Nem só Paris tem seus triunfos. Também Nancy, segunda cidade da região da Lorena, tem a sua majestosa arquitetura dos séculos XVIII e XIX. Ela que foi agregada tardiamente ao Reino da França, somente em 1766, depois de séculos como parte do semi-independente Ducado da Lorena no Sacro-Império Romano Germânico.
Bem-vindos a esta formosa e pouco visitada parte da França, que comecei a vos apresentar no post anterior em Metz. (Fineza pronunciar Nãn-ci e não “Nensi”, pois não é inglês.) Estamos numa área de fronteira cultural entre franceses e alemães, que trocou de mãos ao longo da história, e cuja cara neoclássica vai lhe lembrar certas outras cidades da Europa.
É que Nancy tem um pé na Europa Central, tendo sido governada desde Viena (!) e depois por um rei polonês cujo nome segue vivo na majestosa Praça Stanislas, orgulho dos residentes de Nancy.
Se sua cabeça deu um nó histórico, não se preocupe que a gente já o desata. Bem-vindos à Lorena.

Desatando o nó da Lorena
No post anterior, em Metz (maior cidade da Lorena), eu comentei sobre como estas terras pertenceram a Carlos Magno (747-814), o sacro-imperador de um tempo em que França e Alemanha eram um domínio só.
Somente no segundo milênio é que realmente se consolida uma distinção — social, política, linguística — entre Reino de França de um lado e Sacro-Império Romano Germânico do outro. Esse último era uma colcha de retalhos na Europa Central, abarcando dezenas de ducados, condados, principados e outros. Ele ia desde cá as fronteiras com a França até os confins do Leste Europeu nas fronteiras com os turcos e russos.
O Ducado da Lorena existiu como unidade feudal do sacro-império desde 959, e assim foi pelo restante da Idade Média. Dos idos de 1450 em diante é que começaram disputas contínuas entre germânicos e franceses pelo seu controle. Por breves períodos, o rei da França chegou a tomar o controle daqui, mas sem o sustentar.
Nas alturas do século XVIII, o “século das luzes” de pensadores como Voltaire e Rousseau, o duque loreno ainda respondia ao sacro-imperador da família dos Habsburgo lá em Viena — o que explica em parte o aspecto desta cidade e suas influências.


A forma como a Lorena passou do sacro-império ao Reino da França é curiosa, pois incluiu cedê-la como consolo a um desalojado rei polonês — Stanisław Leszczyński.
Stanisław I Leszczyński (1677-1766) era rei da Polônia e sogro do rei francês Luís XV. Você já sabe que a realeza europeia casava-se entre si. Ele governou no ocaso da Polônia como potência, ela que havia sido um soberbo reino — e quiçá a maior potência da Europa Central — nos idos de 1400-1650. (Você pode ler muitos detalhes sobre isso nas minhas visitas pela Polônia, incluso em cidades polonesas pouco visitadas como Resóvia, Lublin, e Zamosc.)
Fraturas internas são sinal de decadência, e em 1733 estourou a Guerra da Sucessão Polonesa (1733-1735), quando dois pretendentes ao trono foram apoiados por grupos rivais de potências europeias. Os urubus no entorno já sentiam o cheiro do enfraquecimento da Polônia.
O acordo de toma-lá-dá-cá entre franceses e austríacos foi que subiria um outro rei ao trono, os Habsburgo da Áustria apropriariam-se de certos territórios dantes poloneses, mas cederiam a Lorena aqui aos franceses — embora não antes de dá-la para ser governada pelo desalojado rei Stanislaw. Após sua morte, os franceses assumiriam. Veja que acordo de cavalheiros.

Stanislaw governaria a Lorena com capricho. As obras que você hoje vê na praça são obra do arquiteto de sua corte, Emmanuel Héré de Corny (1705-1763), nativo aqui de Nancy.
O arco do triunfo que você viu nas fotos anteriores leva o seu nome (“Arco Héré”), e data de 1755 — meio século mais antigo que o de Paris, iniciado sob Napoleão em 1806, após a Revolução Francesa, e concluído apenas em 1836. Todos imitam os antigos arcos do triunfo romanos, e este Arco Héré em particular foi inspirado no Arco de Septímio Severo (203 d.C.) em Roma.

