Bem-vindos a uma região da França que muita gente nem se dá conta de incluir na França. Pensa-se sempre em Paris ou nos campos de lavanda no sul do país, ou ainda no Vale do Loire e suas paragens medievais; mas raramente se evoca a Flandres francesa, esta região à fronteira com a Bélgica e tão semelhante a ela e à Holanda — ainda que seja França.
Assim é Lille, que acontece de ser também a cidade natal do General De Gaulle, líder da resistência francesa na Segunda Guerra Mundial e que depois se tornaria président de la république. Há hoje um museu aqui na casa onde ele morou.
Como em Bruxelas, Lille também tem uma Grande Place (a praça principal, lugar da antiga feira da cidade), um velho prédio da bolsa com ares flamenguescos (flamengo é quem é de Flandres) e sua estética colorida típica; e, ademais, aqui se bebe mais cerveja que vinho, sinal mesmo de que há algo de diferente nesta parte do solo francês.
Eu chegava para uma estadia curta nestes fins de primavera europeia, o tempo querendo aos poucos esquentar, mas também algo chuvoso, como é mesmo típico também desta Europa do Mar do Norte.
Venhamos a conhecer um pouco do que esta cidade e esta região têm.


Um pouquinho sobre a Flandres francesa
A quem reconhece o nome “Flandres” mas não sabe muito bem precisar o que é, nada tema. Eu cheguei a postar bastante sobre a região nas minhas andanças pela Bélgica, sobretudo em Antuérpia e em Gante.
A Bélgica enquanto tal é um país novo, criado apenas em 1831 na esteira das guerras napoleônicas. Antes, havia aqui um misto de regiões sob duques e condes que respondiam ou ao rei de França ou ao sacro-imperador romano-germânico — aquela complicação política que era a Europa feudal.
Entretanto, Flandres já se destacava como uma próspera região costeira e comercial desde a Idade Média. Grosso modo, a região abarca pedaços do que hoje são a Bélgica, a Holanda, e este extremo norte da França.
A coluna com a figura de uma mulher na praça central é uma referência à própria cidade. Apelidam-na a Coluna da Deusa (La Colonne de la Déesse), o que não retrata divindade nenhuma, mas Lille ela mesma.
Sabe toda aquela história do branqueamento do açúcar brasileiro (e caribenho) nos idos de 1550-1750, para onde escoava a nossa produção canavieira no tempo colonial? Pois então, nem todos os mercadores eram propriamente holandeses, muitos deles eram flamengos — é que era fácil misturar tudo.
Era a partir daqui que se dava muito do comércio do açúcar e outras especiarias no século XVI, e foi assim que o nome “flamengo” entrou para o léxico corriqueiro do Brasil. O bairro carioca recebeu o nome destes navegadores que lá aportavam, e dali depois o clube. As cores preto e vermelho são características desta região, originalmente.
Foi Luís XIV, o Rei Sol, quem conquistou esta parte de Flandres para a França em 1667. Lille já era um próspero centro de produção têxtil, e Luís XIV era um rei ambicioso, que dizia que a utilidade da paz era dar tempo de se preparar para a guerra. Assim ele tinha a sua França sempre em movimento, e as várias forças sociais sempre sob sua liderança. (Você pode ler mais sobre o Rei Sol na minha postagem no Palácio de Versalhes.)

No tumulto da Revolução Francesa, em 1792 os Habsburgo austríacos — que a essa altura davam as cartas no Sacro-Império — tentaram tomar a região de volta. Sitiaram Lille, mas não conseguiram tomá-la dos franceses.
Hoje, a coluna com a figura de uma mulher na praça central é uma referência à própria cidade. Apelidam-na a Coluna da Deusa (La Colonne de la Déesse), o que não retrata divindade nenhuma, mas Lille ela mesma. Foi erigida em 1845 para o aniversário de 50 anos daquela defesa contra a tentativa de retomada dos austríacos.
Lille abraçou, portanto, a sua afiliação francesa, ainda que culturalmente se pareça mais com o país vizinho. Veem-se as casas alaranjadas de tijolinhos como na Bélgica, a enfeitada arquitetura flamenga, e — leal às suas origens culturais — tem como prato arquetípico um o cozido flamengo (une carbonnade flamande), de carne de boi cozida na cerveja. Só faltaria ser na Stella Artois para parecer ainda mais belga que francês.


