Eis ali o imenso rio Tapajós, aqui na consagrada Alter do Chão (Pará). É dos maiores rios do Brasil e do mundo. Caudaloso, ele parece quase um mar, sobretudo nesta estação de cheia.
Entender a dinâmica dos rios da Amazônia é a primeira coisa para saber o que esperar desta região — e decidir quando vir. Como bem observou um rapaz sudestino que me acompanhou na jornada de barco pelo rio Amazonas, “a Amazônia é uma região que você precisa visitar pelo menos duas vezes, uma na época de cheia e outra na época seca“.
Os rios se elevam consideravelmente com as chuvas de dezembro e junho, enquanto o chamado verão amazônico — época de seca e temperaturas cada vez mais altas — vai de agosto a novembro.
Julho, a época em que tantos de nós viajamos, já não chove por aqui, mas os rios ainda estão bastante cheios, pois não terá dado tempo ainda de eles abaixarem. Foi a época desta viagem, quando encontrei uma Alter do Chão beeeeem diferente daquela mostrada por aí com praias e caminhos de areia. Aquilo é exclusivamente nos idos de setembro a novembro.
Bem-vindos aqui à Alter do Chão fora-de-época, com o rio Tapajós em toda a sua pujança.
Vamos entender um pouco mais do lugar.

Alter do Chão, o povoado paraense de nome português
Comecemos com algumas curiosidades. Todo mundo em algum momento se perguntou de onde saiu este nome tão diferente, “Alter do Chão”, e cujo significado quase ninguém sabe.
No post anterior, eu comentei como o Pará é o estado que mais tem cidades homônimas de cidades portuguesas. São 23, incluindo aí as duas maiores (Santarém e Belém), e Alter do Chão é mais uma delas. Seu nome é medieval português.
(Encontrei bizarrices internet afora, sugerido até que significaria “praia de areia branca”, coisa de infartar qualquer historiador. A Alter do Chão original portuguesa nem na costa fica.)
A Alter do Chão portuguesa é uma cidade medieval no interior do país, nas áreas mais elevadas da região do Alentejo. Possui até hoje um castelo dos idos de 1200, e sua povoação é ainda mais antiga. Fica numa área que por séculos esteve sob domínio árabe.
Você sabe o que é um outeiro, como o Outeiro da Glória no Rio de Janeiro? Não? Um outeiro é uma elevação mais baixa que um morro.
Outeiro é o termo galego-português, do norte de Portugal. Nas regiões mais ao sul e de maior influência árabe, como o Alentejo, prosperou a versão “alter”, adaptada à fonética árabe — língua franca de Al-Andalus, a Ibéria medieval de domínio islâmico.

Há também naquela região um município vizinho chamado Alter Pedroso, também com um castelo, numa área rochosa a 4 Km de Alter do Chão.
Daí você já começa a compreender que a nomenclatura deve ter sido para distinguir um do outro. (Os detalhes sobre a toponímia portuguesa e tais influências árabes são do trabalho de Maria Luísa Seabra Marques de Azevedo, da Academia das Ciências de Lisboa.)
Pois bem. No século XVIII, colonos portugueses resolveram replicar seus nomes de cidades cá no Pará, e a esta aldeia às margens do rio Tapajós, onde já viviam os índios Borari, coube o Alter do Chão. Os Borari seguem a viver no entorno da cidade, ainda que tenham sido expulsos aos longo dos séculos pelos colonos e suas missões religiosas. Naturalmente, estão mui presentes na genética tanto biológica quanto cultural dos paraenses.
Esta Alter do Chão paraense foi fundada em 1626, e elevada à categoria de vila do então Grão-Pará em 1758. Instituiu-se o culto a Nossa Senhora da Saúde, que é sua padroeira e homenageada com a igreja matriz. O lugar chegou a experimentar ascensão econômica no começo do século XX com o negócio da borracha para o Pará, mas foi só mesmo nos albores do século XXI com o turismo que ela cairia nas graças do Brasil.
Venhamos conhecer esta Alter do Chão amazônica.




