Faz relativamente pouco tempo que eu ouvi falar pela primeira vez em Monreale — a Montis Regalis da Sicília, cidadezinha próxima a Palermo, cá no sul da Itália, com sua catedral medieval tombada pela UNESCO como Patrimônio Mundial da Humanidade.
A razão? Os seus quase 1000 anos de História, com mosaicos bizantinos no que era o estilo árabo-normando do medieval Reino da Sicília.
Monreale é mais um motivo para vir a Palermo — se aqueles na postagem anterior não lhe tiverem sido suficientes. Ela fica a meros 20-30 minutos de ônibus. Na prática, hoje, é como se fosse um subúrbio ou cidadezinha-satélite de Palermo, mas com jeitinho de cidade histórica.
Vir aqui é mais simples do que parece.

Chegando a Monreale, Sicília
Minha postagem anterior já lhes falou bastante acerca de Palermo, a capital siciliana e a meu ver uma das cidades mais impressionantes (e deliciosas) em toda a Itália. Monreale, embora fora da cidade, é meio que visita obrigatória a quem vem aqui.
Há três meios principais de se chegar cá: Il buono, il brutto, il cattivo, se me permitirem parafrasear o clássico filme de Sergio Leone — mal traduzido no Brasil como Três Homens em Conflito (1966).
A forma bruta — e mais barata — de você vir do centro de Palermo até Monreale é com o ônibus urbano n. 389. Ele parte da Praça Indipendenza, que fica detrás do Palácio dos Normandos. Passa apenas um por hora, pois é o mesmo veículo que vai e vem. A chave é identificar o horário. Como eu gosto de prover recursos a todo mundo (e os brutos também amam), este é o site oficial com os horários de ônibus aqui.

O método buono para se chegar a Monreale — e, francamente, o mais simples — é tomar o ônibus turístico Hop on, Hop off, desses que há em várias cidades do mundo.
Eu costumo evitar estes ônibus “turistão”, pois costumam ser caros e fazer pelo quíntuplo do preço as mesmas rotas que você pode bem fazer a pé ou em transporte público. Porém, toda regra tem exceção.
Aqui em Palermo, o hop on, hop off vem super a calhar. Você verá um pontinho de venda na Piazza della Vittoria — do lado da frente do Palácio dos Normandos —, e é bem possível que alguém o aborde vendendo quando você passar.
Ele custa 6 euros, ou 10 euros ida e volta, com cerca de 1h40min de tempo em Monreale. É suficiente. Nem falta, nem sobra. Inclui um audioguia mequetrefe, mas o melhor é a comodidade — por uns eurinhos a mais — de não ficar correndo atrás de ônibus urbano que só passa uma vez por hora. Foram dez euros muito bem empregados.


O método cattivo, que sempre existe, é você conseguir um táxi. Não sei bem qual a situação de aplicativos aqui em Palermo. Pode valer a pena se você conseguir encher um carro. Sozinho ou em dupla, eu acho que compense.
(Estou fazendo aqui trocadilhos com as palavras, mas estritamente falando, cattivo em italiano quer dizer “mau”, não “cativo”. Só cuidado para não entrar em nenhuma roubada com os táxis sicilianos e acabar dando nisso.)
Lembram-se dos Quattro Canti? Eles são o cruzamento mais imperioso aqui e o coração de Palermo. Cruzam-se não a Ipiranga com a Avenida São João, mas Via Maqueda e Via Vittorio Emanuele. Esta última é a que traz ao Palácio dos Normandos e também à Catedral de Palermo, assim como à Piazza de la Vittoria, onde a bela siciliana morena me vendeu o bilhete.


Interlúdio: O sorvete e o refugiado
Antes de chegarmos a Monreale, permitam-me relatar uma breve conversa que tive aqui em Palermo.
Eu adquiri o bilhete de ônibus para tomar a saída do hop on hop off às três da tarde, e nisso fui fazer outras coisas até dar a hora. Entre elas, peguei um sorvete para tomar — destas gulodices de quando a gente está na Itália.