São muitas as paragens em Lille que mostram esta situação cultural misturada, de elementos mais claramente franceses e elementos flamengos que mais se assemelham à Bélgica.
Vamos chegando.


Daremos uma volta ali dentro desse Museu de Belas Artes de Lille daqui a pouco. São muitas as obras interessantes.


Bordejando por Lille, nova e velha, seca e molhada
O meu primeiro contato com Lille, chegado de trem, foi na sua garbosa estação ferroviária Lille Europe [não leia em inglês, eles aqui a chamam Lille “Eurrópe”, pois o nome em francês se escreve da mesma forma].
Não se trata de uma ferrovia histórica d’outros tempos. Lille Europe foi feita nos anos 90 para simbolizar a pujança moderna e europeia da França — esta sua cidade estrategicamente localizada a um pulo de Bruxelas ou de Londres (que então era ainda parte da União Europeia, mas que segue sendo uma cidade importante da Europa de qualquer jeito).
Ela é uma estação bem avant-garde, uma bela e arejada edificação de vidro que me deu uma primeira impressão bastante “século XXI” de Lille, ainda que a edificação seja de um pouco antes.
Logo, porém, eu estaria ali me imiscuindo na parte antiga, aonde se chega a pé.

Era uma tarde de sol de quase fim de primavera europeia. Os jovens sentavam-se à rua, as pessoas circulavam, e havia vida — ainda que não houvesse os agitos de Paris. Estamos claramente aqui numa cidade de médio porte, não numa capital.
A luz dourada do sol encantava o campanário e o prédio da ópera que lhes mostrei, naquele belo centro de raízes flamengas que me mostrava bem em que parte da França eu estava.
Curiosamente, entretanto, nota-se aqui também certa pujança e pulso social francês diferente daquele da Bélgica. É como se aqui o andar das pessoas fosse mais decidido, as suas cabeças um pouco mais eretas, uns graus a mais de ângulo que as dos belgas, e a coisa em geral se mostrasse mais organizada que na vizinha Bélgica.
A sensação me foi um pouco como vendo dois irmãos criados sob regimes diferentes, que se parecem no físico mas se comportam se maneiras distintas. Mesmo que eu não tivesse visto as bandeiras azul-vermelha-e-branca flamulando, eu saberia que estava na França.





Eu fiz bem em aproveitar o sol enquanto ele durou, porque no dia seguinte Lille me apresentaria o lado mais cinzento que é típico desta região da Europa.
Estas áreas costeiras do Mar do Norte são notórias pela frequência das nuvens e da chuva, aquela chuva fina que dá e fica.
Eu estava instalado no Hôtel Calm, bem no centro de Lille, e de fato tudo ganhou rapidamente aquela atmosfera introspectiva — de lado de dentro da casa, quando as coisas estão meio escuras e molhadas lá fora — que este norte da França consegue ter. Uma mulher calma à recepção ajudava no silêncio dos estreitos corredores deste hotel.
A chuva não me impediu de sair. Na rua, imigrantes passavam — aqueles homens de origem árabe a fumar sob toldos às entradas deste ou daquele restaurante ou loja de algum primo ou camarada seu. Um lugar de massagem tailandesa aqui, outro restaurante etíope ali, com os seus letreiros coloridos — e às vezes luminosos — a completar o carnaval estético que tanto me lembra a Bélgica.
Ainda que a cidade fique menos bela sem o sol (como quase todo lugar), eu agora queria visitar por dentro alguns lugares. Foi a hora de eu ir ver a Igreja de São Maurício, o Museu de Belas-Artes de Lille, e a Casa de Charles de Gaulle.


