(Este será um post longo que conta por dois. Eu optei por não quebrar a história.)
Quem já não pensou em conhecer a Groenlândia, a enorme ilha ártica próxima ao Canadá no Atlântico Norte. Aquela que, dizem, pode derreter com a mudança climática global, mudar o balanço de água doce (derretida) e salgada no oceano e com isso interromper a corrente marinha do Golfo, levando a América do Norte a um longo e tenebroso inverno — tese que foi posta às telas no filme O Dia depois de Amanhã (2004).
Pode nunca ter lhe ocorrido vir cá até a Groenlândia, mas se você está aqui deve algum dia ter tido no mínimo a curiosidade de saber como ela é. Não é um bloco de gelo — é, em verdade, a maior ilha do mundo, se você desconsiderar a Austrália — embora 80% da sua superfície esteja mesmo coberta por uma manta gelada com quilômetros de espessura.
Tampouco a Groenlândia é desabitada. Os mais informados devem saber que ela “pertence à Dinamarca” (o que não é exatamente o caso), mas há 56 mil pessoas vivendo aqui, neste terreno que equivale aos estados do Pará e Mato Grosso juntos. A maioria deles são groenlandeses, nativos de cabelos negros e olhos puxados que lembram os indígenas da América do Norte. São os que eram chamados esquimós, embora esse nome tenha caído em desuso. A maioria vive na costa, nos 20% de terra não coberta por gelo.
Eles têm língua própria, o groenlandês ou, como eles próprios a chamam, kalaallisut, na qual Kangerlussuaq quer dizer “grande fiorde”. É onde aterrissam quase todos os voos internacionais, a porta de entrada para a Groenlândia, e um povoado minúsculo no meio do quase-nada onde eu vim me meter em busca do desconhecido





Kangerlussuaq
É verão. Sei lá, dá uma vontade boa de se dar, tempo bom de ser feliz, tempo bom de viajar para a Groenlândia. Ao contrário da escuridão gelada, você entre junho e agosto aqui presencia os dias eternos, quando o sol nunca realmente se põe.
Ainda ao portão de embarque no aeroporto de Copenhague, como na fila para o despacho de bagagens, eu já ficava olhando as pessoas de olhos apertados se aproximarem — estava afoito para ver de perto os groenlandeses. Quem me acompanha sabe que eu adoro a dimensão humana das viagens. Venho à Groenlândia tanto pelas paisagens gélidas quanto pelas pessoas, esse tipo nativo pouco visto noutras partes do mundo.
Claro que dei aquela bobeada e já estava achando que a turista chinesa era groenlandesa, mas logo em tempo você os vê, seus olhares divertidos algo mais simples e humildes que os dos muitos dinamarqueses louros que também povoavam o nosso avião — afora os demais turistas.
A saber, o avião vermelho e branco da Air Greenland não deveu nada ao das grandes companhias aéreas. Ainda dá, incluso no preço, despacho de bagagem de até 20Kg.
Eram quase 9h da manhã, e chegaríamos às 9:40 a Kangerlussuaq após 4h40min de viagem. São 4h de diferença de fuso horário, portanto uma daquela situações em que você viajar e chega “no mesmo horário” em que saiu.

Quando o piloto começou a falar em groenlandês, eu achei que eram falhas do microfone as pausinhas repentinas feitas nas palavras, sons como se a pessoa tivesse engolindo a língua e depois tornando a falar novamente. Coisas do idioma.
Eles quase todos falam também dinamarquês e inglês na Groenlândia.
O aeroporto de Kangerlussuaq se revelaria minúsculo, uma sala onde de um lado se despacha bagagem, do outro se vai pela segurança, e com uma escadaria se desce ao lugarejo aonde chegam as bagagens. Pelo outro lado, se sai do aeroporto.
Eu, entretanto, depois reveria meus padrões a passaria a achar este aeroporto de Kangerlussuaq até jeitinho, com um restaurante e uma lojinha de souvenirs. Não há wi-fi gratuita no aeroporto, mas pega 4G.
Vindo de Copenhague, não há propriamente um controle de passaporte. Um policial e uma funcionária viam-nos desembarcar, e havia um papel simples na parede dizendo “Cidadãos Não-UE favor apresentar seus passaportes”, mas vai quem quer. É no olhômetro.
Um chapa groenlandês de ar simples e da minha altura nos aguardava com a placa do Old Camp, minha acomodação. Ele vestia colete verde da Albatross Arctic Circle, empresa que domina o turismo neste pedaço. Tinha um rosto redondo, bochechas amplas e o sorriso tímido contido feito os asiáticos de país pobre — como que desprovido de qualquer prepotência. Pele morena, boca pequena.
Aqui neste aeroporto você abre uma porta da rua, dessas de entrada de farmácia, e basicamente está no exterior — um chão de pedregulhos e aridez sem vida que faz parecer que você voltou à Terra de 1 bilhão de anos atrás.



