“Florença do sul?“. Se você nunca havia ouvido tal referência, eu tampouco, mas há quem diga isso. Lecce [LÊ-tche], entretanto, tem méritos próprios. É uma cidade antiquíssima no salto da bota italiano, na região da Puglia.
É uma cidade para quem gosta de arquitetura ornamentada, igrejas barrocas, e calçadões ensolarados onde passear ao meio-dia e parar depois numa trattoria. Foi fundada ainda antes da Guerra de Troia, segundo dizem. Os romanos a conquistaram no século III a.C., e daí ela passaria da esfera grega à latina — mas alto lá.
A História deste sul da Itália é repleto de idas e vindas culturais. Os gregos bizantinos a tomaram de volta com a queda do Império Romano do Ocidente e sua tomada por bárbaros. Os árabes conquistariam a região antes de serem expulsos pelos normandos (mais sobre isso em Palermo).
Já desde o século XI a cidade fazia parte do Reino da Sicília — que se estendia para além da ilha e por todo o sul da Itália. É quando, nos séculos XVI e XVII, Lecce desponta como das cidades mais importantes do sul italiano. Vem a arte barroca que vamos conhecer.

Chegando a Lecce, Puglia
Eu estava sediado em Bari, a capital pugliesa de que ainda vou falar. De lá, são cerca de 1h45min de trem até cá, o que significa que você pode visitar Lecce num bate-e-volta (é o que recomendo, dormir em Bari me pareceu melhor que dormir em Lecce, mas fica a critério).
Não é sequer necessário reservar as passagens de trem de antemão. As passagens para os trens regionais podem ser compradas nas máquinas logo antes de embarcar. A viagem é cerca de 15min mais rápida nos Freccia, os trens de alta velocidade italianos que saem mais barato se você reservar antes (pelo site da Trenitalia). Sai coisa de €11,50 por trecho no regional (minha recomendação) e o dobro nos Freccia. (Mais detalhes sobre os trens italianos aqui.)
Eu já lhes falei das idas a Alberobello, Locorotondo e Martina Franca — todas elas cidades branquinhas bastante pitorescas aqui da Puglia. Mas a Puglia é uma região diversa, um multiverso próprio, e se você vai mais a sul nela, encontra coisas já bem diferentes.
Aqui em Lecce, o branco dá lugar ao ocre da pedra calcária cor de areia chamada pietra leccese. É o tom de quase tudo.


Cheguei a Lecce numa manhã ensolarada, quente mas não muito.
Ao chegar, havia um pê pê pê de africanos na plataforma da estação, tentando se orientar com os trens aqui da Itália. Eu já estava dando pela falta deles, os migrantes ou refugiados que cruzam o Mar Mediterrâneo em busca de uma vida melhor do lado de cá.
Deixei-os a se resolver, e me dirigi ao centro histórico, que fica a coisa de 800m da estação ferroviária.
O centro histórico de Lecce é um centro barroco, de 1600, com calçadões e vias amplas, então é muito diferente das ruelinhas de Bari ou Locorotondo. Sua tônica é a de uma cidade elegante, com as edificações barrocas em tom de ocre que me lembram também o sul da França. O que mais chama a atenção são as fachadas requintadas, decoradas com janelas e arcos neoclássicos.






Caminhos pelo ocre
Chegando ao centro histórico de Lecce, deparei-me com meandros cor de areia. As vias estreitas eram quietas entre as casas ocre, que não me indicavam se alguém morava ali. Pareciam aquele tipo de coisa em que há comércio no térreo e moradas (vazias?) nos andares de cima.
Aqui e ali, um bar ou alguma coisa, as breves varandinhas dos andares superiores colecionando alguma ferrugem na grade de proteção, já outras visivelmente melhor conservadas.





…até que você desemboca no anfiteatro romano cujas ruínas seguem no coração da cidade, obra do século II a.C. São coisas do tempo do imperador Adriano, que governou o império romano entre 117 e 138 d.C. Nessa ocasião foi que Lecce foi transferida de um outro sítio próximo para cá.
O anfiteatro foi descoberto no início do século XX, quando fizeram aqui escavações para construir o Banco d’Itália.

Dos romanos aos templários em Lecce
Vocês já ouviram falar na Via Ápia? Ela era das mais famosas estradas da Roma Antiga. Ligava Roma até Brindisi, um porto aqui pertinho na atual Puglia, mostrando o qual o Mediterrâneo era o centro do mundo romano e a Europa o seu quintal.
Pois uma das duas colunas romanas que marcavam o fim da Via Ápia se encontram hoje aqui, ao lado desse anfiteatro em ruínas. Ela hoje é conhecida como Coluna de Santo Orôncio (Sant’Oronzo para os italianos), um discípulo de Paulo que foi martirizado ainda no primeiro século. Ele é o padroeiro aqui de Lecce, e se diz que ele livrou Brindisi de uma epidemia, ao que a cidade agraciou Lecce em retorno com uma das colunas.



Se você se interessa por arqueologia ou História antiga, vale pagar €5 e visitar o Museu Faggiano, uma antiga casa escavada onde se vê de perto algo mais sobre o passado remoto de Lecce — incluso sobre os cavaleiros templários, que tinham nesta casa um centro seu.
É no albor do segundo milênio que as ordens religiosas de cavaleiros vão se formando (os templários em 1119), quase todas no contexto da guerra “sagrada” entre cristãos e muçulmanos.
Já desde o século anterior, cavaleiros e mercenários em busca de glória e posses materiais (terras e o que pudessem pilhar) mobilizaram-se rumo ao Mediterrâneo quando este sul europeu estava quase todo sob os árabes. Assim foi com o sul italiano (falei-lhes sobre isso na Sicília) como com a Península Ibérica.
Os normandos, oriundos do norte da França, foram pioneiros, mas em seguida vieram outros. Os templários, de muitas origens na Europa, aqui tiveram um centro nesta casa onde hoje é o Museu Faggiano até depois de 1200, quando então a morada foi convertida num convento de freiras franciscanas.






