Reims [lê-se Rãs] é das cidades mais históricas de toda a França. Nada a ver com os anfíbios — ao contrário de Büdingen, a cidade dos sapos na Alemanha. É só como se lê o francês.
Aqui eram tradicionalmente coroados todos os reis da França. Ou talvez, para maior efeito, eu devesse dizer os reis de França, como ainda se faz em Portugal.
Isso se dá porque foi aqui que Clóvis (466-511), rei dos francos, recebeu o batismo e abraçou oficialmente o cristianismo nestas terras. Os reis franceses precisavam então seguir o mesmo ritual, no mesmo lugar, para que sua coroação fosse igualmente sacramentada e reconhecida. Hoje, há ali uma magnífica catedral medieval, das mais belas de toda a França.
De quebra, Reims foi também onde a Alemanha Nazista assinou a sua rendição na Segunda Guerra Mundial, e há um museu sóbrio e impressionante aqui na sala onde isso se deu. Reims, como vos digo, é uma cidade pra lá de histórica para os franceses.
Eu já contei no post anterior das minhas peripécias aqui experimentando champanhe nesta região de Champanhe. Agora, é hora de ver o que mais a cidade oferece para acompanhar.


A Reims de tradições, e visitando a sua catedral
O sacre dos reis de França
Afora o champanhe, este aspecto histórico-religioso é o principal elemento na alma de Reims. Uma visita aqui não está completa sem se experimentar da bebida e conhecer a sagrada Notre-Dame de Reims.
Vir aqui, como lhes disse no post anterior, hoje requer mera viagem de 45 minutos desde Paris num trem de alta velocidade que você reserva por €18 se o fizer com antecedência. (Usa-se para isso o oficial SNCF Connect no site ou o seu aplicativo.)
Antigamente, no tempo dos reis que já tinham Paris como sua capital, a viagem em caravana para vir ser coroado aqui era um evento de muito maior magnitude. Exigia preparativos, e demandava tempo. Dizem que o rei e seu numeroso séquito levavam um mês viajando entre uma cidade e a outra, detendo-se pelo caminho.
Isso porque os reis franceses não precisavam simplesmente ser coroados, eles necessitavam ser ungidos aqui em Reims tal qual Clóvis — seguindo um meticuloso ritual — para que seu lugar no trono fosse sacramentado. Isso já deu muito pano para manga, como quando usurpadores tentavam impedir que o herdeiro ao trono chegasse a Reims para fazer esse ritual.

“Le roi est mort, vive le roi!“, proclamava-se em França na Idade Média. Seguiam-no fazendo também nos tempos modernos absolutistas assim como na Inglaterra, que utilizava o francês como idioma da corte. (Expliquei a razão na minha postagem em Rouen.)
A frase não é algum tipo de ironia. É que se entendia que a transferência da coroa era instantânea. O herdeiro ascendia ao trono e era declarado o novo rei no momento em que o rei anterior era dado como morto.
É por isso que o que mais contava era a consagração, a unção formal do rei aqui em Reims, quando a Igreja formalizava aquela honraria divina que era governar.

Esse chamego todo da Igreja Católica com os reis de França não era em vão, nem à toa. Tampouco era pura e simplesmente pelo achego que a cúpula religiosa europeia sempre teve com o poder.
Acontecia algo mais específico aqui na França que tornava essa relação especialmente próxima. Enquanto que pela Europa Central e na futura Itália a Igreja às vezes exercia também o poder temporal (como ainda é no Vaticano), e você tinha arcebispos que também ostentavam títulos de nobreza (como em Salzburgo e muitas outras partes), na França a Igreja sempre dependeu da realeza para contrabalançar o poder dos nobres.
Se lá na Europa Central e na Itália isso exerceu uma forma centrífuga que dificultou a consolidação de estados centralizados, na França se deu o contrário, já que um clero sem poder temporal tinha interesse num rei forte intimamente vinculado à Igreja e que a protegesse.
Ninguém ache que as classes dominantes dominem sem certa medida de tensão entre elas. Na França, ao contrário do que ocorria pela Áustria, Baviera e outros, não havia arcebispos-condes nem arcebispos-duques. O clero, portanto, investiu numa monarquia poderosa que em tempo descambaria no absolutismo francês, a partir de uma realeza intimamente ligada aos cardeais.

