Tantas pessoas chamadas Lorena em português, e tão poucos de nós sabemos localizar a Lorena no mapa, região francesa (Lorraine) ao lado da Alsácia. Estamos naquele cantinho leste francês que já trocou de mãos diversas vezes entre a Alemanha e a França. Hoje, é francês e, embora o futuro a Deus pertença, acho que não troca mais de novo tão cedo.

Não sei se vocês conseguem ver no mapa a cidade de Metz [lê-se “mês” como pronunciam os paulistas e sulistas], capital regional e maior núcleo urbano da Lorena. Quem já passeou pela França também já inevitavelmente se deparou com quiche lorraine, com bacon.
Mas nem só do bacon vive a Lorena. (Inclusive, falar do quiche por aqui é aquele clichezão.) Estamos num lugar onde pisou Átila, o huno; onde estabeleceu-se e primeiro prosperou a dinastia carolíngia de Carlos Magno (747-814); e onde depois surgiu o Canto Gregoriano. Sim, ele é proveniente destas bandas.
Metz é um lugar rico em legado histórico. Os habitantes se orgulham da estação ferroviária sempre votada a mais bela de toda a França; há uma grande catedral gótica medieval, como é característico; mas Metz é também um lugar leve e bom para passear — e onde eu acontecia de ter amigos me esperando.
Vamos dar umas voltas.


Metz, cidade misto de culturas
Setembro é um mês ainda de verão aqui na França, grâce à Dieu. Eu me preparava de mala e cuia para tomar um TGV (Train à Grande Vitesse, os trens de alta velocidade da França) desde Paris. Cobre em 1h20 os cerca de 300 Km de distância até Metz, Lorena.
“Alors, ça commence bien”, proferiu jocosa a negra senhora idosa de lenço na cabeça, óculos e máscara anti-COVID, seu rosto quase desaparecido, mas seu olhar divertido e tom de voz mostrando que não havia perdido o humor. Eu ri com ela, ao que ela se divertiu suspendendo mais rápido que eu a pequena maleta de rodinha que havia tombado.
A França de hoje é um lugar multicultural, multiétnico.
Já foi assim desde sua formação, ainda que hoje o cosmopolitismo seja maior.


Esta região nasce na na Antiguidade na interface entre gauleses, romanos, e os ditos invasores bárbaros.
Galorromano é o termo comumente usado na França para se referir à mistura que aqui predominou por séculos entre os celtas gauleses e conquistadores romanos, chegados com Júlio César durante 58-50 a.C.
Aquela conversa francesa de que descendem puramente dos gauleses não passa de um mito nacional, como muitos. Os franceses são misturados desde sempre.
A mista cultura galorromana prosperaria por 400 anos, até a chegada dos “bárbaros” vindos do leste — boa parte deles, germânicos.
Franceses e alemães têm origens comuns, a diferença sendo o peso galorromano no lado dos franceses. Ainda assim, seriam os francos — um daqueles povos germânicos invasores — que acabariam por dar seu nome a esta terra que viria a ser conhecida por França.

Em 496 d.C., na Batalha de Tolbiac, o rei Clóvis dos francos derrota seus parentes alamanos (allemanni em latim, daí essa designação usada nas línguas latinas, enquanto que esses próprios germânicos se chamavam schwaben ou suábios).
Diz a lenda que ele teria clamado pela ajuda de Jesus, essa tal entidade da religião de sua esposa Clotilde, prometendo que se converteria se vencesse a batalha.
Venceu, e seria então batizado pelo bispo Remi (São Remi) na cidade de Reims, cousa de que já lhes falei na postagem daquela cidade onde todos os reis de França viriam então a ser tradicionalmente coroados.
Ele é quem organiza o primeiro Reino dos Francos, com sua dinastia que ficou conhecida como merovíngia, e que duraria cerca de 200 anos. No século VIII, outra família tornaria-se preponderante: os chamados carolíngios, com este nome pela figura do líder Carlos Martel (686-741 d.C.). Todos os Carlos, Carolinas e Carolines do mundo recebem seus nomes originalmente daí.
Martel se destacou vencendo os árabes numa crucial batalha quando estes, que já haviam conquistado a Península Ibérica, invadiram também a atual França e foram detidos na Batalha de Tours/Poitiers (732 d.C.) (A batalha se deu entre as duas cidades. É às vezes referida como Batalha de Tours, outras vezes como Batalha de Poitiers, mas é a mesma.)