Mas pouco você verá dessa Lecce medieval, é a verdade. Quase tudo o que se encontra hoje data de 1500 em diante, incluso o Castelo di Lecce, mais conhecido como o Castelo de Carlos V, uma fortaleza edificada a mando desse sacro-imperador espanhol e romano germânico quando este sul da Itália fazia parte da Coroa de Espanha — e os turcos otomanos ameaçavam invadir a Europa.
A virada de maré se daria na Batalha de Lepanto (1571), uma das mais importantes do Ocidente, quando estas forças sobretudo italianas e espanholas venceram os otomanos no Mar Mediterrâneo e nunca mais eles tentariam seriamente invadir este sudoeste europeu. Contentariam-se em se consolidar nos Bálcãs e a tentar invadir Viena por terra (sem sucesso duas vezes).
O Castelo de Carlos V aqui, edificado entre 1539-1549, é meio que um elefante branco: a sinceridade me impele a dizer que a fortaleza não é particularmente bela. De quebra, havia moscas — muitas, daquelas que pousam na sua cara, tipo em filme de Hitchcock — e cheiro de bicho morto nos seus arredores.
A beleza de Lecce está noutros lugares.


A beleza barroca de Lecce nas ruas
Eu não sei até que ponto o apelido de “Florença do sul” procede, pois que são sobretudo do século XVII as lindezas de Lecce — muito após os tempos de Brunelleschi, Michelangelo e outros que embelezaram Florença no século XV.
Talvez seja por ambas terem uma Basílica da Santa Cruz (Basilica di Santa Croce), mas falaremos das igrejas mais adiante.
Só para a curiosidade de vocês, ela é esta abaixo com a linda fachada barroca de 1695, ao lado do civil Palazzo della Provincia di Lecce (uma província na Itália é como se fosse uma microrregião, maior que uma cidade e menos que uma Região).


Parece que todo mundo na Puglia se casa às 11h da manhã, e no verão. Você chega aqui nesta época, e é batata que encontrará as principais igrejas tomadas por festas de casamento — gente fina, aquele chique italiano com ares de gente de capa de revista e às vezes um quê de segurança de mafioso de óculos escuros e ternos à entrada.



Foi nessa que eu circulei, fazendo hora para o casamento acabar, e conheci os calçadões mais elegantes do centro de Lecce. Aqui e ali, moças na rua davam taralinos (tarallini) de degustação — uns biscoitinhos salgados bobos, feitos com massa, azeite de oliva e sal, e que pelo visto são típicos desta região.





As igrejas barrocas de Lecce
Essa acima é a Igreja de Santa Irene, uma das mais bem-quistas daqui, ela que já foi padroeira da cidade até em 1656 o Papa Alexandre VII trocá-la por Santo Orôncio.
Completada em 1639, ela é exemplo de uma época de riquezas para o mundo europeu latino — quando os jesuítas eram uma força pujante, a Coroa de Espanha controlava este sul da Itália, o trono português e portanto meio mundo. Riquezas das Índias e das Américas que, se comerciadas ou pilhadas em ações que hoje vemos com crítica, contudo legaram algo de belo na arte barroca dos seus templos.



Santa Irene tem entrada franca, mas se você quiser visitar (fora dos horários de missa) as demais igrejas históricas de Lecce, há um bilhete-combo que você pode adquirir em qualquer uma delas. Ele cobre as principais: a Igreja de São Matheus, de Santa Clara, a da Santa Cruz (Santa Croce), e a Catedral da Assunção da Virgem (Duomo di Lecce) com sua típica cripta de colunatas simples.
Individualmente, a entrada em cada uma delas custa €6. O tíquete-combo sai por €9, e vale a pena se você quiser ver barroco. Se vir mais de uma igreja, ele já compensa.
A catedral e a Basílica da Santa Cruz são as mais belas a meu ver, seguida da de Santa Clara.




Tudo aqui é perto, então vamos lá ver a catedral e adentrar a Basílica da Santa Cruz, o casamento tendo finalmente acabado.






Vamos, por fim, à Basílica da Santa Cruz, que junta do Palácio Provincial chega a ser mais cotada que a catedral.




Concluindo…
Lecce é um esplendor de barroco, como vos disse. Não sei se tem muito a ver com Florença — parece-me mais outra cidade bem diversa. Se você vier aqui, notará também a atmosfera de sul da Itália que é distinta daquela da Toscana. Clarão do dia, gente morena, rochas e ares que parecem dizer que as águas salgadas estão por perto.
Aqui, neste calor de pedras, céu e mar, tomei um sorvete e descobri mais guloseimas locais antes de ir embora. Vi das leccese — bolinhos em formato de barca com recheios cremosos variados dentro — que são comidas por toda a Puglia, que o meu anfitrião em Bari sempre trazia quentinhas para o café da manhã doce dos italianos, e fiquei conhecendo o que talvez seja um ancestral da coxinha.



Deixo o barroco de Lecce nos vossos olhos, e sigo caminho. Antes de retornar à minha temporária morada em Bari, capital da Puglia, eu veria ainda mais do que esta região tem a oferecer. A seguir.