O Ritual de Coroação dos Reis Franceses
O Palácio do Tau (Palais du Tau) recebe este nome porque seu formato arquitetônico lembra a letra T (tau em grego). (Os franceses acabam por ler como se fosse “tô”.) Aqui, os reis a serem ungidos precisavam dormir de véspera.
Na manhã do dia, o rei era despertado pelos eclesiásticos, que o ajudavam a se vestir, e ele selecionava quais dos seus acompanhantes nobres teriam a honra de atuar como Reféns da Santa Ampola. Estes eram cavaleiros que, montados, teriam destaque na procissão na qual o chefe da Abadia de São Nicásio vinha descalços trazendo o óleo santo que dizem ter sido o mesmo utilizado por São Remígio são trás, no século V, para ungir Clóvis.
Esse abade beneditino vinha descalços, trazendo o vidro antigo num relicário acorrentado ao pescoço. Era chamada a Santa Ampola, que teria sido descoberta no sarcófago de São Remígio aqui em Reims na Idade Média. Segundo a crença, São Remígio não tinha desse azeite sagrado aqui na terra dos francos, e ele então lhe foi enviado direto dos céus por uma pomba (ou pelo Espírito Santo). Daí, se mantinha o direito divino dos reis de governar, como que investidos nessa potência pelo próprio Deus.

Atraídos pela estética, a gente às vezes até se esquece por um momento das agruras que se causavam a tanta gente com base nesse suposto direito.
Os Reféns da Santa Ampola a cavalo sustentavam um pálio — um toldo daqueles de procissão — sobre o abade e outros monges descalços, cada um dos quatro sustentando-o de um canto.
Assim iam até a Catedral de Notre-Dame de Reims, onde o abade entregava a Santa Ampola ao Arcebispo de Reims, sempre o responsável pela unção dos reis de França.
Foram raras as ocasiões em que o próprio papa coroou o rei dos francos. Ocorreu com Pepino, o Breve (em 754), quando esta pegada de direito divino entre os francos começou, e foi Reims numa visita papal. Depois, houve a famosa coroação do seu filho Carlos Magno em 800, o qual foi ser coroado em plena Basílica de São Pedro, em Roma.
O Arcebispado de Reims assegura a sua posição como o lugar de coroação dos reis franceses a partir do século XI, com Henrique I sendo coroado nesta catedral em 1027. Foi o nadir do poderio real francês na Idade Média, o seu ponto mais baixo. Os nobres — condes, duques e barões — eram então mais poderosos e tinham mais terras que o próprio rei, ainda que fossem formalmente súditos dele. A Igreja e a realeza precisavam um do outro.
O que começou como uma simples unção evoluiu a partir do século XIII para todo um ritual elaborado que seguia prescrições detalhadas. Surgiram os chamados Ordos, ou Ordines Coronationis Franciae, inteiras liturgias com juramentos específicos que o rei deveria fazer diante de todos — dentre eles, o de defender a Igreja — sob cânticos específicos em latim.
Ao que o rei presta o juramento, ele é ungido com o óleo da Santa Ampola e investido com a espada de Carlos Magno (Joyeuse, ou “alegre” no feminino). Recebe também o cetro chamado de Mão da Justiça, o anel da aliança com o seu povo, e uma coroa de celebração — dentre muitas outras regalias, no sentido literal da palavra.

Com essa coroa, o rei então seguia para um banquete no Palácio do Tau, e teria pela frente um lento retorno de celebrações no caminho de volta a Paris.
Raros foram os reis franceses que não foram coroados aqui em Reims, quase sempre por razões muito específicas (como Luís VI, que ainda no século XII havia se desentendido com a Igreja e foi negado pelo Arcebispo de Reims como “não sendo suficientemente católico” — acabou sendo coroado em Orleans, e depois deu o troco.)
Esse ritual foi importantíssimo no contexto da Guerra dos Cem Anos (1337-1453), quando o herdeiro Carlos VII foi impedido de vir ser ungido em Reims pelos partidários dos borgonhos e ingleses, que queriam investir outra pessoa com os poderes reais. Com o aparecimento de Joana d’Arc e a liberação de Reims é que Carlos VII, ungido aqui em 1429, consegue começar a virar o jogo até por fim expulsar a ameaça inglesa.


