Ilulissat é o lugar mais visitado de toda a Groenlândia. O nome significa “icebergs” no idioma nativo groenlandês, de 90% da população.
Não são icebergs quaisquer, mas blocos de gelo na boca de um fiorde todo congelado, cá 250 Km a norte do Círculo Polar Ártico.
Glup. O lugar é tido como um Patrimônio Mundial da Humanidade reconhecido pela UNESCO, então mais uma razão para vir ver. (Sim, a UNESCO também tomba sítios naturais. Há pelo menos 7 deles no Brasil, como Foz do Iguaçu, a Costa do Descobrimento, Fernando de Noronha e outros.)
O lugar é distante, e pouco há voos internacionais diretos para ele — é quase sempre necessário antes aterrisar em Kangerlussuaq, que lhes mostrei no post anterior, e fazer conexão —, mas nenhuma visita à Groenlândia está completa sem uma visita a Ilulissat.


Chegando a Ilulissat, Groenlândia
Eu estava em Kangerlussuaq, da qual lhes falei no post anterior. Um lugar desolado, arenoso, lindo para ver geleiras, mas inóspito.
Chovia na manhã em que eu parti. E olhe que havia feito quase calor no dia anterior (20ºC, o que é considerável para a Groenlândia, mesmo no verão). Um sósia de Robert Plant — vocalista do Led Zeppelin — com a idade que ele tem hoje foi me buscar de óculos escuros e caminhão de no albergue. Se fosse ele próprio fazendo pegadinha, eu diria que bem que desconfiei.

Reencontrei Adam no café da manhã do Polar Lodge ao lado do aeroporto, ele o Sargento Pincel do dia anterior, e que hoje estava focado em passar manteiga no pão. Falou comigo, mas os groenlandeses não são de render conversa com quem não conhecem muito bem.
O meu voo doméstico atrasaria 4h. Aprende-se aqui que quase todos os voos na Groenlândia sofrem atrasos, por vezes pequenos, de 20-30min, mas às vezes de várias horas — e muitas vezes cancelamentos. Fuja das conexões apertadas como o cão foge da cruz.
Eu, quiçá numa busca inconsciente por adrenalina, depois teria uma conexão bem apertadinha na hora de pegar o voo internacional para deixar a Groenlândia (não façam isso), mas aí é assunto para o fim do post.
A razão é o mau tempo. Quase todas as aeronaves são pequenas e fazem percursos de A ⇒ B ⇒ C ⇒ D durante o dia. Basta uma estar chuvosa ou com ventos muito fortes ou com neve — o que costuma ser o caso — e você tem um efeito dominó.
Com o atraso, eu consegui um vale-refeição de 115 coroas dinamarquesas (cerca de €15), o suficiente para um almoço aqui. Não me pareceu que outros passageiros tivessem ganho, portanto reivindique o seu ou ficará sem.
Chamaram-me desde Ilulissat para saber onde eu estava, ao que eu estava no digno restaurante que há no aeroporto de Kangerlussuaq.
Quando chegou a joaninha — digo, o nosso avião da Air Greenland pintado de vermelho com bolinhas brancas —, eu notei que não há qualquer controle de segurança no aeroporto para os voos domésticos. Você simplesmente entra no avião com líquido, bazuca e o que for. Deus nos benza.




Eu sei que sua impressão provavelmente é a de que aterrissaremos num ermo, feito em expedição da National Geographic ou do Canal Discovery, mas Ilulissat é uma cidade.
Note que agora, ao contrário do que fiz em Kangerlussuaq, estou até usando o nome sem aspas, porque Ilulissat realmente é um lugar de porte: 4.670 moradores de acordo com o último censo.
Há casas, prédios, hotéis etc. Ilulissat não é um povoamento de iglus em meio ao gelo. (Por sinal, ninguém mais aqui vive em iglu.)

