A Groenlândia é aquele país ártico de que só nos lembramos quando olhamos um mapa. Na maior ilha do mundo, ela é, sim, um país.
Há cerca de 50 mil groenlandeses, uma população modesta para um território que equivale aos nossos estados do Pará e do Mato Grosso juntos. Dá mais de 20 vezes o território de Portugal. Porém, como 80% da ilha é coberta por uma manta de gelo que vos mostrei em Kangerlussuaq, os habitantes ficam bem distribuídos por pequeninas cidades ao longo da costa — sobretudo a costa ocidental da ilha.
Nuuk, sua capital, não tem mais que 15 mil habitantes.
Não quer dizer que não tenham sua cultura, suas tradições (algumas delas belas, outras curiosas, e algumas um tanto bizarras) e costumes ainda que vivam sob certa tutela dinamarquesa.
Há uma imprecisão quando se diz que a Groenlândia “pertence” à Dinamarca. A Groenlândia não faz parte da Dinamarca nem da União Europeia. Desde 2009, os groenlandeses têm um governo autônomo, eleito por eles próprios. Têm sua bandeira, sua extensão para sites na internet (.gl), etc. A Dinamarca ainda toma conta das relações estrangeiras e da defesa, mas isso pode estar com os anos contados. No fim do post eu comento isso.

Eles não se vestem sempre assim, mas os groenlandeses têm tradições bonitas de roupas de lã. Sobretudo as mulheres.
A lã não existia aqui, e os groenlandeses tradicionalmente se vestiam com peles de animais da região (ex. foca, urso polar, rena).
Foi com o início de fato da colonização dinamarquesa a partir do século XVIII que missionários da Europa Central (mais especificamente da Morávia, na atual Tchéquia) vieram pregar e aproveitaram para estimular os groenlandeses a usar os novos materiais para desenvolver uma vestimenta “nacional”, como tanto na Europa Central e do Leste o têm.


O dia 21 de junho foi quando, em 1979, Copenhague aceitou conceder auto-governança aos groenlandeses, seguindo a mudança que já havia ocorrido em 1953 de mudar seu status de “colônia” para “país” vinculado ao Reino da Dinamarca.
Essa data é uma época boa para ver as pessoas em traje típico; no dia-dia, eu vim aqui e não vi ninguém vestido assim. As pessoas se vestem à maneira ocidental moderna como eu e você.
Café & Kaffemik
Os groenlandeses bebem café, e não é pouco. O café já é tradicional aqui há séculos, ao contrário do que você provavelmente imaginaria.
O café, essa bebida etíope que se espalhou pelo mundo ocidental a partir dos idos do século XVI, não deixou de chegar às suas colônias. Os groenlandeses, tendo que lidar com frio considerável aqui, acharam no café um aliado de primeira hora para lidar com as atividades do dia e o escuro do inverno. (Creio que a mesma razão pela qual os nórdicos, hoje, são os que mais bebem café per capita.)
Uma instituição que se desenvolveu com a colonização dinamarquesa foi algo chamado Kaffemik. Kaffemik na língua groenlandesa quer dizer, literalmente, algo tipo “com café”. Trata-se de uma celebração de dia inteiro em que você reúne a família e os amigos — a portas abertas para quem for chegando — para celebrar algo, seja o aniversário de alguém, um casamento, ou o que for.
Inclusive, uma invenção poderosa aqui — e que eu infelizmente não cheguei a experimentar, pois não encontrei onde comprar dela — é café com banha de baleia.
Fazem-se grande quantidade de bolos (mais uma inserção dinamarquesa), mas também pode haver comidas típicas groenlandesas, como peixes secos ou carne de rena desfiada. (Como se trata de um clima bastante inóspito à agricultura, você não vai ficar chocado em saber que a base da alimentação vem da caça e da pesca.)
Inclusive, uma invenção poderosa aqui — e que eu infelizmente não cheguei a experimentar, pois não encontrei onde comprar dela — é café com banha de baleia. Esse é o tradicional “café groenlandês”, dizem que ainda muito consumido por idosos em suas casas.
A banha derrete no café quente feito um creme de leite, segundo dizem. Você pode procurar se vier cá, mas já aviso que me disseram ser uma coisa mais consumida em casa que à venda nos estabelecimentos comerciais. (Não é de se surpreender).

Se você procurar por “café groenlandês” aqui, certamente encontrará a “versão nutella” dele que acharam ser mais vendável nas cafeterias, e que é uma cópia do café irlandês (Irish coffee): café com licor dentro e uma camada de creme de leite por cima.
Já se você busca participar de um kaffemik aqui, há duas formas: ficando tempo o bastante na Groenlândia para fazer amizade com groenlandeses e ser convidado, ou pagando um tour em grupo para visitar um.
Eu, francamente, acho que essa versão comercializada não deve ser a mesma coisa — certamente lhe servem um café com bolo, e você paga para bater um papo com duas ou três tias em redor da mesa. As agências de turismo aqui oferecem, mas se costuma exigir um mínimo de 4-5 turistas, então acabei não fazendo.
E eles têm tradições que não foram introduzidas pelos europeus?
Claro. Muito embora a cultura seja algo em pleno desenvolvimento (como muito da cultura brasileira fez-se no século XX, misturando influências), há certas tradições aqui que precedem a chegada dos europeus.
Por exemplo, os groenlandeses são tradicionalmente espiritualistas e xamanistas, embora hoje sob uma roupagem cristã (como ocorre em tanto da América Latina também). Os mais novos estão um tanto ocidentalizados, e podem não se envolver com isso, mas outros, sim, são mais místicos.
É habitual, inclusive, que as mulheres tenham tatuagens como amuletos. É raro entre os homens, mas quase todas as mulheres groenlandesas com quem conversei tinham algum símbolo tatuado no braço. Antigamente, se faziam também tatuagens no rosto, algo que caiu em desuso mas está gradualmente voltando como fruto de um resgate identitário.