Quem, em tempo, ficou ressentido de toda aquela pompa foi o povo. Morriam tantos de fome e de doenças enquanto o rei se passava por uma versão soberba de Jesus Cristo.
Na Revolução Francesa, durante o chamado Terror (1793-1794) sob o comando de Robespierre, os revolucionários destruíram a Abadia de São Nicásio (da qual só restou o subterrâneo, hoje adega de champanhe, que lhes mostrei no post anterior) e estilhaçaram a Santa Ampola em praça pública.
Dizem que, já sabendo do risco de isso ocorrer, alguém guardou algo do óleo de São Remígio noutro recipiente, e depois do estilhaço público houve quem coletasse pedaços do vidro ancestral. Isso tornaria a ser usado no século XIX, quando por um tempo houve a restauração do Antigo Regime na França.
Entretanto, os tempos eram outros. Luís XVIII ascendeu ao trono sem unção, e Carlos X em 1825 seria o último de todos os reis de França a ser coroado nesta pompa. Não caiu bem entre a população, e ele seria deposto nas revoluções que tomaram a Europa em 1830.
As joias da coroa da França foram vendidas em 1885 para desencorajar os monarquistas que até hoje ainda há (se você nunca ouviu falar em Luís XX, com sua pinta de cantor de pop-latino, veja-o aqui). Joyeuse, a espada de Carlos Magno, está exposta no Museu do Louvre, e este Palácio do Tau em Reims é hoje um museu.



A Catedral de Reims
A Catedral de Reims é um espetáculo. Ela pode ser algo menor que a sua contemporânea Catedral de Amiens (a maior de todas na França), mas aqui em Reims os vitrais talvez sejam ainda mais bonitos.
Você caminha por aquele vão principal e imagina o tanto de história que o precede. No chão do meio do corredor central, vê-se a placa indicando “Aqui São Remígio batizou Clóvis, rei dos francos.” Olha para cima e vê a luz penetrar os azuis e roxos dos magníficos vitrais.






Você pode adquirir um ingresso para subir os 249 degraus da torre, se quiser. Neste caso, trata-se de um tour guiado, em que alguém sobe com um pequeno grupo explicando sobre a coroação dos reis de França aqui em Reims.
Há subidas em vários horários por dia, embora (talvez ainda pela pandemia) eu tenha encontrado visitas apenas em francês. Você pode, inclusive, adquirir ingressos combo que incluam tanto esta subida quanto a entrada no Palácio do Tau.



Abaixo, você vê os horários exatos de saída dos tours às torres da Catedral de Reims.

Outros lugares em Reims
O coração de Reims é mesmo aquele eixo central entre a catedral e o Palácio do Tau, que são inclusive tombados pela UNESCO como Patrimônio Mundial da Humanidade.
Porém, vale visitar também a Basílica de São Remígio, um monumento histórico do século XI ainda mais antigo que a própria catedral, e a maior igreja românica — de antes do gótico — do norte da França. Ela fica perto de onde era a Abadia de São Nicásio, hoje centro de visitas da Champanhe Taittinger.
Dizem que o santo está ali enterrado no seu subsolo.




Eu vim a esta basílica logo depois de fazer a degustação de champanhe na Taittinger, ao final da manhã. As ruas de Reims estavam tranquilas, pois ela nem de longe acumula o número de turistas estrangeiros que se vê em Paris ou em Nice.
Os poucos havia perambulavam pela área da catedral ou do Palácio do Tau, o qual eu visitei em relativa tranquilidade, às vezes tendo salas inteiras só para mim — eu e as imagens dos reis de França entre a secular tapeçaria.
Estar ali pisando onde tanta coisa ocorreu, sobretudo no lugar do batismo de Clóvis, dava-me uma curiosa sensação de estar presente na História. Ainda que se tenha pouca admiração política pela monarquia (eu sou um democrata), não deixa de haver um peso simbólico naquilo tudo. Quilos de séculos faziam-se presentes.
Após subir e descer das torres da catedral, restava-me apenas uma visita: à sala de rendição da Alemanha Nazista, uma parada obrigatória aos fãs da História das guerras mundiais.