Bem-vindos: Primeiras impressões
Ilulissat é consideravelmente mais fria que Kangerlussuaq ou que o sul da Groenlândia. Não é só a latitude, mas também a brisa (gélida) a que estamos expostos na beira do mar. (Inclusive, parta do princípio de que a sensação térmica será mais fria do que o que os termômetros indicam. Eu trouxe casaco meia-estação porque vi 7ºC na previsão do tempo e pela logística mais fácil, mas depois me dei conta de que deveria ter trazido o casacão de inverno.)
O aeroporto é todo ele um saguão só, sem cafeteria nem lugar qualquer onde comer. Há banheiros, mas no mais apenas os funcionários, passageiros a esperar, e ali mesmo algumas pessoas com plaquinhas de hotel esperando quem chegava. O ar frio e o silêncio do exterior, entre aquele chão escuro e o céu hoje cinzento, davam-lhe um ar pouco convidativo, de que você se meteu num lugar remoto do planeta — o que é verdade.
O sol depois abriria, ele que nesta época do ano (junho-agosto) nunca se põe —apenas passa de um lado ao outro do céu, sem tampouco jamais ficar a pino como nos trópicos.
Veria-se um charminho campestre de Ilulissat, as suas casas de madeira pintadas de vermelho ao estilo escandinavo, e o mar logo ali. No horizonte, podem ser vistas ainda as altas montanhas da Ilha Disko. A flutuar, alguns blocos de gelo que tintam a água de azul-claro com o derretimento.


Não há táxis nem transporte coletivo no aeroporto de Ilulissat, então eu havia solicitado que alguém do hotel me aguardasse. Não estava lá para me receber do meu voo atrasado, mas outro receptor tinha o telefone do meu hotel e logo chamou.
Breve eu estaria a versar passos pelas estradas sem calçada de Ilulissat, o meu hotel num lugar mais denso da cidade que aquele de casas esparsas que você viu acima com as casas vermelhas.
Nada aqui é grande (exceto a quietude), mas há supermercados, lojas de lembrancinhas da Groenlândia, e várias agências organizando passeios.
Há trilhas nos arredores da cidade que você pode fazer por conta, mas no mais é necessário organizar passeios mar afora para conhecer esta região.




World Heritage Trail: As trilhas ao redor de Ilulissat
Daqui a pouco eu volto para vos mostrar um pouco mais do pouco que há da cidade. Por ora, vamos à razão-mestra que me trouxe aqui: o fiorde de gelo.
Se você está se sentindo num lugar desolado, seja bem-vindo. É sinal de que eu estou conseguindo transmitir bem a sensação. Ilulissat é assim.
Embora houvesse algumas poucas pessoas nas ruas naquela manhã de dia eterno (já que o sol nunca se põe no verão), eu segui sozinho rumo aos arredores da cidade onde fazer as trilhas.
Há duas trilhas principais de alguns quilômetros aqui em Ilulissat: a azul e a amarela. Você as verá comentadas em guias de viagem e também quando chegar aqui. Há quem ofereça passeios com guia, mas isso é completamente desnecessário. Você pode fazê-las inteiramente por conta.

Eu fiz ambas no mesmo dia, o que foi um exagero sem nome. (Pais, não permitam que suas crianças façam isso quando na Groenlândia.)
Aquela parte pontilhada da trilha azul que você viu na imagem acima é justamente a chamada Trilha do Patrimônio Mundial (World Heritage Trail). Nada tão excepcional ou diferente do restante; é só que é uma parte “pavimentada”, por assim dizer, onde você caminha sobre tábuas para evitar o pisotear da paisagem.
Primeiro, é preciso caminhar até os arredores de Ilulissat e dali, sim, entrar na trilha propriamente dita.



Esses cães são de uma raça aparentada do husky siberiano e trazida aqui pelos groenlandeses nativos na sua migração fundadora há mais de 1000 anos. São bonitos, mas não são cachorros de estimação — por isso ficam geralmente amarrados.
No que eu caminhava, só se ouvia o tilintar das correntes, o grasnar do corvo ao longe, e o vento frio na sua orelha naquela paisagem.
É, admito, uma paisagem algo decrépita pós-derretimento da neve, que ali deve permanecer boa parte do ano, passando a impressão de abandonada, como se as pessoas nem soubessem muito o que fazer com a terra quando a neve derrete. Fica só um misto de lamaçal e partes secas em meio a uma vegetação rasteira.
Os cachorros, por sua vez, empolgavam-se num uivar coletivo sem razão aparente. Eu fiz um pequeno vídeo abaixo que lhe passa a sensação entre os uivos, a solitude, e o vento a caminho desta trilha.



Não há sequer dessas plantas mais altas aqui, só os musgos e a água e as rochas guiando-o até o mar. Não havia viv’alma outra que não a minha na trilha.


