Esse diante de vós é o Palácio dos Duques da Borgonha, uma das regiões mais prósperas e de maior estirpe na história francesa. À altura do século XV, eles haviam se tornado tão poderosos a ponto de disputar com o rei da França — e quase vencer.
Deu-se no meio e na esteira da Guerra dos Cem Anos (1337-1453), que hoje as pessoas — habituadas a pensar tudo nos moldes contemporâneos do nacionalismo — veem exclusivamente como um embate França x Inglaterra, mas que muitos argumentam ter sido uma guerra civil dentro da França. O Ducado da Borgonha ficou contra Paris, e os próprios reis ingleses eram também duques na França. Acompanhe-me que você vai entender.
Embora não haja mais ducado, a Borgonha segue sendo uma região cultural, histórica e geográfica dentro da França. Sua capital é Dijon, onde nós agora estamos. A cidade é famosa pela mostarda, e a região pelos seus vinhos, mas há bem mais elementos de interesse aqui.
Dijon tem um esplendoroso — e gratuito! — Museu de Belas-Artes com obras de toda a Europa. Você ver e subir na torre do duque Filipe, o bom, que era casado com Isabel de Portugal; ver dos maravilhosos telhados ladrilhados típicos borgonhos; comer e beber das coisas regionais; e visitar a medieval catedral de Notre-Dame de Dijon, dentre muito mais.



Os Duques da Borgonha, quase maiores que o rei
Vamos a um pano de fundo breve para vocês entenderem a significância histórica deste lugar.
Os borgonhos foram um povo germânico que fez parte das ditas “invasões bárbaras” ao Império Romano. Assentaram-se na região do rio Reno e a oeste do Alpes, entre os alamanos e os francos, sendo ao fim derrotados e absorvidos por estes últimos no seu reino medieval no século VI.
Idade Média adentro, formaram-se várias entidades com o nome “Borgonha” (Bourgogne) na região do atual oeste da França, onde tal povo vencido vivia. Houve um Condado da Borgonha na atual região de Savoia, um Reino da Borgonha onde hoje é a Provença francesa na beira-mar, e um Ducado da Borgonha — este último dentro do Reino da França, e o que nos interessa aqui por ter sido o que frutificou.

O Ducado da Borgonha formou-se dentro do Reino da França no século X.
Naquele tempo, porém, você sabe que os reis mandavam pouco. Cada senhor feudal era quase um deus no seu espaço, e o rei pouco mais governava que as suas próprias terras — neste caso Paris, que já era a capital do reino, o pouco que você vê em azul no mapa acima. Note, portanto, que alguns duques governavam diretamente mais terras que o próprio rei.
Os duques da Borgonha tinham também domínios que ficavam fora do Reino da França. Era como se o governador da Bahia mandasse também em terras na Colômbia.
Uma curiosidade, inclusive, é que os duques da Borgonha, embora oficialmente súditos do rei francês, tinham domínios que ficavam fora do Reino da França. Era como se o governador da Bahia mandasse também em terras na Colômbia. O duque governava também o Condado da Borgonha no Sacro-Império Romano Germânico e outras posses. Assim era a realidade medieval.
Com o tempo, os senhores feudais pequenos foram sendo engolidos pelos maiores, mais fortes, e à altura dos idos de 1400 dois já despontavam no Reino da França: o próprio rei e o duque da Borgonha, que era poderoso o bastante para não precisar obedecer ao suserano.

Para complicar as coisas (ou não), ambos pertenciam à mesma dinastia de Valois [lê-se Valuá], a mesma família, pois era hábito que os reis lá no começo distribuíssem os títulos feudais entre os seus.
Assim havia feito, por exemplo, Guilherme, o conquistador (1028-1087), duque da Normandia que expulsou os vikings das ilhas britânicas em 1066 para então se tornar rei da Inglaterra ao mesmo tempo em que preservava seu título de duque da Normandia dentro do Reino da França.
Você aí pode ver que a coisa não daria muito certo. Foi quando estourou a chamada Guerra dos Cem Anos (1337-1453), quando a legitimidade do rei em Paris foi questionada — sempre nas oportunas ocasiões da transferência da coroa para este ou aquele herdeiro.
Os borgonhos, sabidamente, alternavam seu apoio entre o rei inglês e o rei francês. No fundo, queriam compor um grande domínio borgonho soberano, abarcando todas aquelas terras que um dia carregaram o nome de Borgonha até serem indevidamente dominados pelos tais francos. A hora da glória havia chegado.