O Museu da Rendição
Ao fim da tarde, confesso que minhas pernas estavam pedindo arrego após os 249 da igreja e todo o vai-e-vem pós-champanhe. Mas eu não quis ir embora de volta a Paris sem ver este museu.
Nesta sala histórica, a Alemanha Nazista assinou a sua rendição incondicional em 1945. Isso se deu em 7 de maio, pouco mais de uma semana após o suicídio de Hitler. Não entrarei aqui nas teorias alternativas que sugerem que Hitler teve algum outro fim, quiçá até na América do Sul com outros nazistas.
O certo é que a Alemanha queria se render apenas no front ocidental, para continuar enfrentando a União Soviética. Entretanto, os Aliados não aceitaram — exigiam uma rendição completa, e a obteriam.


Você começa assistindo a um filme tipo documentário de 10-15 minutos mostrando cenas daqueles fins da Segunda Guerra aqui em Reims, sobretudo a liberação da cidade o início das negociações.
Há vários painéis explicativos, jornais originais de 1945, equipamentos — até você chegar na sala que era o QG Aliado. Segue preservado do jeito que era, e dá até para ver quem estava sentado onde.
Sensação também histórica a de estar ali, ainda que diferente das anteriores relacionadas aos reis de França.



Se a assinatura desta rendição se deu em 7 de maio, por que então é 8 de maio aquele considerado o dia da vitória?
Porque os soviéticos não aceitaram os termos daquele acordo assinado em Reims. Disseram que o soviético ali não tinha autoridade para assinar em nome da União. O que eles queriam, na verdade, é que o evento da rendição fosse algo histórico no coração da Alemanha — em Berlim — e colocando de forma mais clara a participação imprescindível da União Soviética no conflito.
Foi então que a 8 de maio de 1945 se assinou um novo documento de rendição em Berlim, este aceito por todos, e celebrado dia 9 de maio como Dia da Vitória. Algumas nações celebram o dia 8 e outras, o dia 9.

Bela, grandiosa, histórica. Emocionante Reims.
Segundo contam os livros de História da França, Clóvis era filho de Santa Clotildes. que rogava a Deus que ele se tornasse cristão.
Diante de uma batalha indecisa ele teria dito:
“Jésus-Christ, fils du Dieu vivant, selon Clotilde, si tu me donnes la victoire, je croirai en toi et me ferai baptiser.”. Ele venceu e se batizou .E foi batizado, pelo visto, ai na bela e magnifica catedral, pelo não menos celebrado Saint Remi.
Magníficas essas imagens!… Que maravilha!… Esplendorosos e soberbos esses templos. Ave-maria, meu jovem, com tanta beleza, com tanta riqueza de detalhes, com tanta luz e sombra, tons, cores… Um espetáculo que, pelo visto, se repete nessas mimosas e vetustas cidadezinhas francesas. Encantada!…
A Catedral é fenomenal!… Das mais belas da França. Seus vitrais são espetaculares. Seu interior é de encher os olhos.
A Basílica de Saint Rémi é linda. Seu interior rebuscado e elegante é grandioso.
Que beleza, meu jovem amigo. Que cidadezinha linda e cheia de História.
Feliz em conhecer essas maravilhas da Arte e da Cultura. E impressionada com tanta beleza. Cada dia gosto mais da Arte associada à historicidade, e , claro, desses vossos passeios e postagens.
Adorei a historicidade. Os livros não abordam bem essas temáticas.
Belissimos esses arcos romanos. Lindas paragens.
Esses museus são maravilhosos. Testemunhos modernos de tudo que rolou ao longo dos tempos.
Parabéns pela postagem. Das mais belas . O senhor é um ”mestre na pena”, como se dizia há um tempo atrás. Congratulations!… Uau. Amei.
importantíssimo o registro, pouco abordado pela História aqui no Brasil, dessa rendição alemã na França, com detalhes e documentos. Uma beleza.
Aqui ganha destaque a assinatura da rendição na própria Alemanha.
Emocionante ver a sala onde o fato se deu. Comparável àquela sala do julgamento de Nuremberg.
Patognomônica a postagem hahahah