Kangerlussuaq — ou talvez fosse a Albatross Arctic Circle — tem um repertório notório de ônibus velhos, uns híbridos ônibus-caminhão que eles têm aqui para andar nessas estradas, com corpo e potência de caminhão por fora, espaço interno de ônibus por dentro — quase sempre com um ar de veículos de terceira-mão, com fita tape nos bancos e aquele cheiro de que nunca foi limpo.
Kangerlussuaq surge “do nada” na Groenlândia durante a Segunda Guerra Mundial, quando em 1941 o exército dos Estados Unidos estabelece uma base militar aqui. Escolheram esta localidade porque, nesta ilha onde o mau tempo impera (voos atrasados ou cancelados são uma constante), Kangerlussuaq é dos pontos mais amigáveis. Daí ter ficado de legado como principal aeroporto e hub aéreo do país.
Muito da infraestrutura parecia datar também daqueles anos 40.
Há, doutro modo, um chão arenoso de tundra que tem ar de que, em se plantando, nada dá.


“E o que afinal você foi fazer aí??“
Pergunta pertinente que eu fiz a Christine, francesa na mesma acomodação que eu. Era uma quase-senhora de seus quase cinquenta anos, ligeiramente pesada e com aquele ar de funcionária pública que havia ganho repentinas férias aqui. Falava pouco inglês (dizia ela que não conseguia entender o sotaque dos groenlandeses), e eu a conheci ajudando-a como intérprete à recepção.
Christine ficaria 5 dias sozinha aqui em Kangerlussuaq, pois segundo ela os voos domésticos para outros lugares da Groenlândia estavam muito caros. Crianças, não façam isso em casa. Eu depois vos darei todos os detalhes e dicas sobre como planejar uma viagem cá à Groenlândia, mas em Kangerlussuaq 2 noites são suficientes.
“2 noites para ver o quê??”
Kangerlussuaq é o melhor lugar da Groenlândia onde ver — e adentrar — a grande manta de gelo que cobre 80% do país, uma vasta extensão gélida que se expande por mais de 600 Km de um lado a outro da ilha. Não é algo que você vê todo dia.
Ademais, em Kangerlussuaq você também tem acesso facílimo a geleiras assim a poucos metros de você. Eu já fui ao lindo Glaciar Perito Moreno na Argentina e noutros por aí; mas uma coisa é estar num mirante ou barco, cercado de outros visitantes, e outra é estar a pé numa paisagem remota, quase que só o gelo e você.
Esses tours se chamam IceCap 660 e a geleira Russell Glacier, um dos quais você pode fazer no mesmo dia em que pousa (se chegar pela manhã) e o outro no dia seguinte. Duas noites. Foi o que fiz e recomendo.

Interlúdio breve: Um pouco sobre quem é a Groenlândia na fila do pão
Antes de partirmos nas visitas, permitam-me só um breve momento para dar um pano de fundo de “quem é a Groenlândia” do ponto de vista histórico e político. Vai ajudar a contextualizar o restante da viagem.
Os primeiros vestígios humanos na Groenlândia datam de 2500 a.C., gente que contudo não sobreviveu. Os próximos a aparecer aqui são os Vikings, que criam os primeiros assentamentos europeus já no século X. Eles, porém, tampouco sobrevivem.
Os seguintes — e primeiros a perdurar — são os Inuit, que eram chamados popularmente de esquimós, uma gente de origem asiática vinda ao longo dos séculos e milênios através do norte do Canadá. Eles são os groenlandeses de hoje, instalados aqui desde os idos de 1200.
Já entre os europeus, a Groenlândia havida se tornado um mito — um lugar lendário como tantos outros das sagas vikings, que ninguém sabia se existia realmente. Somente com as grandes navegações de 1500 é que ela começa a reaparecer nos mapas. Em 1578, um corsário inglês trabalhando para a coroa da Dinamarca a “reencontra”, e estabelece rotas comerciais para compra de marfim de leão-marinho, óleo de baleia (usado nas lâmpadas), e recursos pesqueiros.
Em 1776, Copenhague decreta monopólio exclusivo de comércio com a Groenlândia, iniciando de fato um regime colonial.

