Chartres, França. Estamos a 90 Km de Paris, na cidade histórica de uma das mais antigas e emblemáticas catedrais góticas que há. É também das melhor preservadas, com vitrais originais que remontam ao século XII. Resistiu até às Guerras Mundiais — com histórias curiosas por detrás.
Quem procura aquele típico ambiente misterioso do medievo que imaginamos — em que misticismo religioso e sombras misturam-se às belezas góticas de um outro tempo — não se desapontará aqui.
A Chartres de hoje é uma cidade moderna (ela infelizmente não resistiu muito aos bombardeios no século XX, ao contrário da catedral), e quando se adentra a igreja se passa a um outro ambiente, um outro tempo.
Chartres é também uma viagem curta, que pode ser feita como um bate-e-volta desde Paris e até mesmo combinada com o Palácio de Versalhes, se você se planejar. Ambos ficam na mesma direção, e Versalhes meio que é quase metade do caminho entre Paris e Chartres. Eu mostrei aquela primeira parte do caminho no post anterior, e agora é hora de completá-lo.


Chartres: um pouco sobre a cidade histórica
Chartres fica na região popularmente conhecida como o Vale do Loire. Trata-se da área às margens do rio Loire [lê-se “luar”] considerada o berço da França por todo o seu papel-chave na História deste país desde os albores da Idade Média. São muitos os castelos, catedrais góticas e paragens campestres que atraem milhões de visitantes todos os anos.
A cidade em si pré-data até a chegada dos romanos. Viviam neste lugar os carnutos, um dos povos da antiga Gália. Civitas Carnutum em latim virou Chartres em francês.
Este foi o berço da França porque aqui ficavam as terras de posse do rei, enquanto que país afora havia múltiplos condes e duques que mandavam mais do que o monarca na Idade Média. Então os reis aqui de fato governavam, perambulando de castelo em castelo, os quais começaram a ficar cada vez maiores e mais requintados a partir do século XV — culminando com palácios como Versalhes ou Chantilly no século XVII.
Os Vikings em Chartres
Chartres foi atacada, pilhada e destruída pelos vikings em 858, e depois mais uma vez em 911 por Rollo, o líder viking — retratado em seriados — que viria a se tornar Duque da Normandia, como vos contei em Rouen.
Dali a alguns séculos, se contaria a história de que o bispo de Chartres espantou os vikings brandindo o véu de Nossa Senhora — tido como relíquia supostamente guardada aqui na catedral até hoje —, e que a Virgem intercedeu pelos franceses. Segundo a crença, seria precisamente o véu que Maria usava quando da Anunciação pelo arcanjo Gabriel.
Seja como for, se tal véu chegou aqui mesmo ou não como presente do imperador em Constantinopla a Carlos Magno, cristãos de fé passaram a peregrinar a Chartres em grande número, o que junto com um terreno fértil — e próximo da Coroa — fez prosperar a cidade.
Breve, já no século XII, ela levantaria aqui uma imensa catedral.


Os detalhes da Catedral de Chartres
Há um guia inglês chamado Malcolm Miller que praticamente habita a Catedral de Chartres e gosta de dizer que não se pode vê-la toda num só dia. Ele é especialista (autor de livros e guias sobre a catedral) aqui desde 1958, e portanto já um senhor bem idoso (se é que ainda não terá sido chamado pelo Pai quando você estiver me lendo).
São, de fato, inúmeros os detalhes. Mais de 150 vitrais preservados dos séculos XII ou XIII — o maior número dentre todas as catedrais da França. Tudo nas cores medievais tinha razão de ser, simbolismo, e são muitas também as estátuas dentro e fora.




Voltas por Chartres
Uma laje de concreto armado cobre a plataforma na estação despretensiosa de Chartres. A cidade, claramente, já gozou de tempos mais ricos.
Você ali desembarca sem fazer muita ideia do que esta cidade significou — das peregrinações medievais que levantaram a catedral, das riquezas de outrora, ou da presença próxima dos reis. A catedral, entretanto, logo surge em vista. Você sai numa praça calçada como tantas hoje França afora, onde jovens se sentam e alguns circulam de patinete ou em bicicleta.
Havia bem pouca gente. Na igreja, eu veria alguns grupos de idosos com guias e outros viajantes. No mais, pouco parecia uma cidade turística — parecia mais uma cidade normal em dia de feriado. Eu, por vezes, seria a única pessoa descendo certas ruas.



O centro de Chartres tem ares estudantis, tanto pelos que o habitam às tardes e às noites quanto, sobretudo, pela “requalificação” (um termo também usado em francês) completada aqui recentemente. Divide opiniões.
De todo modo, não nos demoremos: sigamos logo à catedral, o que há de principal a ver aqui. Eu caminhei por ruas quietas até lá.




Vista da lateral ela consegue ser ainda mais bela.




Vamos entrar?
Há tours guiados aqui costumeiramente 2x ao dia, às 12:00 e às 14:45 — mas verifique no site oficial para ter certeza, pois eles variam conforme a época do ano.
Se você quer tours em inglês (e não em francês), e quem sabe até com o próprio Malcolm Miller (se você vier enquanto ele ainda é vivo), precisa escrever-lhe ou telefonar-lhe através deste contato aqui. Se não me engano, custa €12 por pessoa. Já a entrada por conta própria é gratuita. É possível alugar um audioguia também, se quiser.


A ideia não é justificar transgressões em nome do divino, mas demonstrar que o caminho individual de cada um às vezes tem percalços, e que com persistência você chega lá.






Chartres para além da catedral
Chartres não é uma cidade onde se passar muito tempo. Pode muito bem ser combinada com Versalhes no mesmo dia, se você tiver gás. O essencial aqui mesmo é a catedral, mas há algumas outras paragens por onde perambular se você quiser.
Eu, por exemplo, desci a ver o que restou da cidade antiga, às margens do modesto rio Eure. À diferença do que ocorre noutras partes, essa área mais histórica não é exatamente o centro atual da cidade — fica a algumas quadras dali, por vias que sobem e descem, e casas que não formam realmente “quadras”.
Desci até a Rua do Massacre.






Se você estiver a se perguntar onde andavam as pessoas, elas estavam quase todas no centro não-histórico — ou menos histórico — na parte moderna da cidade. É onde também estão os bares e restaurantes, caso você esteja a procurá-los.




Uma historieta final para concluir.
A Catedral de Chartres quase foi explodida pelos norte-americanos durante a Segunda Guerra Mundial. Havia uma crença de que ela estava sendo usada como abrigo para franco-atiradores nazistas nesta França ocupada, e a ordem havia sido dada para a artilharia abrir fogo.
Entretanto, o coronel Welborn Griffith do exército americano se recusou a fazer aquilo. Ao invés, pegou um motorista e veio pessoalmente à catedral, subindo até a torre e constatando que não havia ninguém ali. Comunicou então que cancelassem a ordem, evitando que esta obra-prima medieval virasse sacrifício desnecessário na guerra.
Poucas horas depois, ele foi morto numa cidade vizinha, a 16 de agosto de 1944.
A catedral segue de pé.