O ápice dessa trilha azul é precisamente esse momento de encontro com o fiorde de gelo ali tão próximo, e que você pode ver também do alto de colinas onde se sobe. Há pedras marcadas com tinta azul indicando por onde caminhar.
É impossível não bater uma sensação meio National Geographic aqui.



Um fiorde é um braço de mar que adentra o continente, geralmente formados nos fins da Era do Gelo 12.000 anos atrás. Neste caso aqui de Ilulissat, o fiorde não derreteu completamente. Pelo contrário, no inverno ele está empedrado, e só nos meses quentes é que se pode navegar um pouco por entre os blocos brancos a boiar.

O céu hoje estava indeciso, o sol sem saber se abria ou ficava encoberto, quando eu passei da trilha azul à amarela — esta já sendo também a minha rota de retorno à cidade.
A trilha amarela tem bastante sobe-e-desce, e nesse sentido é bastante distinta daquele caminho de tábuas sobre o marnel.

As vistas daqui são para o mar aberto, com Ilulissat em tempo aparecendo da paisagem costeira.




Eu fui aos poucos dando glória por estar chegando de volta a Ilulissat, pois o sobe-e-desce faz esta trilha amarela mais cansativa do que a mera distância dá a entender. Ver a paisagem, entretanto, é o que dava a satisfação de estar aqui.




O IceFjord Cruise: A melhor coisa para se fazer em Ilulissat
Se há um passeio memorável e que não pode deixar de ser feito aqui em Ilulissat, ele é o breve cruzeiro de 2h30 pelo fiorde de gelo. Há opções adicionais, como ir de caiaque por ali (caso você não tema a água glacial), mas o passeio de barco é algo acessível e que recomendo a todos.
Esse Icefjord Cruise geralmente zarpa às 21h. Para mim, que estava com 4h de jet lag chegado de Copenhague, era como começar o passeio à 1h da madrugada; mas não havia muito para onde correr, pois todas as agências o fazem neste horário para você pegar o sol poente. (Exceto que nesta época do ano ele aqui não se põe, mas abaixa um pouco.)
Ele dura das 21h às 23:30 e sai na faixa de 700 coroas dinamarquesas (DKK), o equivalente a uns 90 euros. É caro, mas já que você veio até aqui, veja tudo. Não é preciso reservar nada muito antecipadamente pela internet, a menos que você queira zarpar já logo no dia da sua chegada. Se não, basta agendar pessoalmente de véspera.
Eu me senti praticamente o Amyr Klink navegando entre os blocos de gelo deste mar gelado. Se for uma noite de sol então, melhor ainda para ver os raios incidindo na brancura dos icebergs.





Quando o sol se revelou, tudo ficou mais bonito.




Essas aves são das poucas formas de vida que vimos aqui. As outras estão debaixo d’água — peixes e baleias. Há focas e leões-marinhos nesta região, pelo que me disseram, mas eu não vi nem ouvi nenhum.
Num dado momento, a guia pescou com uma vara — que parecia uma rede daquelas de pegar borboleta — um grande bloco de gelo transparente na água. Usaríamos ele em breve.




É engraçado como o placebo nos afeta, nessas experiências de bebida com gelo milenar. Algo na minha cabeça insistia na sensação de um gelo puro, primevo, como se eu sentisse na língua o gosto das antigas eras geológicas da Terra.
Você saboreia e curte a experiência do gelo, já que o tal licor de ervas (ligeiramente com gosto de gin) não era lá esse balacobaco todo — estava ali como franco coadjuvante do gelo, para dinamarquês ver.




O cruzeiro não chega a adentrar muito no fiorde, já que a maior parte dos seus 40 Km de extensão continente adentro são sólidos. O que se faz é circular por entre os icebergs à sua saída.
O céu limpou, o vento exigiu uma das mantas de cortesia que havia no barco, e era questão de estarmos ali a admirar tudo. Deu trabalho para chegar aqui, mas valeu a pena.
Afinal, como bem versou Fernando Pessoa,
“Tudo vale a pena
Se a alma não é pequena.
Quem quer passar além do Labrador,
Tem que passar além da dor.
Deus ao mar o perigo e o abismo deu,
Mas nele é que espelhou o céu.“
(Labrador é adaptação minha. O original do poeta refere-se ao Bojador, cabo na costa africana para além do qual os portugueses atreveram-se a navegar no século XV.)
Espelhou o céu diáfano na Groenlândia também.