Era curioso, pois eu no meu hábito de ver tatuagem mais como algo jovem ou alternativo, de repente via as tias — algumas com idade de serem minha mãe — atendendo em loa ou em recepção com aqueles belos símbolos tatuados no braço.
Adoro essa diversidade cultural.
Já os homens, caso você esteja a se perguntar, tradicionalmente usam objetos e não tatuagens como símbolos de identificação regional ou amuletos. Podia ser um osso talhado em forma de arpão para trazer sucesso na caça ou algo assim. Como é algo que as pessoas usam mais por debaixo da roupa, você não vê tanto assim em público quanto as tatuagens das mulheres.

O jeito dos groenlandeses
Eu passei uma semana aqui e, nesse ínterim, pude conviver um pouquinho com os groenlandeses. Conhecê-los de perto era parte do meu propósito ao vir para cá.
A sociedade groenlandesa é algo mais racialmente dividido que a América Latina; lembra mais o Canadá ou os Estados Unidos, com pouca miscigenação. Em geral, você têm os groenlandeses puro-sangue e os louros dinamarqueses que ainda constituem 8% da população. Por vezes você avista aquela pessoa — loirinha e de olhos puxados — de sangue obviamente misturado; mas, se não é raro, por outro lado tampouco é muito comum.
Há uma diferença grande entre os jovens (tipo Geração Z, nascidos dos anos 90 para cá, já com a internet e crescidos sob influência da mídia de massa anglófona) e os adultos. Estes são bem mais quietos, falam pouco (ao menos com quem não conhecem), e carregam hábitos curiosos. São bem mais espontâneos, e não é raro ver idosos arrotando em público, por exemplo.

Os groenlandeses também fumam com bastante frequência, sobretudo esses menos jovens, que carregam ainda consigo os hábitos trazidos aqui com a colonização dinamarquesa — quando na Dinamarca também era comum que todo adulto fumasse. Lá, o hábito diminui consideravelmente, mas aqui, ainda não.
Outra diferença é na estética. O padrão físico dos groenlandeses era — e entre os mais velhos ainda é — aquele da pessoa parruda, às vezes obesa mesmo. Os coroas e as coroas frequentemente têm aquele jeitão pesado, fruto do costume familiar tradicional do “comer comer para poder crescer” juntado à abundância de comidas processadas e estilos de vida mais sedentários de hoje em dia.
A Groenlândia ficará independente?
Eu diria que, pelo andar da carruagem, a menos que haja algum fenômeno político muito grande no mundo, daqui até 2050 a Groenlândia deve se tornar soberana — mas não muito antes disso.
Eles têm uma economia muito frágil, dependem da Dinamarca para emissão de moeda, alimentação (quase 100% do que se encontra no supermercado é importado), e tantos subsídios outros. Hoje, caso se tornassem independentes, seriam uma economia fragilíssima e muito fiada em turismo e subsistência — como em Samoa, onde quando eu fui eles estavam celebrando, em pleno 2016, a chegada dos primeiros semáforos do país.
Aqui há recursos pesqueiros e minerais, mas falta o capital para utilizá-los por conta própria, sem o know-how e os investimentos dinamarqueses. Quem sabe com o tempo.
Os dinamarqueses certamente tentarão dourar a pílula, como fazem também os franceses com as suas muitas colônias contemporâneas — onde também há gente nativa sob o seu jugo (Nova Caledônia, Polinésia Francesa…) —, mas eu acho que, cedo ou tarde, os groenlandeses dirão “já deu”, e que tomarão as rédeas do seu próprio rumo, sem mais tutela.
Uma pesquisa 2016 revelou que 64% dos groenlandeses defendiam soberania completa. Já no ano seguinte, outra mostrou que 78% se opunham se isso significasse uma queda no padrão de vida. Eis o debate. Em 2019, uma terceira pesquisa indicou que 67.8% dos groenlandeses defendem uma independência completa da Dinamarca “nas próximas duas décadas”. Resta ver.

Você encontra as minhas demais postagens pela Groenlândia neste link.
Lindas essas tradições culturais. Adorei as indumentárias, suas cores e motivos.
Curiosos esse contato com a Europa central.
Interessante que sejam essas rendas nórdicas. Aqui no NE do Brasil, sobretudo entre Ceará e Sergipe, essas tambem são tradicionais e chamadas rendas de bilros, se não me engano. Belissimas essas flores nas botas. Tem mesmo características dos motivos e tons do Leste europeu. Lindas.
Em relação ao café com gordura de baleia, creio que não apreciaria, nem mesmo gostaria de experimentar, apesar de gostar muito de café.
Gostei das noticias sobre essa ilha gelada que parece do fim do mundo hahah e desejo que ela se torne independente e faça valer sua cultura e sua história. Sem matar as focas e cia hahah.
Interessante.