O imbróglio começou quando o duque borgonho João sem medo (1371-1419) tentou manipular o governo do seu primo, o rei francês Carlos VI, que era deficiente mental e sofria de ataques nervosos. Para isso, João sem medo acabou por assassinar o — também seu primo — duque de Orleans, irmão do rei.
Não prestou. João sem medo acabou também ele assassinado em revanche, diz-se que com o envolvimento do herdeiro ao trono, o futuro Carlos VII, o que levaria os borgonhos a se voltar contra Paris e em favor dos ingleses.
O filho de João sem medo, o duque borgonho Filipe III, o bom (1396-1467), foi quem tomou a frente. Seria ele a bondosamente capturar Joana D’Arc e entregá-la aos ingleses, que a queimariam na estaca em 1431.
Filipe, o bom, era casado com Isabel de Portugal, da dinastia de Avis, filha de Dom João I. Apesar de aparecer como vilão na Guerra dos Cem Anos, o duque foi um grande patrono das artes, numa época em que os domínios borgonhos incluíam tudo aquilo que veio a ser conhecido como Países Baixos — as atuais Bélgica, Holanda, e Luxemburgo. Seu governo daria gás à magnífica escola de Flandres nas artes.

O Museu de Belas-Artes de Dijon, onde era o palácio
Filipe, o bom, não morava aqui em Dijon — algo que você dificilmente deduz quando vê tantas referências aqui a ele.
É que, à época, não existia essa coisa de se ter uma capital. O habitual era que a corte fosse itinerante, passando um tempo aqui e outro ali. Somente mais tarde, nos idos de 1600 com a maior concentração de poder nas mãos do rei e o nascer do absolutismo, é que viremos a ter aqueles requintados palácios fixos que conhecemos.
O bondoso duque vivia por aí, na vida, entre os seus vastos domínios. Naqueles idos de 1450, Filipe passava mais tempo nas prósperas cidades comerciais e artísticas da região de Flandres (a sua galinha dos ovos de ouro) como Bruxelas e Bruges, onde faleceria em 1467.

Como aquelas prósperas regiões de Flandres (na atual Bélgica) e Holanda breve tomariam um rumo próprio e desprendido da identidade borgonha, é aqui na capital do ducado, Dijon, que estão as obras e herança histórica dos duques.
O palácio cuja porta eu lhes mostrei acima, dos Estados da Borgonha, hoje abriga o ótimo (e gratuito!) Museu de Belas-Artes de Dijon, a melhor forma de ver de perto aquele legado.
Dentre muitas obras de arte, aqui está exposta também a espada de Joana D’Arc, capturada com ela naqueles idos de 1430.





Como vocês podem notar, não há apenas obras medievais. O Museu de Belas-Artes de Dijon contem inúmeras obras mais tardias dos tempos de glória econômica e artística da França. Você faz um belo passeio através dos estilos predominantes ao longo dos últimos séculos (academicismo, impressionismo, neoclassicismo, etc.).






Subindo na Torre de Filipe III, o bom
Subir na Torre de Felipe, o bom, custa 5 euros e requer reserva antecipada que você pode fazer pessoalmente no centro de informação turística no centro da cidade. Não é difícil de achar.
Eu fiz a minha e, às 10:30h do dia seguinte, diante do centro de informação turística não demorou a aparecer pontualmente uma simpática e animada guia baixinha a verificar nossas reservas. “Bonjour!!”, chegou ela quase gingando, movimentos animados ao andar que me faziam quase pensá-la dançarina profissional nas horas vagas.
Dura 45min a visita, que ela recomendou fazer com mais tranquilidade de manhã que à tarde, quando junta mais gente para subir as apertadas escadas da torre.
Trazia duas grandes chaves douradas — parecendo mesmo do tempo de Felipe o bom nas mãos. Disparou com tranquilidade pelas ruas, tendo nós como entourage, o seu belo séquito de seus 20 turistas dispostos a subir os 316 degraus da torre.



Numa dada hora, alguém atrás de mim espirrou e, neste afã que ficamos após a pandemia, eu tive a impressão de que alguns à minha frente começavam a subir mais rápido os degraus da torre de Felipe o bom — como que fugindo do Cão.
A torre, construída entre 1450 e 1460, era um sinal de poder, uma demonstração que todo mundo veria constantemente.
Hoje, o interesse de quase todo mundo aqui são as vistas de Dijon lá do alto, mas no caminho a guia vai contando sobre aqueles tempos do século XV.
Entre outros, veem-se aqui alguns símbolos típicos da Borgonha, como as uvas para o vinho borgonho e os famosos escargot — sim, aquela iguaria francesa é algo particularmente típico daqui. Já eram naquele tempo.