As lendas e simbologia amazônicas de matriz indígena estão por toda parte nesta região, e nesta Alter do Chão talvez nenhuma figura seja mais evidente que as dos botos tucuxi e rosa.
Os botos, que são golfinhos de água doce, são dos animais mais sedutores à vista que há na Amazônia. Há, inclusive, aquelas lendas de que eles são seres mágicos que podem transformar-se em gente.
Tucuxi é como as línguas indígenas caribenhas — originalmente dominantes aqui na Amazônia — chamam o boto-cinza (Sotalia fluviatilis). Em Tupi, ele vai pelo nome de pirajaguara. Já o boto-rosa (Inia geoffrensis) é a uiara, “senhora da água”.
Há uma disputa folclórica entre eles no meio da sincrética Festa do Sairé todo mês de setembro, a qual mistura elementos indígenas e portugueses. O que os missionários portugueses introduziram no século XVII como um cortejo de louvor ao Espírito Santo ganhou coloridos indígenas e hoje é uma grande festa popular. (Você pode ler detalhes dela aqui.)


Chegando a Alter do Chão
Para vir a Alter do Chão, é preciso primeiro chegar a Santarém propriamente dita. Esta possui aeroporto. Ou, se você vier de Manaus, pode tomar o épico barco pelo rio Amazonas naquela viagem que se faz deitado na rede por um dia e meio. É inesquecível. Muita gente, portanto, combina a capital amazonense com uma chegadinha aqui na mesma viagem.
Toda pousada de Alter do Chão oferece serviço particular de traslado para trazer você de Santarém. Os preços variam entre R$ 100-150 pelo carro (não por pessoa) só de ida, e a viagem dura uns 40 minutos de estrada boa — não espere vias esburacadas.
Você pode usar o transporte público comum também. O ônibus custa uns poucos reais e chega a Alter do Chão em 1h. Qualquer um em Santarém lhe dirá de onde ele sai. Só note que, nos fins de semana, ele vai lotado de gente, pois Santarém “desce” em peso para curtir Alter.
Inclusive, eu recomendo evitar os fins de semana se você gosta de sossego. Boa parte daquela galera, infelizmente, vêm com caixas de som e estragam o ambiente. #DeveriaSerProibido


Curtindo Alter do Chão: As possibilidades e minha experiência
Se você vier na estação seca entre setembro e novembro, vai curtir tudo aquilo que os guias de viagem mostram, como as praias da chamada Ilha do Amor (que na verdade é um banco de areia), da Ponta do Cururu e tantas outras.
Já na maior parte do ano, com o rio Tapajós cheio, você até verá canoeiros — ou catraieiros, como eles aqui chamam — oferecendo passeios para lá e para cá, mas o que me disseram é que só a Praia do Pindobal estaria viável. As outras ficam todas submersas, enquanto o Lago Verde “desaparece” por misturar-se com as águas do Tapajós nesta época.


Então é bom saber que a visita fora daquela época seca não é para “praiar”. Serve para conhecer algo da cultura local ou tomar banho de rio.
Como bem disse, deitada na rede, uma paulista que estava na mesma pousada que eu: “É tudo mais do mesmo: a água deliciosa do rio Tapajós, calor, e ficar sem fazer nada. Ócio puro”, declarou ela feliz, tendo escapado do julho frio de São Paulo.
Eu, que não sou muito chegado ao ócio quando estou viajando, optei por aproveitar para conhecer o que pude da Alter do Chão propriamente dita e descobrir mais das coisas típicas desta região do Pará.
Para quem quiser fazer algo além disso, há o passeio à Floresta Nacional (Flona) do Tapajós, e há também o trajeto apelidado de “Floresta Encantada”, no qual você adentra de canoa numa mata alagada com a água do Tapajós na altura dos troncos das árvores.


Eu cheguei foi num final de manhã de sábado, e senti logo aquele calorão equatorial em meio às árvores, do tipo que no miolo do dia convida você a se retirar no ar condicionado até ele abaixar um pouco.
A arborização refresca em algo e dá beleza ao que, de outro modo, são ruas muito simples do que parece quase uma zona rural.


