzia de grandes marcas oferecem visitas guiadas pelos seus estoques com degustação no final.
Se o que você procura é um passeio campestre por uma vinícola, é preciso ir de carro ao interior mais rural ou juntar-se a um dos tours de dia inteiro, que são mais caros.
Já se a sua intenção é algo mais breve, de visita guiada por uma destas adegas tradicionais seguida por degustação, é muito mais fácil (e mais barato). Você pode fazê-lo em Reims ou em Épernay. Essa última é uma cidade relativamente pequena, enquanto que Reims tem também outros atrativos e pode ser mais facilmente feita até como bate-e-volta desde Paris, pois tem estação onde para o trem de alta velocidade.

Se você for um aficcionado, terá muitas casas aqui a conhecer, e poderá comparar tantos fabricantes quanto o seu bolso permitir. Já se a sua visita é mais por interesse cultural ou curiosidade, vale saber que os tours e as estruturas dos lugares são deveras parecidas, então basta visitar uma. Foi o que eu fiz.
Em Épernay, o fabricante mais visitado é a Moet et Chandon, que tanto organiza passeios pela vinícola quanto cafés da manhã regados a champanhe (€ 95 por pessoa).
Em Reims, as marcas principais são a Taittinger e a Veuve Clicquot. Clicando nos nomes você chega aos sites oficiais onde reservar, em várias línguas. Todas, naturalmente, oferecem tours em francês mas também costumam oferecê-los em inglês — e às vezes espanhol, alemão, ou italiano em horários menos frequentes.
Não há um consenso acerca de qual é o melhor. Todos os tours tipicamente duram 1h (ou um pouco mais) e incluem tanto uma visita guiada explicativa adega afundo quanto a degustação. O valor do ingresso depende da qualidade do que você quer degustar. Os mais baratos, com uma taça simples de champanhe ao final, saem na casa de 25 ou 30 euros. Se você quiser degustar produtos “reserva” ou outra qualidade especial, o custo é maior.
(Atenção: as produtoras de champanhe costumam estar fechadas às segundas-feiras.)

A experiência do tour e da degustação
Eu chegava quase que corrido desde a Estação Ferroviária de Reims para o meu tour de degustação de champanhe já às 10h da manhã. Parece coisa de alcoólatra. (Vai ver foi por isso que pouca gente quis e ainda havia vaga.)
Eu escolhi a Taittinger porque as suas adegas em Reims ficam no que foi a medieval Abadia de São Nicásio, que eu queria conhecer. A abadia gótica foi destruída pelos revolucionários no fim do século XVIII, mas você ainda passeia pelo interior subterrâneo.
Eu havia deixado Paris para este bate-e-volta só com uma bobagem no estômago, e sem muito tempo para tomar café direito antes da hora do tour.
Disparei pelos 2,5 Km ruas de Reims abaixo até as adegas da Taittinger do outro lado do centro histórico, com um olho no relógio e outro nas padarias que me pudessem servir algo de interessante e rápido de comer. Acabei por comer dos dois melhores quiches da minha vida, e que me dão vontade de voltar a Reims só para comê-los novamente.
Comi pela própria rua, ao modo vida moderna, até chegar ao que é um sóbrio centro de recepção ao visitante. Lá encontrei os poucos que me acompanhariam no tour — um casal holandês de meia idade, mais uns pares ou trios de jovens de nacionalidade indefinida. Tudo já estava pago antecipadamente pela internet no ato da reserva.

Éramos sete turistas. Parece haver menos gente de manhã. Eu havia lido relatos queixosos acerca de grupos grandes demais que quebravam o clima da visita, mas eu não tive esse problema. Talvez em parte ainda pelos fins da pandemia.
A experiência completa na Taittinger dura cerca de 1h (uns 50min de tour + a degustação). Quase todo o trajeto se dá no subsolo, nas profundezas do que foi a Abadia de São Nicásio do século XIII. A guia francesa ia nos explicando sobre o processo de feitura da charmosa bebida.
Aprendemos, para além do que já lhes disse acima, que a distinção entre champanhes Doux (Doce), Demi-Sec (Meio-seco), Sec (Seco), Extra-Sec (Extra-seco), Brut (Bruto) e Extra-Brut (Extra-bruto) dependem sobretudo da quantidade de açúcar que se põe para a segunda fermentação (a que forma borbulhas). Aprendi também que o champanhe rosé é aquele que leva um breve toque de vinho tinto na mistura.
Aqui, se misturam uvas chardonnay, pinot noir (uva escura de suco claro) e pinot meunier — as três clássicas. Entretanto, há detalhes aí de quantidades e misturas exatas (além do terroir específico, isto é, a característica biofísica da região e do solo) que adicionam ainda mais detalhes ao sabor. Cada fabricante tem os seus segredos.



Afora as coisas sobre o champanhe em si, há também marcas de certas passagens históricas por aqui, como quando o czar russo Pedro, o Grande, visitou este lugar. Ou quando a Resistência Francesa utilizou este subterrâneo como abrigo durante a Primeira Guerra Mundial. Você até hoje vê marcas disso.



A degustação de champanhe ao final, já de retorno lá no centro de visitantes, acaba já virando o aperitivo de antes do almoço.
O meu ingresso dava direito a uma taça só. Se você quiser pagar mais, o céu é o limite — pode experimentar os champanhe reserva e o que mais quiser, além de levar para casa.
Eu vou ser verdadeiro com vocês e dizer que o meu paladar amador não nota nenhuma grande diferença entre este aqui e o prosecco ou outros espumantes de qualidade, mas enfim. Talvez o seu paladar seja mais apurado.
De todo modo, vale a sensação cultural gostosa de estar experimentando champanhe em Champanhe.


Eu volto em seguida mostrando o que mais vi em Reims, esta cidade histórica onde os reis da França eram coroados.
Ihhhh que delícia. Chiques meu jovem, o senhor, o lugar, e a Champagne. Adoro Champagne. Deu água na boca. hahaha
Linda região.
Só não sou muito amiga dos subterrâneos hahah.
Muito interessante a produção, os tipos de uvas e o processo. Mas com certeza o mais interessante, além de colher tudo isso, é a degustação. hahaha. Aquece a alma e o coração, ahahah
Valeu. Gostei.