A Dinamarca daria início a um conhecido processo de assimilação cultural e exploração econômica. Extração de carvão mineral para atender aos interesses dinamarqueses teve início, e criou-se toda uma indústria de óleo de fígado de bacalhau aqui.
Os groenlandeses foram tirados dos seus assentamentos costeiros e trazidos às pequeninas cidades extrativistas que nasciam, onde eles também eram forçados a abandonar sua religião espiritualista e se converter ao cristianismo protestante dos dinamarqueses.

A tônica presente à época — e ainda na cabeça de alguns — era a de que os groenlandeses não eram capazes de se governar; era preciso trazer dinamarqueses da metrópole para conduzir os negócios. Até a década de 1970, havia leis ditando que alguém nascido aqui podia receber uma remuneração no máximo 85% do valor daquela recebida por um dinamarquês.
É fácil perceber os padrões de exploração.
Em 1979, com a mudança dos tempos, os groenlandeses adquiriram o direito de se governar, e em 2008 — ontem, em termos históricos — votaram “sim” num referendo por autonomia. Hoje, a Groenlândia tem seu parlamento, sua capital (Nuuk), sua língua nativa com o status de idioma oficial, e o reconhecimento de ser um país distinto da Dinamarca. Esta ainda governa a Defesa e as Relações Exteriores, mas acho que é uma questão de tempo até a Groenlândia se tornar soberana por completo.
Os dinamarqueses seguem aqui por toda parte, e a temática hoje — como também fazem a França e os Estados Unidos com suas colônias transformadas em “territórios”, como a Guiana Franca ou Porto Rico — é a de que vale mais a pena economicamente permanecer vinculado, ainda que de leve, que estar à própria sorte num mundo instável.
Foi a essa Groenlândia semi-independente num mundo cada vez mais instável que eu vim neste meio de ano.


A Manta de Gelo da Groenlândia: IceCap 660
Seiscentos e sessenta metros acima do nível do mar é a altura em que está este ponto da chamada manta de gelo que cobre quase toda a Groenlândia. Chamam-na ice cap em inglês.
O ponto fica perto de Kangerlussuaq, “cidade” de onde a manta é tão acessível quanto ela pode ser. Sem sombra de dúvida, é o melhor lugar na ilha onde pôr os pés no gelo imenso.
Daqui, é cerca de 1h30 de viagem pelos 40 Km de estrada de chão até o gelo, no qual você sobe sem necessidade de qualquer equipamento profissional nem espinhos nos pés (grampons), por razões que eu já explico.
Só cuidado para um urso polar não o comer.



Adam era uma versão asiática e mais tranquila do inesquecível Sargento Pincel. Ele, um senhor careca e algo parrudinho, seria o nosso guia de hoje a bordo do caminhão-ônibus que nos levaria à manta. Ganhou logo a minha amizade ao indicar que eu me sentasse com ele na cabine. (Vantagens de viajar sozinho.)
Apesar da solicitude, Adam não era de falar muito — os groenlandeses em geral não são de conversar demais. Era, inclusive, engraçado notar como aqui o habitual são respostas curtas, por vezes monossilábicas. Não o fazem por rudeza; você vê na linguagem corporal que a pessoa realmente julga que aquilo dá conta do recado, sem render conversa.
Perguntei a Adam se eles aqui ainda eram xamanistas. “Sim“, respondeu ele com segurança.

Eu originalmente tinha a impressão de que era preciso reservar estes tours com bastante antecipação, sob pena de não achar lugar. Longe disso; o veículo ia quase vazio; éramos apenas cinco incluindo o guia-motorista.
Nesse caminhão-ônibus íamos eu, Adam, e atrás um jovem casal de sueca e australiano, e por fim um tio austríaco daqueles tipo homem solteiro de meia idade que curte a natureza e fala palavrão. Veio vestido com um aparato que eu só vim conhecer aqui na Groenlândia: uma rede de cabeça contra mosquitos, que parece roupa de apicultor.