Afora as pousadas espalhadas naquelas muitas transversais residenciais, o movimento turístico se restringe quase que exclusivamente à Praça Central e às suas breves adjacências.
Mesmo ali, o movimento é maior à noitinha. Durante o dia, muita gente está fora nos passeios, e certos restaurantes nem abrem para almoço. Mas há lugares agradáveis aqui e ali.
Foi nessa seara pacata que eu descobri, por exemplo, o Espaço Nosso Mangarataia e o Espaço da Vovó: Cozinha Caseira, lugares muito simples e agradáveis onde comer um bom almoço e dar um dedo de prosa. (O Mangarataia junta também um pessoal bem saúde, meio alternativo, oriundos daqui e de outras partes do Brasil.)
É no fim da tarde que este ambiente de praia temporariamente sem praia ganha mais movimento — e beleza adicional com o pôr do sol.


Você não deve perder a oportunidade de ir ver aquele pôr de sol mais de perto. Isto é, voltado para ele. Há um acesso ao rio no que entre setembro e novembro é a Praia de Alter do Chão, onde as pessoas mesmo sem praia tomavam banho, e vistas lindas havia.


Quem tem celular, tem medo. As frestas na madeira ameaçavam engolir rio adentro os eletrônicos de quem tivesse mãos frouxas. Mas fotografar é preciso.

Em meio a outros banhistas aqui da região, alguns hippies morenos de São Paulo haviam posto uma música indiana trance-psicodélica, fumavam sei lá o quê, e saltitavam na água.

À noite, foi quando a cultura paraense mais me cativou.
As barraquinhas na Praça Central aos poucos vão sendo ocupadas e povoadas conforme a tarde cai. Aparecem os vendedores de tudo que é comida — desde pastel frito até coisas mais típicas paraenses, como vatapá ou maniçoba no prato.
A barraca Égua do Sabor (nome também mui paraense, dado o costume aqui de se dizer “égua!” como exclamativo) se tornaria o meu point.




Aos sábados, o que era aqui o caso, há ainda o carimbó no praça.
As pessoas chegavam descalças, espontaneamente a dançar, ao que os músicos tocavam esse ritmo-símbolo do Pará.
Era cada saia rodada — e dançarina — mais bonita que a outra.



Para você que está querendo uma palhinha do som do carimbó nesta noite, eu filmei uma palhinha abaixo.
O carimbó com a sua batucada me lembrou um samba de roda, mas com saia rodada. Uma saia rodada portuguesa, à qual estas belas mulheres de feição indígena aderiram.
O nome vem do Tupi korimbó, que significa algo como “pau oco furado”, usado para os sons. É uma fusão afro-indígena e portuguesa que surge nesta parte do Brasil Colônia do século XVII. Também como o samba, chegou a ser proibido (como desordem pública e vadiagem) no final do século XIX, antes de emergir com tudo como manifestação cultural.

As dançarinas, o bêbado e a dona de casa no carimbó me mostraram uma Alter de Chão de que eu não tinha ouvido falar, uma Alter do Chão cultural que nem sempre aparece nas ênfases sempre em praia.
No mais, é realmente banho de rio ou passeio de canoa. Só fique esperto para não ser explorado nos preços. Parece que, com o Brasil em crise, as pessoas ficam ansiosas por tirar todo o atraso numa só venda. O bombom de cupuaçu com chocolate sai a R$ 2, e você vai achar quem lhe cobre R$ 5. A travessia de canoa até a ilha do amor tinha preço tabelado de R$ 10 por trajeto (para até 4 pessoas), daí você pergunta e, na cara dura, o canoeiro diz R$ 20, e se deixar ele ainda cobra por pessoa.
Sou solidário às necessidades das pessoas, mas tenho alergia a prestador de serviço tentando me cobrar a mais.

Quase tudo aqui é por dinheiro em espécie, mas Pix é aceito fácil pelos operadores de passeio. Cartão é que você só consegue passar em algumas barraquinhas mais movimentadas.

Eis um básico de o que é Alter do Chão. Eu devo voltar um dia na estação seca para curtir as praias.
Deixo vocês por ora com mais do carimbó de cá. (O bêbado no vídeo foi uma graça à parte.)