A 1766, o rei Stanislaw morreria, ao que a França disse “então obrigado”, e anexou a Lorena para si.
Quando os germânicos tomaram a Alsácia e parte da Lorena de volta em 1871, após vencerem a Guerra Franco-Prussiana, aquilo não incluiu esta parte aqui de Nancy, que permaneceu sendo França. Portanto, não se veem aqui os vestígios alemães dos fins do século XIX e começo do XX que se veem em Metz. Aqui, esses vestígios são apenas os medievais, que permanecem.
Venhamos dar umas voltas, agora que vocês já entendem melhor Nancy.


Umas voltas por Nancy, Lorena
Eu, faz poucos dias, conheci uma animada brasileira que morou e não gostou muito de Nancy. Disse ela que aqui era muito nublado e chovia demais.
Talvez. Eu, em verdade, nunca vim aqui no outono nem no inverno, só sei que no verão a cidade fica deliciosamente linda, com seu Parc de la Pepinière no centro da cidade animado e pleno de gente, com crianças a brincar, jovens a espraiar-se na relva, e vendedores de coisas artesanais francesas e se organizar em feirinhas deliciosas.
Foi assim um pouco o meu passeio na sinuca de bico em que eu entrei, com o casal de amigos franceses que me hospedava aqui na Lorena sendo um de Metz e a outra aqui de Nancy, perguntando-me a todo momento — quase a ponta de faca — qual das duas é que eu achava a mais bonita.
Glup. Hoje, longe da faca, eu posso lhes dizer que achei Nancy a mais bonita.

Nós passamos por aqui, mas em verdade viemos de carro, curta distância que é de Metz para cá. Fazia aquele sol gostoso que faz na França em fins de setembro, o calor maior já tendo ficado para trás (e com ele as hordas de turistas), mas o outono e o frio ainda fora de vista.
Art Nouveau em Nancy
Nós iniciamos o nosso passeio com uma breve visita ao Museu da Escola de Nancy (Musée de l’École de Nancy). um pequenino — e belo! — museu das tradições de Art Nouveau aqui da cidade.
Eu comentei acima que Nancy não viveu o “fim de século” imperial alemão com sua arquitetura quase-modernista. Aqui em Nancy, como alhures França afora e em certas outras partes da Europa, imperou naquele início de século XX a Arte Nova (ou Art Nouveau), inspiradíssima em estruturas e elementos da natureza. (É de onde vem muita da inspiração de Gaudí para suas obras em Barcelona, por exemplo.)



Émile Gallé (1846-1904) e Louis Majorelle (1859-1926) são dois grandes nomes que brotaram aqui nessa escola de Nancy. O segundo foi pai de Jacques Majorelle, que daria nome a hoje um dos jardins mais visitados de Marrakech, no que era então o protetorado francês do Marrocos. Jardins que foram mantidos e morada do célebre designer Yves Saint-Laurent, que ali dizia se inspirar — e aí você vê a genealogia de certas coisas.

Chegando à Place Stanislas
Tomamos rumo pelo que eram, admito, ruas comuns em Nancy — mas mesmo as ruas comuns na França tendam a ter charme, graças à boa preservação arquitetônica.
Encaminharíamos-nos agora, finalmente, ao coração da cidade: a Praça Stanislas (que é como eles chamam o finado rei polonês Stanislaw).
Eu confesso gostar (muito) de praças, mas quando minha amiga Jeanne cantou em verso e prosa que a atração principal da sua cidade natal seria uma praça, eu estranhei. Não me lembro de outro caso assim na França, ou mesmo em outro país da Europa, em que a atração principal do lugar seja uma praça.
Aí eu cheguei à Place Stanislas, e eu entendi.



