Enquanto eu não vou a Tromsø ver a aurora boreal ou a Svalbard ver ursos polares, Eqi a quase 70º de latitude norte é o lugar mais setentrional aonde já vim. Aqueles outros, na Noruega, são de toda forma mais acessíveis que esta remota geleira groenlandesa onde eu vim me meter.
Estamos algumas horas de navio ao norte de Ilulissat, a cidade mais turística da Groenlândia. Falei-lhes dela anteriormente, sobre seu fiorde de gelo considerado Patrimônio Natural da Humanidade pela UNESCO e algumas trilhas que há nos seus arredores. As andanças por lá continuaram, até eu vir parar aqui como passeio final desta minha estadia.
A Geleira Eqi (Eqi Glacier) é das geleiras mais ativas da Groenlândia — vi guia dizendo inclusive que ela é a mais ativa —, o que significa que forma-se gelo lá atrás e despenca gelo cá na frente com mais frequência que em qualquer outro lugar na ilha.
As geleiras, como lhes disse em outra ocasião, não são estáticas. Aquele paredão de gelo não fica inerte na eternidade; forma-se gelo com o acúmulo de neve lá atrás, e essa pressão empurra os pedaços de gelo a despencar cá na frente.

Eu já carreguei o apelido de Mister M em outra época da minha vida, e muito embora “desmontar” as falácias das fotos de Instagram ou das agências comerciais nunca tenha sido o meu propósito, às vezes é inevitável.
Uma embarcação comercial aqui na Groenlândia nunca vai chegar tão perto assim de uma geleira, pela simples razão que pode despencar um pedaçaço de gelo em cima. Ou pode ele cair na água e criar um pequeno tsunami — palavras que eles usam aqui.
Talvez algum barco expedicionário de pesquisa, e mesmo assim capaz de ficarem com o ** na mão por saberem dos riscos.




A Eqi Glacier da vida real – um passeio opcional
Ilulissat, sendo o coração turístico groenlandês, é uma cidade onde você pode se deter umas noites e de onde saem vários passeios. O centrinho da cidade é repleto de agências uma em frente à outra (e cobrando preços semelhantes).
O fundamental aqui, a meu ver, é mesmo fazer o passeio de barco pelo fiorde de gelo, que lhes mostrei na postagem anterior aqui. Todo o mais é facultativo, e vai depender do seu gozo fazendo passeios pelo mar, do tamanho do seu bolso, ou da sua obstinação geográfica de fazer questão de ver quase tudo (o meu caso).
A visita à Geleira Eqi é — eu digo abertamente — um passeio caro e a ser tomado como (muito) opcional. No post seguinte com o cômputo geral eu darei os custos todos aos interessados. Aqui, vale dizer que quem quiser ver geleira deve priorizar Kangerlussuaq, onde elas são mais acessíveis e menos caras de visitar.
O Eqi Glacier tour é um passeio de dia inteiro (9:30 – 18:30) com almoço e cafezinho a bordo incluídos, oferecido por várias agências em Ilulissat. O tamanho dos barcos varia; o meu era para umas 50-60 pessoas, com tanto assentos do lado de dentro quanto áreas externas onde você pode tomar vento e sol (se houver).
Era um dia de sol quando eu saí, um dia tão privilegiado que até as funcionárias da agência tiraram folga para viajar junto.


Hic sunt dracones, diziam os cartógrafos medievais de áreas obscuras e remotas do mapa onde se acreditava haver dragões e outros monstros.
Não há monstros, mas há baleias por aqui, e é relativamente fácil avistá-las. Ou a presença delas, melhor dizendo. Não espere nenhum salto à là Free Willy, nem vê-las inteiras — afinal, elas vivem debaixo d´água. Mas você facilmente avista aqueles sprays de água que elas jorram quando estão respirando. Basta ficar atento.

Às vezes eu via ao longo o spray das baleias ou seu costado preto a emergir brevemente. Saltos são bastante raros. Elas não são baleias do tipo orca, mas daquele tipo maior e mais habitual de baleias que filtram plâncton na água. Chegam a medir até 18m e, curiosidade, são os mamíferos mais longevos do planeta, chegando a viver 200 anos. Há 15 espécies aqui, mas essa baleia-da-groenlândia (Balaena mysticetus) é a mais comum.
O mar insondável estava lá, única fonte de (breve) movimento afora o vento. Este batia forte nos que se atreviam a ficar do lado de fora do nosso barco. Dentro, os grupos de turistas brancos — quase todos eles dinamarqueses com ares de aposentados — conversavam, liam, ou cochilavam nas 3h30 de jornada de ida e depois o mesmo tanto na volta. (Se fosse na América Latina, haveria bingo, música e jogos a bordo.)