Seu neto seria o famoso Carlos Magno (742-814), um monarca ainda mais próspero. (Você vê aí como o nome já ia pegando. Seu pai, o filho de Martel, foi Pepino, o breve, um nome que pegou bem menos.)
Carlos Magno conquistaria quase todos os povos germânicos sob o seu bastão, englobando num só imenso império a maior parte das terras das atuais França, Alemanha, Suíça, muito da atual Áustria e todo o norte da Itália — até Roma, onde seria coroado pelo Papa Leão III em 800 d.C no dia de Natal como o primeiro sacro-imperador romano-germânico.
Pois bem. Tudo isso para dar o pano de fundo e explicar que, durante todo esse período do primeiro milênio depois de Cristo, o centro destas terras não era Paris, mas esta região leste da França — atualmente chamada le Grand Est — onde os Romanos fizeram muitas de suas instalações, e onde mais tarde francos e demais germânicos surgiram juntos como um poder e se misturavam culturalmente.
Metz preserva até hoje parte desse legado, além da história de também na modernidade ter passado de mãos lá e cá entre franceses e alemães.



Metz medieval: Sua catedral e o surgimento do Canto Gregoriano
A Catedral de Metz, edificada do início do século XIV, é apelidada de la Lanterne du Bon Dieu por ter a maior quantidade de vitrais do mundo. Ela é de um esplendor incrível.
Ainda que a catedral em si seja escura, algo soturna nos cantos como tantas das catedrais góticas da França, as luzes coloridas do sol raiando pelo vidro são de impressionar.
Aliás, já da entrada você se impressiona com as imagens esculpidas em meio às arcadas góticas.



O interior da catedral é dos mais imensos que há. Seu vão é o terceiro mais alto de toda a França, detrás apenas daqueles das catedrais de Beauvais e Amiens.





Por cerca de 1000 anos, de Carlos Magno até 1766, a Lorena foi um ducado que fez parte do Sacro-Império Romano Germânico, não do Reino de França.
Foi nessa época que se fez esta catedral, e foi também nesse bojo que surgiu — aqui — o Canto Gregoriano. Ele foi uma mistura carolíngia do que haviam sido o canto gaulês e o canto romano.
Portanto, bem poderia se chamar Canto Galorromano, não fosse a tradição atribuir a sua invenção ao Papa Gregório I. Um exagero posterior, pois ele certamente não despertou um dia e inventou o canto do nada, o que fez foi decretar certa harmonização de estilos para acompanhar o Rito Romano no século IX.
Foi Chrodogangus, bispo aqui de Metz, que instaurou tal rito — banindo os demais — e o misturou ao que viria se tornar o canto gregoriano na corte dos Carlos, uma forma de aproximar-se de Roma que interessava aos carolíngios.
Com isso, desapareciam os demais ritos e formas de canto (como o canto moçárabe, dos cristãos da Ibéria muçulmana), com o Canto Gregoriano daqui se tornando o padrão-único para a Europa medieval.

Um pé na França e outro na Alemanha
Eu não vou entrar aqui em detalhes sobre como, com a morte de Carlos Magno, o seu vasto império se divide entre seus descendentes. É ali, ainda no século IX, que franceses e alemães — até então irmãos, de origem étnica compartilhada e sob uma mesma batuta imperial — começam a se separar.
Em 987, o fulano de outra família chamado Hugo Capeto destrona os descendentes carolíngios em França, e esta vai aos poucos tendo um destino próprio como reino centralizado enquanto os outros vivem no descentralizado Sacro-Império. Metz e a Lorena pertenciam a este último.
É só em 1766 que o então Reino de França, na esteira dos grandes êxitos e prosperidade sob Luís XIV e Luís XV, logra abocanhar este território germânico.
Tudo que é medieval aqui, portanto, faz referência aos alemães, como a foto de capa que você viu comigo na área medieval chamada pelos franceses de Porte des Allemands — pois ali ficavam instalados cavaleiros teutônicos nos idos do século XIII.



Os franceses tomariam a Lorena naquele 1766 para fazê-la à imagem e semelhança do seu reino, mas esse domínio duraria relativamente pouco.
Pouco mais de cem anos depois, ao perderem a Guerra Franco-Prussiana (1870-1871), boa parte da Lorena trocaria mais uma vez de mãos — agora para uma Alemanha unificada, com o kaiser [imperador] germânico Frederico Guilherme II, que para rodar a faca ainda resolveu ser coroado em pleno Palácio de Versalhes.
Verdade seja dita, não foi a Lorena toda que os franceses perderam, mas foi uma boa parte, Metz aqui inclusa. Portanto, muito do que você ainda vê na cidade é fruto daquele fim do século XIX e começo do XX sob o domínio alemão.