Foi aqui eu, no meu deleite, fui abordado por um refugiado africano. Era um garoto que, como eu, parecia estar na casa dos 30, e pediu um trocado enquanto se desculpava por incomodar.
Eu teria que ser a pessoa mais fresca e sem noção do mundo para que aquele incômodo fosse maior que o respeito à situação de vulnerabilidade dele.
Dei um trocado e perguntei de onde ele era. Nigéria, há 1 ano e 8 meses em Palermo, após três dias pelo deserto e depois cruzando o mar. Perguntei a ele como era isso, fazer o que ele fez.
“Você está a todo momento entre a vida e a morte; a morte ali do lado“, respondeu-me com sobriedade resignada. “No deserto, sua garantia de vida é água. Tem que carregar muita consigo; e não pode beber demais não, como se fosse se encher, como normalmente bebe. Só um pouquinho de cada vez.“
— “Você gosta daqui?“, perguntei-lhe eu.
— “Que nada. Não tem trabalho; eu tenho que ficar pedindo. Por mim, eu iria pra a França, a Alemanha, algum outro lugar melhor. Mas sem documentos, não posso viajar pra lugar nenhum. Posso pegar o ônibus e sair da cidade, mas é só.”
— “Não pode ir nem a Roma?“
— “Que nada. Só posso ficar aqui na Sicília. Até processarem meus documentos. Eles dizem que vai sair, mas não se sabe quanto tempo leva. Pode levar anos. Já se vão quase dois.“
— “Você deixou família na Nigéria?“
— “Minha mãe. Eu falo com ela pelo telefone de vez em quando. Às vezes consigo usar a internet, e escrevo pra um tio meu, que aí passa minhas notícias à minha mãe que ficou lá.“
Assim como é um, são muitas as histórias. De vida e de morte — só que estas não há quem conte. As de vida há quem conte, mas poucos a ouvi-las. São sombras africanas que pairam por aqui, circulando entre as sombras de Palermo.
Não vou surpreender ninguém ao dizer que alguns acabam aliciados ao tráfico, e se põem a tentar vender droga aos turistas à noite. Uns chegaram a me oferecer — naquela típica abordagem Hey, brother!
Vida que segue. Sigamos, eu e vossas cristandades, até Monreale.

Monreale e sua catedral
Curioso que haja duas catedrais tão próximas, a de Palermo e esta, a de Monreale. São duas arquidioceses distintas, dois arcebispos, ainda que menos de 10 Km separem uma edificação da outra.
Isso é, em parte, pelas disputas de poder que aqui havia, e há uma lenda curiosa acerca destas duas catedrais — baseada em fatos reais.
Ambas foram iniciadas no século XII, e se conta que os bispos tinham inveja um do outro. Queriam que a sua catedral se impusesse em beleza sobre a outra.
O resultado teria sido que ambos morreram de ataque cardíaco ao ver a obra do outro. História apócrifa com cara de lenda, claro, mas a base é real: a Catedral de Palermo estonteante por fora, simples por dentro; a de Monreale simples por fora, mas quando o bispo de Palermo entrou para ver seu interior, morreu.


Um pouco de contexto histórico
Monreale se revelou lugarejo pacato, com idosos poucos às janelas, roupas estendidas nas varandas dos prédios baixos em cores de areia, e turistas a inevitavelmente visitar este Patrimônio Mundial da Humanidade.
A catedral data do tempo do reino normando aqui na Sicília. No post anterior eu vos falei bastante sobre aquele período. Junto com o período seguinte, de Frederico II (o stupor mundi, assim apelidado pelo maravilhamento que causava a todos), foi um tempo deveras próspero para esta ilha.
A Sicília teve papel importante na mistura de elementos árabes, bizantinos gregos e da Europa latina, que se conjugam aqui no Mediterrâneo. Foi fundamental também para a redescoberta da Grécia Antiga pelos europeus.
Como se sabe, os árabes da Idade Média eram plenos de curiosidade intelectual. Fizeram avançar a matemática e a astronomia, bebendo dos indianos e gregos, e cá trouxeram vários cultivos (ex. limão, laranja, berinjela, pistache) e tecnologias (ex. o moinho de água) durante o tempo em que governaram a Sicília, como outras partes da Europa mediterrânea.