São Maurício é um dos santos mais bem-quistos da França e do norte da Europa. Ele era um legionário romano, da famosa Legião Tebana no Egito.
Daí ele ser retratado como um negro africano. Foi martirizado em 287 d.C., e acabou por dar origem também à Ordem dos Cabeças Negras — negras devido à sua cor — que lhes mostrei em Tallinn e em Riga, nos Países Bálticos.



A França, é claro, tratou logo de lembrar a Lille que estamos aqui no Royaume de France, não mais no Sacro-Império dos germânicos. A hagiografia de Joana d’Arc como defensora da pátria e da cristandade católica tornou-se símbolo nacional desde muito tempo.
Ao Museu de Belas-Artes de Lille
Um dia frio, um bom lugar pra ler um livro, e o pensamento lá em você — como cantaria Djavan — mas eu estava era nas ruas de uma Lille nublada e cada vez mais molhada. Certas horas eu achava que deveria ter dado ouvidos ao cantor alagoano, mas não tinha dias para passar sem ver as coisas da cidade.
Além do mais, eu pude me esconder da chuva um tempo no recomendadíssimo Museu de Belas-Artes de Lille. Comparto aqui com vocês algumas obras que mais me chamaram a atenção. Há bastante coisa de artistas flamengos como Pedro Paulo Rubens (ou Peter Paul Rubens no original) e outros.




Você aqui encontra um misto de peças sacras e de obras não vinculadas à religião. Comecemos pela arte sacra, que tanto dominou o medievo e a renascença.



(Abundam os textos históricos sugerindo um papel muito mais importante a Maria Madalena do que aquele que as Igrejas — católicas ou protestantes — tradicionalmente lhe creditaram. Se a discriminaram, não é culpa minha. Você pode ler mais a respeito aqui, por exemplo, com os escritos achados em Nag Hammadi.)
Algumas obras de tom mais clássico a seguir…


… e duas curiosas que me chamaram a atenção sobre o humor humano, para terminar esta visita ao Museu de Belas-Artes de Lille.


A Casa do General Charles De Gaulle
Lille chorava quando eu saí do museu — chovia mais do que quando eu entrei. Abaixo você poderá ver o astral molhado da cidade, de quando eu me dirigia sem guarda-chuva, andando rápido de mão francesa em mão francesa, rumo à antiga casa do general De Gaulle.
No caminho, passei por um arco do triunfo original mais de 100 anos mais antigo que o Arco do Triunfo de Paris.





O famoso Arco do Triunfo de Paris foi iniciado em 1806, na época dos glamures napoleônicos. Não se perca: arcos do triunfo são uma invenção dos romanos antigos — e alguns dos originais, dos tempos de Roma, seguem de pé em lugares como Rimini, na Itália, e muitos outros.
O de Paris, portanto, se tornou o mais famoso mas não é o mais antigo da França.


Cedo ou tarde — quando a chuva ia começando um pouco a cessar em Lille — eu chegava à morada antiga do seu mais famoso filho, o general Charles de Gaulle (1890-1970).
A sua casa de infância é hoje um museu que recomendo aos curiosos de plantão ou aos interessados nos idos da Segunda Guerra Mundial, quando De Gaulle liderou a resistência francesa. Enquanto que os chamados colaboracionistas do Marechal Pétain ajudaram os alemães nazistas com um regime afim, a resistência francesa exilou-se na Inglaterra e de lá conclamava os franceses a não ceder às tentações de uma visão de mundo nazi-fascista.
Você escuta discursos originais de De Gaulle (sim, em francês) aqui, e descobre como foi a sua vida antes da fama. Há muitos itens, o que se chamava em latim de memorabilia, e os detalhes da vida do segundo comandante militar mais famoso da História da França (depois de Napoleão, naturalmente).