“Mosquitos?? Na Groenlândia?”
Sim. É engraçado — tragicômico — porque nós dos trópicos jamais imaginamos que o Ártico seja um inferno de mosquitos no verão, mas é.
Mosquitos do tipo pernilongo, muriçoca.
Eles não picam muito, nem transmitem doenças, mas são numerosíssimos nesta época do ano. Como só conseguem sobreviver nas temperaturas entre o fim de junho e de agosto, e se reproduzem com o derretimento sazonal do gelo, é como se toda a população de mosquitos do ano eclodisse nesse tempo.
Se você andar, não é o fim do mundo, mas se ficar parado eles tomam conta. Numa ocasião, havia facilmente uns 20-30 em cima de mim na roupa — daí a rede de cabeça para os mais incomodados. Aqui em Kangerlussuaq, era mais na “cidade” em si e seus arredores. Uma vez que rumamos ao ermo e nos aproximamos da manta de gelo, eles também sumiram.
— “Eu estou trazendo comigo café e chocolate quente“, voluntariou Adam, o Sargento Pincel, que era do tipo que gostava de soltar umas coisas assim do nada enquanto dirigia.
— “Qoianaq.” Aprendi a dizer obrigado em groenlandês.
Eram 14h no horário groenlandês quando nós tomamos estrada.




Ali pisamos, descendo num mirante para apreciar a vista. O chão estava úmido e fofo de água, a impressão naquelas plantas sendo de que, se você pisasse errado, poderia enfiar o pé.


A manta de gelo se apresentou a nós sem nenhum grande choque, uma transição natural na paisagem do chão pedregoso para o chão gelado. Não há nenhuma grande muralha como nas geleiras.



Naquela tarde fagueira, sem bananeira nem laranjais, tomamos o vento frio que sopra lá do gelo. Mesmo sendo verão, estávamos com cerca de 11ºC. Com a brisa gélida, a sensação é menor.
Há dias em que pode subir até a 20ºC. A mudança climática global é bem mais forte aqui nos pólos que nos trópicos, e a temperatura da Groenlândia já subiu mais que o dobro da global nestes últimos 50 anos.
Adam, já um senhor de seus 60 anos que dizia trabalhar neste ramo há 30 e ter feito 4000 viagens aqui à manta, contava como as mudanças de perda de gelo eram visíveis a olho nu.
Pusemo-nos a caminhar, subindo ao gelo como que sobe uma breve colina, sem escorregar porque o sol no verão “explode” o gelo transformando a superfície em cristais pontiagudos que aderem bem nas solas.



“Aonde, que mal pergunte?”. Dar uma volta. Há quem cruze os mais de 500 Km de manta de gelo até a outra costa da Groenlândia; e há também quem acampe aqui. Há empresas que organizam isso, caso lhe interesse.
Eu perguntei a Adam se não poderia aparecer um urso polar de repente. Ele explicou que, nesta época do ano, não. Os cristais de gelo machucam os pés dos ursos, então no verão eles não andam por aqui.
“E comeriam o que?” Turistas que vêm acampar. Brincadeira, há renas e também um bovino peludo — que lembra um bisão — chamado boi almiscarado (muskox) nestas planícies em redor do gelo, além de peixes e focas na costa. Os ursos têm lá com o que se ocupar.
Não há lobos aqui, só na costa leste da Groenlândia. Há raposas do ártico, completamente brancas, mas que você não vê, e as lebres do ártico, também completamente brancas, e que você vê num dia qualquer nos arredores da cidade. Cheguei a vê-las.
Por ora aqui, porém, havia nada mais que a água e o vento a correrem. Fiz um vídeo abaixo.
Você ouve o crunch, crunch das suas botas naquela superfície, e respira o ar que segundo Adam devia ter 5 mil, 7 mil anos.
A razão é que esse gelo não é eterno, não é o mesmo. Heráclito, quando veio à Groenlândia, disse que um homem não pisa duas vezes no mesmo gelo, porque da segunda vez não é o mesmo gelo, nem ele é mais o mesmo homem.
O que há é uma renovação contínua — ainda que lenta. A precipitação de neve lá manta adentro faz pressão de cima para baixo e expande as margens, onde o gelo se quebra, derrete, e libera também o ar guardado ali por milênios.
Todo gelo tem um pouco de ar dentro, e a quantidade é também o que determina a sua cor. Alguns icebergs e geleiras são azuis precisamente por uma quantidade menor de oxigênio dentro, o que afeta a refração da luz. O mais compacto de todos é o chamado gelo negro, sem ar quase nenhum, e que você às vezes encontra aqui pelo chão. É a pressão na hora da formação do gelo quem responde por isso.