Umas voltas por Dijon
Não, eu não comi — nem pretendo comer — escargot, vocês aí que estão se perguntando. Mas, aqui na Borgonha, há mais coisas na gastronomia do que supõem o céu e a terra. Ou como era mesmo?
Os romanos trouxeram as vinícolas para cá, o vinho borgonho se tornou Patrimônio Mundial da Humanidade reconhecido pela UNESCO, e são muitas as outras coisas. Você verá bastante sobre o digestivo crème de cassis, por exemplo, cassis por vezes também chamada de groselha-preta (blackcurrant em inglês).

A duquesa Margarete de Flandres (1350-1405), que foi casada com o duque Filipe II, o atrevido (1342-1404) trouxe o pão de especiarias de sua próspera terra, que já mercava em especiarias àquela época. Ele continua típico aqui.
Ela também trouxe a moda do telhado envernizado (telhado borgonho ou toît bouguignon, de ladrilhos coloridos), e a pasta de mostarda que viria a ganhar fama mundial como a mostarda de Dijon.
Os romanos já a haviam trazido à Europa, a mostarda que é originária da Ásia Central e usada há milênios na Índia. As famosas sementes de mostarda estão na Bíblia, pois era conhecidas do Oriente Médio na Antiguidade, mas é no fim do século XIV é que ela (re)aparece aqui na Europa, na Borgonha.

Passou-se aqui a utilizar a pasta em vez dos grãos. Antigamente, ela macerada tinha fins medicinais, mas aqui virou gastronomia. Aquela mostarda vagabunda de cor amarelo-ácido, cheia de corantes e produtos artificiais, que se encontra por aí em trailers e sanduicherias é a uma versão corrompida da mostarda de Dijon original, a qual é realmente saborosa.
Por fim, se você já ouviu falar de boeuf bourguignon, um dos pratos mais famosos da culinária francesa, ele também é daqui. Prato de carne cozida no vinho, ele não deixa de trair certas semelhanças com as comidas de Flandres também (ver Lille).



Esta não era mais a minha primeira vez aqui. Eu havia vindo a Dijon em 2012 num distante e tenebroso outono, quando peguei a cidade com outro astral completamente distinto.

Dijon é uma cidade melhor visitada entre o verão e a primavera — disso não resta dúvida.
Hoje, o tempo passou, e atualmente há até um simpático microônibus elétrico gratuito que circula quase que silencioso pelas ruas do centro da cidade.
Você, entretanto, não precisa dele. Pode facilmente caminhar lá e cá e percorrer tudo o que há de interesse. Para ver o telhado borgonho e suas belezas, eu recomendo um bate-e-volta de um dia ou uma tarde até Beaune, outra cidade borgonha aqui perto (e a nossa próxima parada).
Em Dijon, fala-se de um circuito orientado por marcas triangulares na calçada com o símbolo de corujinhas — mas a maioria dos turistas se perde, pois parece que algumas sumiram e você fica sem saber o caminho, então não vá muito por elas.
Afora o que eu já lhes mostrei, o que há realmente de bonito aqui são as ruas, vias medievais ou barrocas em calçadões animados bastante povoados quando há sol, e as muitas igrejas de época, sobretudo a Catedral de Notre-Dame de Dijon, que agora vos mostrarei.


As gárgulas frequentemente têm uma função prática de fazer escorrer a água sem danificar a edificação, mas remontam também a uma lenda cristã do século VI. Nela, São Romano, o bispo de Rouen no norte da França, teria vencido um monstro alado e trazido a sua cabeça cortada para pôr no exterior da igreja e espantar os maus espíritos.





O interior dela não fica por menos, com belas arcadas e vitrais.



Mas há mais que igrejas em Dijon. A cidade, como lhes disse, é toda ela um charme no seu centro, e umas voltas ali são bem dadas num dia de sol.
Você deve buscar a Rue des Forges, e no seu número 34 dar uma espiadela no que é uma edificação civil gótica do século XV — o que era a morada de alguém rico, hoje o chamado Hotel Chambellan.




Se você precisar de ajuda, dizem que no Centro de Informação Turística atrás do Palácio dos Duques da Borgonha eles lhe dão um mapinha sobre onde encontrar todas as corujas.





Estejam apresentados a Dijon e a algumas destas suas paragens principais, meus caros.
Duas ou até três noites aqui são bem passadas, com a recomendação de uma escapadinha até a Beaune se você puder. Iremos lá, então a Borgonha continua na próxima postagem.