Mesmo com o fim do Emirado da Sicília (831-1091), seguiram sendo referência de saberes para os europeus mais cosmopolitas.
Foi por isso que aqui viveu Dreses, o nome latinizado do geógrafo e cartógrafo árabe Muhammad al-Idrisi (1100-1165), que trabalhou na corte do conde normando Rogério I.
Os normandos, provenientes do norte da França (ver postagem em Rouen), desejavam ter um mapa confiável da Europa e seus arredores — o que era raro no medievo europeu, séculos antes da Era dos Descobrimentos.
O mais famoso mapa medieval da Europa veio portanto pelas mãos de Dreses, e ficou conhecido como a Tabula Rogeriana, em homenagem ao rei. Veja-o abaixo, se consegue identificar alguma coisa. Curiosamente, o sul está em cima, não o norte, o que é apenas convenção.


Aquele fim do século XII — quando a Catedral de Monreale estava sendo construída — foi também quando os europeus redescobriram Aristóteles e outros filósofos da Grécia Antiga através dos árabes.
Trabalhando para o stupor mundi, rei Frederico II aqui na Sicília, o escocês Michael Scotus (1175-1232) traduziria Avicenna (Ibn Sina) e Averróes (Ibn Rushd). Ele era também o astrólogo da corte, e uma destas figuras sui generis que ocorrem no mundo — nascido no norte das Ilhas Britânicas, veio Europa afora a aprender latim, grego, hebreu e árabe. Fez, então, as traduções de Aristóteles e outros ao latim a partir das versões árabes, acompanhadas dos comentários de Averroes e outros.
Essa redescoberta de Aristóteles, trabalhada em parte daqui na Sicília, precipitaria todo o movimento escolástico na Europa. Mas, a saber, a Igreja não gostou. (O clero detestava essa liberdade intelectual patrocinada por Frederico II, quem o papa viria a chamar de preambulus antichristi.)
Estas traduções de Aristóteles foram taxadas de heréticas e proibidas pela Igreja em certas partes. Somente muitas décadas depois, com São Tomás de Aquino e sua Summa Theologica (1265-1274), foi que se concebeu uma síntese entre a filosofia aristotélica e a doutrina cristã. Muito ele bebeu de Averróes, que já havia feito tal conciliação com a doutrina islâmica, quem Aquino chamava de “o comentador”.
Voltemos a Monreale, que ficou pronta bem quando a Summa Theologica estava sendo publicada, em 1267.

Adentrando Monreale
Ainda que se estivessem pensando em conciliações entre a Europa de fé latina e os árabes nesse tempo, a estética religiosa seguia dominantemente grega bizantina por aqui. Isso só começaria a mudar com Giotto e outros cem anos depois (ver a Cappella degli Scrovegni em Pádua, por exemplo), mas não ainda.
A Catedral de Monreale hoje contem também certos elementos renascentistas que lhe foram depois agregados, e eu os mostrarei, mas seu cerne é mesmo original medieval.
Vamos chegando, aproximando-nos da praça tranquila neste fim de tarde, onde as palmeiras elongadas e os jardins assistem à gente che viene e à gente che va. Não há tantos turistas aqui, e pouco havia fila para entrar.
Pagam-se meros €6 de acesso, para um bilhete comprado na hora, e que inclui acesso ao interior da catedral assim como ao seu telhado.

Lembre que não pode entrar com os ombros ou joelhos descobertos. A coisa é um pouco no olhômetro — vi mulheres que estavam praticamente com os ombros nus, mas passaram. Já outras tiveram que pagar €1,50 por um manto azul para entrar.
Você leva bem 1h30 para visitar tudo com tranquilidade, se subir ao telhado. A visita à igreja em si é tranquila e rápida. Há, porém, dois pontos de checagem do bilhete: um na asa à esquerda do altar, para ver certas capelas no interior, lindas e barrocas; e para subir às torres, o que toma mais tempo.
Já aviso que quem tiver mais de 1,80m pode precisar se encurvar, e quem tiver de 1,90 pra cima — ou for um pouco largo — vai ter dificuldade. Os degraus são amplos e íngremes. Dito isso, não é uma subida do outro mundo — havia idosos fazendo, embora eu tenha me admirado com a tenacidade desses.