A primeira “noite”
Retornaríamos a Kangerlussuaq, 90min de tração nas estradas por vezes pouco amigáveis às rodas após termos nos detido ali para tomar o café e chocolate quente que Adam tinha consigo.
No caminho, Adam na maturidade dos seus 60 anos e mãos que tremelicavam com os primeiros sinais de Parkinson ouviu que algo não estava bem o caminhão. Eu acho fascinante como, após certo tempo, esses homens desenvolvem quase uma sinestesia com o veículo.
Perto de Kangerlussuaq, ele chamou por rádio para que outro veículo viesse nos apanhar. Ele próprio iria dali ao mecânico. Não demorou a nos chegar o outro tio, este dinamarquês, um coroa que era uma versão mais branca do vocalista do Scorpions — boininha e tudo.
Eu estava de volta à quase solitude da minha acomodação no que não era realmente uma noite. A recepção havia fechado às 4h da tarde, e era fácil não ouvir ninguém.
A acomodação, algumas casas pré-montadas de madeira pintadas de vermelho, tinham mesmo cara de alojamento estudantil ou militar, de quem sai em missão de campo. Dentro, os dormitórios, o banheiro, as duchas e a cozinha, tudo aparentemente ali montado com material trazido de fora, nada realmente erigido ou edificado ali.
Um cheirão de lugar fechado e aquecido contrastava com o ar fresco e frio do exterior.
Um relógio errado na cozinha marcava quase 12:45 — não se sabe se do dia ou da noite, talvez para marcar a indiferença para com o tempo lá fora. Fosse a hora que fosse, havia luz do dia nesta época do ano, como haveria escuridão se fosse o inverno.
Um desavisado sem relógio estaria completamente perdido no tempo aqui, já que a luminosidade pouco varia. Vira uma coisa homogênea, em que quase todo momento das 24h é igual.


No dia seguinte, eu me dei conta de que não estava ali sozinho. Lá fora, o silêncio. Dentro, uma trupe de seus 10 coreanos — todos homens — de seus 30 anos acompanhados pelo professor, um senhor também coreano de óculos, bigodinho e cabelos cinzentos que parecia alguma versão asiática do professor pardal. Os homens tinham aquele jeito de meninão, típico de quando há muito homem junto e nenhuma mulher em vista.
Sendo coreanos, não falaram comigo, pois estavam sempre mergulhados n’alguma tela de celular ou a comer ou a conversar uns com os outros em coreano. Não sei se falavam inglês. O professor (pardal), como que responsável pela “meninada”, cumprimentou-me brevemente com a cabeça.
Neste dia iríamos à Geleira de Russell (Russell Glacier) — eles também, eu depois descobriria.
Christine, a francesa, eu não vi mais. Cheguei a vê-la na tarde anterior, ela que estava num casebre adjacente com quartos privados, mas depois parece ter se perdido no gelo.
Por outro lado, eu teria novamente o australiano e a sueca como companheiros de viagem, mais uma vez sob o guia Sargento Pincel. Éramos já quase uma família nesta vastidão vazia de Kangerlussuaq.

A “Cidade”
Vocês devem ter reparado que eu venho usando o nome “cidade” entre aspas para me referir a Kangerlussuaq. Ela talvez fosse melhor descrita como uma aldeia em torno do aeroporto, mas é que aldeia lhes daria a impressão de algo às antigas, enquanto que se tratam de prédios de apartamentos e casas modernas como essas da foto acima.
Cerca de 500 pessoas moram em Kangerlussuaq, e há casas para lá e para cá, uma igreja luterana feita pelos dinamarqueses, um supermercado, e algumas lojas — mas esqueça essa coisa de ruas com números, etc. e tal. Há uma linha de ônibus público que vai de uma ponta a outra da rodovia, tudo gira em torno mesmo do aeroporto. O supermercado fica quase logo em frente.
Antes de zarpar à Geleira de Russell, eu vim dar uma volta para ver o que havia em Kangerlussuaq (nada). Era um dia em que quase fez calor, eu a caminhar um total de uns 6 Km naquele chão arenoso para ver casas espalhadas. A igreja estava fechada, então fui à catedral do consumo que é aqui o supermercado, a ver o que é que se compra na Groenlândia.




Caso você esteja curioso, praticamente tudo no supermercado aqui vem da Dinamarca. A dieta tradicional groenlandesa é toda à base de peixes e gordura animal mamífera, como de focas ou baleia, além de carne de boi almiscarado ou de rena.
Claro que, com os últimos séculos, eles pegaram o hábito de comer pão (que você encontra feito aqui com farinha importada), queijos dinamarqueses, geleias, e café. Os groenlandeses adoram beber café — que os mais velhos tradicionalmente tomam pondo banha de baleia dentro para engrossar. Hmmmm!
A única coisa “Made in Greenland” que eu vi no supermercado foi caviar — ovas de peixe, pelo equivalente a €2 o potinho.
Você, inclusive, precisa ficar esperto para o lado de alimentação aqui. Não há restaurantes na cidade, exceto aquele dentro do aeroporto. Há um bem-quisto fora da cidade diante do fiorde chamado Roklubben, mas neste dia estava fechado para um grupo. Acabei comprando coisas prontas do supermercado para comer — não caviar.