A praça é um burburinho de gentes. Cafés ao redor, mesas de corpos franceses e turistas (poucos) expostos ao sol, o Hôtel de Ville (prefeitura) ali bem diante dos vossos olhos, e museu e ópera aos lados.
O Arco Héré num dos eixos fazia sua beleza, enquanto que um portão dourado do século XVIII dava a entrada ao Parc de la Pepinière, o parque no coração da cidade.
Não é à toa que a Place Stanislas foi tombada pela UNESCO como Patrimônio Mundial da Humanidade. Dá vontade de você chegar e não sair dela, ficar só ali “bebendo” na sua beleza.






Ao Parc de la Pépinière
Eu sei que os brasileiros — e outros — hão de achar engraçado esse nome, Pépinière. Em verdade, nada tem a ver com pepinos. Pepinière é o nome francês para “viveiro”, lugar onde se cultivam mudas de plantas.
Neste caso, esse parque começou em 1765 — último ano de vida do rei Stanislaw — como um espaço real onde se cultivavam mudas. Só depois, em 1835, é que ele foi aberto ao público como um parque.
O lugar é bastante agradável, aquela coisa quase dominical — independentemente do dia da semana — de divertimento das famílias, como se vê Europa afora e em outras cidades organizadas.
Há brinquedos tipo parque de diversão, há um mini-zoológico, e neste dia havia também uma feirinha de produtos típicos da Lorena. Quem eu vi, e gostei de ver, foram as mirabelles, as frutinhas (parentes das ameixas brancas) que são o xodó aqui dos lorenos, suas fruta-emblema regional.





Você não caia na besteira de dizer a um loreno que essa mirabelle é uma ameixa fresca — correria os mesmos riscos que insistir com um pernambucano que bolo de rolo é rocambole.
É, entretanto, um cultivar (ou melhor, dois, o de Metz e o de Nancy) do mesmo gênero de plantas da ameixa.
Só que frutas e alimentos outros têm também sua dimensão cultural, e as mirabelles aqui ganham toda uma afeição especial dos lorenos. Usam-nas para fazer geleias, doces, e biritas (eau de vie ou “água de vida”, como se diz em francês).

Eu amo conversar com vendedor de feira, sobretudo se for assim feira de coisas agrícolas ou doces caseiros, etc. Quanto mais manual e cultural, melhor.
Aqui na França, se você souber francês, diverte-se horrores com os seus mui conversadores vendedores. Ganha degustação grátis (às vezes sem moderação) e tudo o mais.
O vendedor de mirabeis (?) — um coroa gordo com cara de personagem de quadrinhos — quase teve um ataque cardíaco quando me ouviu dizer, casualmente, que as mirabelles eram novidade pra mim. “Você não é loreno?!”, indagou chocado.
Não, não sou loreno, mas neste dia eu estava em meio a vários deles — e não vou negar que gosto quando os franceses passam batidos no meu sotaque.

O Palácio dos Duques da Lorena
Perfeitamente munido de doces e geleias muitas, nós seguimos caminhando pelo que eram as ruas quietas de Nancy fora daquele miolo da Place Stanislas e do Parc de la Pépinière.
Passamos pelo Palácio dos Duques da Lorena (Palais des dukes de Lorraine), uma morada renascentista que hoje é o Museu da Lorena. Nesta altura em que vos escrevo, ele está fechado para reforma, então o vimos por fora.
Ele data dos fins do século XV, nos idos da Renascença francesa, quando René II, Duque da Lorena, precisou reconstruir esta morada após sua antecessora medieval ser destruída nas guerras entre o reino da França e os duques da Borgonha (vizinha aqui mais ao sul), que estavam tão fortes que quiseram tomar o poder.
O duque René II inspirou-se no Chateau de Blois, palácio renascentista dos reis de França no Vale do Loire (que veremos em breve).


Muito disso tudo foi destruído durante a Revolução Francesa (1789) e depois reconstruído no século XIX, quando este palácio virou museu.


A catedral estava fechada quando por aqui passamos, e assim fomos findando nosso passeio. Era hora de voltar a Metz, para de lá amanhã visitar outras paragens.
Estejam apresentados a Nancy, esta bela cidade lorena que hoje fica na França, mas que exibe seu legado de Europa Central e do tempo em que, curiosamente, foi governada por um rei polonês.