Aqui, Dorival Caymmi, não deve ser nem um pouco doce morrer no mar. As águas nem são quentes nem verdes. Pelo contrário, são frias, escuras e profundas.



As cores do mar vão gradualmente mudando. Um azul-claro quase verde vai se acentuando pela mistura com a água (doce) glacial derretida conforme nos aproximamos da geleira.
O mar fica lindo e algo leitoso pelos sedimentos levantados.



O gelo fica lá — e nós cá — num mar relativamente agitado, com o tombar frequente de pedaços lá do alto. Depois eu vou mostrar um vídeo com quedas notáveis, se você estiver curioso. A quem vier sobretudo com esse interesse, opte por julho ou agosto, os meses mais quentes, quando o calor acelera o derretimento da geleira.




Essa era Caroline, uma das funcionárias que estavam folgando e vieram junto. Quase todos os funcionários destas agências de turismo de Ilulissat são dinamarqueses — a maior parte deles não são gente que ficou do tempo de colônia, mas jovens atraídos pela ideia de viver uns anos aqui trabalhando com mais contato com a natureza do que se tem na Europa.


Nós ficamos ali um tempo, naquele vento gelado com o navio parado diante da geleira — para a contemplação.
Serviram-nos um almoço frio (alerta: os dinamarqueses, ao contrário dos suecos, não almoçam almoço; contentam-se com um lanche qualquer a esta hora sagrada, e assim o fazem com seus visitantes).
Em vez de nos servirem um peixe seco, ou café com banha de baleia ou algo assim… Brincadeira, faço pouca ideia de quais teriam sido os hábitos puramente groenlandeses nestas horas. Eles já estão por demais influenciados.
Para o meu choque, várias pessoas (dinamarqueses aposentados) desembarcaram aqui para passar umas noites neste ermo, numa breve pousada que há aqui ao lado, acima dos rochedos. Outros tantos que ali haviam estado entraram no nosso barco.
A bordo, cheguei a ouvir alguns estrangeiros comentando como raios alguém pretendia passar dias aqui. Mas enfim, tudo é gosto. Ficam a fazer caminhadas pelos rochedos, e é o que há: sentir esta Terra primeva, dos tempos quando ainda não havia vida.
Para mim, gostei de ter a sensação, mas dias a fio me seriam tediosos demais. Eu estava contente de, após um almoço chinfrim ali a bordo parados, darmos partida para as 3h30 de viagem de volta a Ilulissat.


Essa empresa de viagem foi a Disko Line Explorer, caso alguém tenha interesse. Exceto pelo almoço chinfrim (que eu não sei se teria sido melhor nas concorrentes), o serviço foi bom.
Epílogo
Aquele retorno da Geleira Eqi me era o começo do fim, o ponto máximo (de distância) aonde eu havia ido na Groenlândia, e de onde eu começaria uma longa odisseia a caminho de casa.
Desta vez, era “caminho de casa” literalmente, pois eu ia não apenas de volta à Suécia (onde resido), mas também de lá ao Brasil, após uma noite no aeroporto de Copenhague e outra em Estocolmo depois de lavar as roupas e trocar a bagagem.
Mas havia Ilulissat no meio do caminho, no meio do caminho havia Ilulissat.
Não que ela fosse um estorvo (afinal, eu paguei caro para vir até cá), mas é um ambiente estéril — tanto do ponto de vista natural quanto social — e que cansa logo depois de um tempo. Ao menos a mim.
Dizem que, no bojo da Guerra de Independência da Argélia, nos 50, o escritor francês Albert Camus — que havia nascido e crescido lá, na Argélia que havia sido desde 1830 um território francês — chamou a mãe para que ela viesse embora para Paris. A matriarca se recusou. Teria dito que as ruas de Paris eram calmas demais para o gosto dela.
Ilulissat, desnecessário dizê-lo, deixa Paris no chinelo no quesito quietude.