A Geleira de Russell
Nós finalmente tomamos o novo caminhão-ônibus (“o outro ficou no mecânico“, disse-me Adam) desta vez rumo à Geleira de Russell, cujo nome homenageia alguém que ninguém aqui — nem a Wikipedia — souberam me dizer quem é. Provavelmente algum andarilho explorador do século XIX.
Ela acabou por se tornar a minha experiência mais significativa com geleiras, se você descontar o fato de eu ter caminhado na manta de gelo. Refiro-me a experiência estética visual, de proximidade, pois aqui você bem pertinho ela — mas não perto o bastante para cair uma tonelada de gelo sobre você.
As geleiras estão a todo momento despencando pedaços, que derretem e juntam-se ao ciclo da água. Essa água volta sob forma de precipitação lá adentro, e a pressão mais uma vez leva à fragmentação das geleiras nas extremidades. Aqui, dizem que a geleira “se move” 25m por ano em média. Ou seja, o pedaço de gelo que cair em dezembro estava 25m lá atrás em janeiro.
Portanto não ache que, a cada hora que cair um pedaço de gelo, seja sinal do Armageddon. Mas, sim, há de se preocupar que com o passar das décadas a geleira esteja menor, devido à elevação da temperatura.

Para deixar claro: a geleira faz parte da mesma extensão de gelo que é a manta que cobre 80% da Groenlândia. A geleira em si é nada mais que uma das muitas bordas que essa manta tem, uma de onde o gelo irrompe e cai regularmente.
(Nem toda a borda são geleiras. Você viu aquela onde subimos. Ali não tinha gelo nenhum caindo, só uma transição de chão de terra para chão de gelo.)



A rocha fica separada do gelo por um riacho breve que corre, vindo de uma queda d’água. A água a correr barrenta, algo cinzenta por aquela pedra nua e ao encontro do gelo fazia eu me sentir um viajante no tempo na Terra primeva, de antes de haver vida. Tudo o que havia era a geologia.
O som que ouvíamos era o da pequena cachoeira — até os coreanos ligarem o drone para ter uma vista lá do alto. Era mesmo estudantes universitários fazendo coleta de campo para alguma coisa (não sei o quê).
De quando em vez, como que a cada 15 minutos, gelo despencava lá do alto fazendo um barulho equivalente a um trovão. Você cá de baixo subestima a pancada que é cada queda e o eco que aquilo tem.
Por essas e outras não é permitido chegar muito perto, para não morrer numa avalanche nem ser levado nos pequeninos — mas poderosos — tsunamis (como eles mesmos chamam) que se formam aqui quando muito gelo cai na água.




Foi para ver isto que eu vim à Groenlândia, afinal.
Não apenas. Mais vem aí, quando eu tomar meu voo doméstico aqui de Kangerlussuaq rumo mais ao norte.
Nossa, o viajante parece que foi agora para Júpiter ou Plutão. Que é que isso, meus amigos.
A imagem de parte do avião, com esse céu azul profundo, dá impressão que está numa nave espacial … E depois a geleira, parece que não é a Terra hahaha. É quase que só um deserto gelado se não fossem as poucas habitações e serviços.
Impressionantes as imagens, Parece um mundo primitivo pouco habitado onde nem árvore medra e pouca vida há. Salvo algumas rasteiras e umas pessoas ou outras perdidas em meio ã natureza.. O povo antigo diria ser um fim de mundo.
Impressionantes esses paredões de gelo, alguns azulados.
Que natureza soberba!… Impressionante.
E que escrita engraçada.
Os veículos são verdadeiras “arabacas”.
Adorei o teco-teco com cara de Joaninha. Lindinho.
Apreciei as pequenas flores e o gelo azulado, mas achei a região bastante inóspita. Parece a Terra nos seus primórdios.
A parede gelada é impressionante. Imagino a sensação.
Muito interessante a experiência. Mas não faz a cabeça da sua amiga aqui.
Valeu meu jovem amigo viajante. Impressionante.
Quell’ aventure!….