Estou evocando o Ecce homo de Pôncio Pilatos, mas o que temos ali não é o Jesus surrado da Paixão, mas sim o Jesus Pantocrator (“governador de tudo”, às vezes traduzido menos literalmente como o todo-poderoso).
A figura, que lembra também o de Hagia Sophia em Istambul, com seu manto azul sobre o ombro e fazendo o mudra de origem budista com os dedos da mão, impõe-se em meio ao dourado e toda a plêiade de anjos e santos.
No teto, contudo, o forro estilo “favo de mel” de origem persa e árabe mostra a mélange de culturas que se dava aqui em Sicília. Olhe de novo na foto acima.




Você ali circula um tempo, olhando e tentando absorver aquilo tudo. A visão do Pantocrator impressiona, assim como as — mais recentes — capelas de barroco italiano feitas após o Renascimento.
Fazia um calor siciliano que emanava das pedras, mas não muito, pois que já era de fim de tarde.




Se estiverem prontos, poderemos começar a subir ao telhado.





Esta parte cá no alto, com suas subidas e voltas, é o que mais consome tempo na visita. É, contudo, uma parte agradável. Afora as belas vistas e a proximidade para os detalhes, eu tinha o ventinho de fim de tarde com o sol que começava a querer cair.
Deixei a catedral após visitá-la, dando ainda umas olhadelas finais, e retornei à praça. Há pouco outro o que ver em Monreale afora esta área, então me contentei em dar umas voltinhas breves pelas ruas de trás. (Notavelmente, são bem mais limpas que as de Palermo.)



Não sei como é viver aqui, mas Monreale me passou uma atmosfera de paz neste dia. Era hora de daqui a pouco voltar ao lugar onde on hop on hop off havia me largado — antes que resolvesse ir embora sem mim.

E assim eu retornaria a Palermo — à minha medina — após ver este Patrimônio da Humanidade, a linda Catedral de Monreale. Mas não era hora de eu deixar a Sicília ainda. Vem mais por aí.
Ihhhh que bonitinha essa cidadezinha. Já tinha ouvido falar mas não a conhecia. Lindinha. Arrumada, organizada, mimosa, arborizada, bem cuidada. Uma graça. E além disso histórica e artística.
Apreciei o jardim bem delineado, recortado, florido.
A Catedral do medievo é linda. Essa pintura semelhante à iluminuras de Bizâncio/Constantinopla são muito bonitas. Gosto muito dessa apresentação do Cristo. Aprecio também muito essas simbologias das mãos. O Budismo é mesmo rico nessa linguagem. Que bom que houve esse sincretismo.
Essa imagens do alto mostram a graça e a beleza do interior dessa ilha tão famosa e tão charmosa.
A Sicília é mesmo uma bela região.
Meu jovem, que mapas curiosos!… Tive dificuldade de achar os pontos conhecidos haha. Adoro mapas antigos e estes são interessantíssimos. Tentar descobrir as semelhanças e diferenças com o mundo de hoje é um agradável exercício.
Grandes figuras esses sábios, notáveis em vários ramos do conhecimento, tanto nas ciências como na arte, inclusive na poesia.
Muito importante, meu jovem , a valorização, o resgate histórico dos sábios e estudiosos árabes do medievo, esquecidos pelo ocidente e que prestaram inestimáveis contribuições ao mundo de ontem e de hoje.
Criei=me com um pai que adorava a Matemática e seus estudiosos árabes. Eu os conhecia pelos nomes engraçados e adolescente recebi de presente , “O Homem que Calculava”, um dos carros chefes da coleção de Malba Tahan, codinome de um matemático brasileiro, acho que Julio César de Melo e Sousa, se não me engano, também apreciador da cultura árabe do medievo.
Linda obra. Cada livro mais interessante que outro.
Não segui a área das Exatas, mas encantei-me pela cultura árabe.
E hoje conservo o amor e o respeito pelo legado desses sábios, desconhecidos por muitos dos estudiosos de hoje. Obrigada por esse resgate.
Eles merecem e o mundo de hoje precisa conhecê-los e ao seu legado.
Apreciei muito a região. Rica em cultura e arte.
Adoro arte com cultura, religiosidade e História.
Parabéns pela escolha o lugar e pela postagem.