Toda esta parte da Lorena — junto com a vizinha Alsácia — seria recuperada pelos franceses após a Primeira Guerra Mundial (1914-1918) como parte do ignominioso Tratado de Versalhes, que imporia tantas perdas e restrições à Alemanha que muitos dizem ter sido ele uma das causas da ascensão do Nazismo e da Segunda Guerra Mundial como revanche.
Como a Alemanha perdeu de novo, a Lorena segue sendo francesa, muito embora o legado alemão esteja por todo lado — seja ele medieval germânico ou moderno dos tempos do kaiser.
Isso, inclusive, gera ironias, como o fato de que aquela votada todos os anos como a estação ferroviária mais bela de toda a França tenha sido construída pelos alemães no seu tempo.


Voltas na Metz atual
Foi ali nos arredores da estação ferroviária de Metz, numa manhã tardia de verão, que meu amigo Max passou para me apanhar. Max é francês da gema, mas carrega um sobrenome alemão e, se não abrir a boca, passa por gente da terra de Angela Merkel. Mas Max gosta de conversar e, nisso, é bastante francês.
Logo dali iríamos dar aquelas voltas pela Porta dos Alemães e depois almoçar com sua mãe, que é siciliana. (Eu acho interessante como os italianos e latino-americanos somos semelhantes nesse aspecto de incluir os pais nas jogadas com os amigos, coisa que os demais europeus pouco fazem ou até acham estranho.) Divertidíssima Isabelle, que eu não chamarei de “dona” porque é uma mulher relativamente jovem e que poderia ser minha amiga.
Metz, por mais franco-germânica que seja, tem curiosamente um ar quase Mediterrâneo, quase toda em pedras ocre que me lembram muito mais o sul da França — ou até mesmo a Itália — que a Alemanha ou a Bélgica aqui próximas.
Talvez fosse o verão, o sol amarelo na pedra amarela, ou não sei.



Almoçaríamos algo típico loreno e que evocava sua ancestralidade germânica: um Flammkuche ou torta flambada, que nada mais é do que algo semelhante a pizza.

Isabelle comeu uma quiche lorraine — esta quintessencial torta salgada de ovos com toucinho encontrada hoje por toda a França e Europa afora — e Max, um flammkuche com toucinho, pois eles aqui gostam de comer toucinho.
Eu, iniciando minha breve navegação na gastronomia lorena, experimentava um ponche loreno (punch lorrain), que leva aguardente (eau de vie ou “água de vida”, pois até a “marvada” precisa soar chique em francês) e mirabelle, que não é o mirabel biscoito nem o Palácio de Mirabel de Salzburgo, mas uma frutinha parente da ameixa fresca branca e que eles aqui na Lorena têm quase como sua fruta nacional.
“La mirabelle“, corrigiriam-me na cozinha quando falei a fruta no masculino. Troquei o gênero da fruta xodó. É uma moça.

Gostei. A mirabelle é docinha. Alceu Valença teria cantado o seu sabor junto com a cana caiana e o mel de uruçu, fosse ela do Nordeste.


“Já chega, hein. É a última vez“, brincou Isabelle ao que pagava a conta de todos no almoço, e Max e eu fomos bordejar.
Dentre outros lugares como a catedral, iríamos ao museu La Cour d’Or, essencial a quem deseja conhecer mais do passado deste lugar. Parte dos detalhes históricos que lhes passei acima eu aprendi lá.
O museu é bastante extenso, mas vale a pena se você gosta de peças antigas, arte ou História. Prepare tempo, pois mesmo indo rápido você passa uma boa 1h30 no mínimo.




São muitas as obras. Você faz o que é uma jornada pela história praticamente inteira de Metz, desde quando a cidade galorromana foi destruída por Átila, o huno, nos idos de 451 d.C., até o troca-troca de mãos mais recente entre a Alemanha e a França.
Uma curiosidade, a quem não sabe, é que a Lorena e a Alsácia, embora tenham vindo à França após 1918, preservam certas concessões regionais. Por exemplo, aqui são feriados o Sábado de Aleluia (antes do Domingo de Páscoa) e o dia 26 de dezembro, como ocorre na Alemanha (e não no restante da França). Além disso, aqui a Igreja recebe parte da coleta de impostos do Estado (!), como é na Alemanha e não na França.
Foi um arranjo para manter a ordem e as pessoas não quererem retornar ao controle alemão. Faz parte das coisas que geralmente não se sabem sobre este lado pouco turístico da França — embora belo.



Metz é cidade que lhe toma mera coisa de 1 dia para vê-la, mas vale a pena se instalar aqui ou por perto para conhecer melhor a região. Por exemplo, eu daqui iria fazer um bate-e-volta a Nancy, a outra grande cidade lorena — com quem Metz compete pelo título de cidade mais bela e interessante da região.
Seja você a julgar. Eu volto com minha ida até lá — com mais mirabelle e cousas lorenas — na postagem seguinte.