Esse caminho era o que eu fazia de retorno do Hong Kong Café, uma salvação asiática em plena Groenlândia. Havia tailandeses aqui, creia você.
Num oceano de sanduicherias ocidentais sem-graça e um casario quieto, o Hong Kong Café — bem à maneira asiática — funcionava todos os dias e o inteiro, servindo comidas chinesas ou tailandeses (além, sim, de sanduíches) por preços que poderiam ser considerados uma pechincha neste contexto (o equivalente a €10 um almoço).

O Hong Kong Café era como que uma versão família daquelas bodegas de beira de estrada onde trabalha o Danny Trejo nos seus filmes. Você já deve ter visto algum com ele, ainda que não saiba o seu nome.
A cada pessoa que entrava, a porta fazia ruído e todos levantavam a vista para olhar — meio que sem olhar, mas olhando. Numa versão afastada do que teria dito o brasileiro condestável da república Pinheiro Machado certa vez: “Nem tão devagar que pareça afronta, nem tão depressa que pareça medo.“
Ou seja, nem evadindo demais a vista que pudesse parecer medo, nem encarando demasiado que parecesse provocação. Afinal, estamos aqui falando de um multicultural estabelecimento de família, onde funcionárias tailandesas baixinhas ouviam qoianaq [obrigado] a cada groenlandês que se despedia, pesado de comida.
A música que tocava — daquelas baladas românticas estilo voz & sintetizador — eu não sabia se era em groenlandês ou tailandês ou o que fosse. Era uma língua universal a que ninguém prestava muita atenção, focados todos na comida e em quem porventura entrasse neste nosso templo da restauração.
Era a manhã de tomar o avião, e essa seria uma maçada sem nome. Mas nem posso reclamar, pois o meu voo atrasado foi dos pouquíssimos que não foram cancelados nesse dia. O mau tempo aéreo groenlandês é notório, então cuidado com as conexões que planeja.
Fiquei horas a fio sentado no aeroporto, basicamente do café da manhã do hotel até o voo finalmente zarpar após o almoço — mas em tempo para chegar a Kangerlussuaq e apanhar a aeronave maior que cruzaria os quatro fusos horários de retorno a Copenhague. Chegaria lá eu à uma e pouca da manhã, hora de tomar um café e aguardar o trem que eu havia reservado dali mesmo do aeroporto de Copenhague até Estocolmo, na vizinha Suécia (5h de ferrovia).

Dali, era hora de fazer caminho para Pindorama. Como pasteurização pouca é bobagem, eu dentro de alguns dias estaria bem na parte mais quente que há do país — na Amazônia. Eu revejo vocês lá.
Quem quiser ver uma compilação de momentos de quedas em geleiras e às vezes as ondas que se formam, os primeiros dois minutos do vídeo abaixo já lhe darão uma boa ideia do porquê de as embarcações ficarem a uma certa distância na vida real. (Apesar do nome, não tem nada de funny — mas é impressionante de ver.)
Nossa!… Impressionante essa vossa viagem e postagens, meu jovem e corajoso amigo viajante. Que região magnífica, rústica, de uma natureza quase selvagem, sem selva hahah, parecendo mesmo de uma terra nos seus primórdios… Uau.. Imaginava a Groenlândia diferente, antiga, com iglus hahah e gente vestida de peles .
Que geleiras portentosas!… Belissimas, embora perigosas!… Arremaria… Que mares escuros, assustadores apesar de belos e pujantes. Inusitada a experiencia, deve ter sido. Gosto de aventuras… hahahah
Impressionada com o gosto das pessoas de ficarem vários dias nessas regiões geladas e desertas, apesar de espetaculares, magnificas e belas.
As geleiras são deveras impressionantes. Muito bonitas.
Que bom que conseguiu retornar bem, são e salvo, apesar dos obstáculos, voos cancelados, atrasados , stress, pouco alimentado, etc e tal. Jesus!.. Eita percalços, sôr… hahah
By the way, adorei as instruções de viagem e comportamento a bordo. Entendi tudo… hahah claríssimas. hahaha.
Que video impressionante!… Ainda bem que não foi com o senhor hahahah . Sua amiga aqui ficou tensa com aquela queda dos gelos e o povo correndo com a água chegando. hahaha Deus nos livre.
Bom conhecer essa região. De preferência de longe, e através dessas ótimas postagens.
Belísssimas imagens.
Valeu, jovem viajante.
viajar é preciso.