Na Primeira Guerra Mundial (1914-1918), De Gaulle já se destacaria por sua coragem de ir às “terras de ninguém” entre as trincheiras para ouvir as conversas dos inimigos alemães. Ele havia aprendido alemão na escola jesuíta que frequentou.


Já na Segunda Guerra Mundial, De Gaulle liderou as forças da chamada França Livre, e após a guerra deixou a política. Porém, nos agitos dos anos 50 com a Guerra da Argélia (que havia sido absorvida como território francês no norte da África), ele foi içado de volta à presidência.
Foi ele quem fundou o atual formato da república francesa — a chamada Quinta República —, sendo um dos poucos países da Europa que tem um presidente com poder de fato em meio a nações majoritariamente parlamentaristas.
De Gaulle acabou por concordar também com a independência da Argélia em 1962 e fez história, embora fosse criticado por isso pelas forças armadas e pelos franceses brancos na África que queriam que a metrópole retivesse o controle sobre aquele território. Zidane e milhões de outros franceses provêm dessa diáspora de famílias vindas à França com a guerra (no caso dele, uma família nativa berbere).
Nessa esteira, De Gaulle — que não se dava muito com os anglófonos por buscar uma França soberana que Emmanuel Macron hoje tenta resgatar — os ouriçou ainda mais com seu famoso grito “Vive le Québec libre!“, proferido na parte francófona do Canadá.
Estimulou-os a obter soberania, e foi quase. A província canadense do Québec realizaria referendos de separação na década de 1970 e 1990, e quase saiu. A frase, de qualquer forma, segue na cabeça dos canadenses francófonos.
Já no Brasil, uma curiosidade é como a fama de De Gaulle é por uma frase que ele nunca proferiu. “O Brasil não é um país sério“ lhe é até hoje creditada — às vezes com certa dose de vira-latismo. Porém, ela veio do próprio embaixador brasileiro na França, Carlos Alvez de Souza, numa conversa informal com jornalistas. Ele próprio o esclareceu num livro em 1979.
Os franceses em geral gostam do Brasil. A depreciação somos nós mesmos que fazemos.
Eu deixo vocês com as palavras de Jacques Chirac em 1997 tentando esclarecer a coisa pela centésima vez a uma jornalista brasileira.
(…) eu faço questão de asseverar que o general de Gaulle jamais disse isso e eu vo-lo digo oficialmente. Foi uma declaração que veio da Embaixada do Brasil em Paris.
O general de Gaulle jamais disse isso por bons motivos. Primeiro porque o general de Gaulle tinha grande amor pela América Latina. Foi aqui recebido triunfalmente e era, além disso, um homem extremamente educado e cortês. É impensável que ele tenha dito uma coisa como essa. É uma invenção pura e simplesmente, cuja origem nós pudemos perfeitamente determinar, foi uma besteira.
Para mim, eu creio que o Brasil é um país extraordinariamente sério. Mas o sério pode ser entediante. O Brasil possui essa particularidade. É um país sério, que gere seus assuntos com seriedade, mas, para tanto, ele não perde nem seu entusiasmo, nem o seu charme e essa é provavelmente uma de suas grandes forças.


Parabéns pelo belo trabalho de publicar suas vivências de viagens a partir do interesse genuíno e do pulsar do coração..
Esse olhar diferenciado e ir aonde talvez a maioria não iria.. sair do “comum” me encanta muito.. procuro fazer isso nas viagens…
Gostando muito de ter chegado até aqui neste momento de viagens pelo virtual mas cocriando o futuro da experiência..
Até a franca que nunca tive interesse de visitar …pelos relatos aqui me chamou a atenção…
E que alcance teu objetivo-meta-proposito das viagens até 2030..
Muito obrigado por essa mensagem tão gentil, Aline! Seja sempre muito bem-vinda!