Eu garanto que você nunca conheceu um hospício tão belo quanto este de Beaune [lê-se Bô-nne], medieval, construído sob os auspícios dos duques aqui da Borgonha no século XV.
Prenúncio do SUS (!), ele era na verdade um hospital geral gratuito e acessível aos pobres. Uma santa casa. Estou brincando na relação com o Sistema Único de Saúde, mas estes Hospícios de Beaune inovaram, sim, por serem um hospital sem vínculo a qualquer ordem religiosa específica. O chanceler do duque da Borgonha simplesmente resolveu criar um lugar onde os pobres pudessem ser tratados. Isso a 4 de agosto de 1443.
Bem-vindos ao que é uma cidade pitoresca a um pulo de Dijon, o bate-e-volta ideal a se fazer desde aquela capital da Borgonha — histórica região do oeste da França de que comecei a lhes falar no post anterior.
Beaune é bem menor que Dijon, tem pouco mais de 20 mil habitantes e um centrinho relativamente compacto, que você cobre todo a pé desde a estação de trem. Passa-se uma tarde extremamente agradável aqui na primavera ou no verão, para se ver o seu hospício medieval e mais.




Voltas em Beaune, e o vinho antes do hospício
Era um sonho de um dia de verão, verão tardio já em setembro, mas com pleno sol e flores como vocês veem na foto acima. Sorvetes à tarde e andadas algo boêmias por estas ruas de cidades francesas. Não sei quem são os turistas, quem são moradores franceses, sei que a cidade adquire certo ar bon vivant do aproveitar a vida.
Até que, de repente, comecei a ouvir muitos turistas norte-americanos pelas ruas. Esta região do vinho borgonho se revelaria muito popular entre eles. Não faltam visitar às chamadas caves para ver a produção e degustar, as duas principais daqui sendo a L’Ange Guardian e a Patriarche Père et Fils. As avaliações são um pouco mistas, embora em geral positivas. Tendo já feito o tour de Champagne, não me interessei muito, mas fica aí a observação a quem se interessar.
Há um certo marketing voltado ao público norte-americano nas casas de vinho aqui em Beaune. Tome com um grão de sal as empolgações; nem sempre os vinhos são necessariamente fantásticos pelo que vi dos comentários, embora haja coisa boa. Os tintos são em sua maioria Pinot noir e os brancos, Chardonnay. (Se você for aficionado, pode também se interessar pelo Museu do Vinho da Borgonha, numa antiga propriedade dos duques.)
Porém, nem só do vinho vive o homem. Beaune é um excelente bate-e-volta desde Dijon (20 minutos de trem, por 10 euros o trecho) mesmo que você não se interesse tanto pelo chamado enoturismo aqui. Há uma lindíssima basílica medieval, e a visita ao hospício do século XV, ela sozinha, já vale a vinda.



Beaune no medievo, e sua Basílica Notre-Dame do século XIII
Permitam-me um pouquinho de História para trazê-los de volta ao que era o Ducado da Borgonha na Idade Média antes de prosseguirmos.
Beaune adquire direitos de cidade em 1203, naquele período em que as cidades e seu comércio começavam a aparecer no que era uma Europa de feudos. Essas “cartas de direitos” lhes davam prerrogativas legais e tarifárias diante do senhor feudal, neste caso o poderoso Duque da Borgonha. Era do seu intere$$e que assim fosse, e uma das razões pelas quais tornou-se poderoso nesta rota comercial entre Paris, Flandres (que também lhe pertencia), e a Itália.
No post anterior, na capital regional Dijon, eu falei sobre como esses duques ascenderam a ponto de desafiar o poder dos reis da França antes de o absolutismo se instaurar.
Já no início do século XIII, após a fundação de Beaune como cidade, terminou de ser construída aqui a Basílica Notre-Dame de Beaune, seguindo o estilo arquitetônico da famosa Abadia de Cluny (do século X), também aqui na Borgonha.




Ela, curiosamente, não é uma catedral. Isso porque, na organização da Igreja Católica, uma catedral significa haver aqui um bispo com responsabilidades diocesanas, etc.
Já esta basílica é uma colegial, significando que a administração é feita por um colegiado de cânones em vez de um bispo.
É uma diferença organizacional apenas; do ponto de vista estético, não há diferença.



O Hospício de Beaune (Hôtel-Dieu) e o Dia do Julgamento
Há quem leia nessa presença de Rua do Inferno e Rua do Paraíso em Beaune toda uma representação escatológica que se casa bem com a principal obra artística na cidade, O Último Julgamento, obra-prima do pintor flamengo Rogier van der Weyden (1400-1464). Fica no interior do hospício — daqui a pouco mostro.
Na verdade, dizem que a Rua do Inferno deve seu nome ao simples fato de que a cozinha ducal fica por ali, com seu infernal fogo. Já a do paraíso, é propriamente pela sua adjacência à basílica.
Eu naveguei por ali inocente ainda de tudo isso, e antes mesmo de ver o Último Julgamento com sua imagem emblemática de São Miguel e a balança da justiça.
Fica no interior do hospício, como a coroar o lindo conjunto arquitetônico do século XV obra do chanceler dos duques da Borgonha, Nicolas Rolin, e sua esposa Guigone de Salins, uma santa casa (hôtel dieu) de estilo gótico flamboyant.

Depois de vários dias comendo coisas de padaria na França dia e noite, sentei-me num restaurante italiano para mudar um pouco neste almoço. Isso foi após uma longa ligação telefônica com uma amiga minha; vi bater 14h no relógio e me arrepiei, sabendo que os restaurantes franceses geralmente se encerram nesse horário sem dó nem piedade. Acho que eu seria o último a ser servido antes de pegar o tour das 15h45 no hospício.
Você pode fazer uma visita livre por 10 euros ou uma visita guiada (em inglês ou francês) por 13 euros. Eu resolvi valorizar o trabalho do guia e dar os 3 euros a mais, e acho que valeu a pena para a 1h de visita.




A fundação foi uma coisa meio filantrópica e meio de Estado — sem ter sido iniciativa da Igreja, embora ela ali (sempre) estivesse envolvida.
Ainda se tem nota do ato de fundação feito pelo chanceler Rolin na ocasião, que ponho aqui ipsis litteris para vocês (traduzido do francês):
Eu, Nicolas Rolin, cavaleiro, cidadão de Autun, senhor de Authume et chanceler de Borgonha, neste dia de domingo, 4 do mês de agosto, no ano do Senhor 1443 […] no interesse da minha salvação, desejoso de trocar pelos bens celestes bens temporais […] eu fundo, e doto irrevogavelmente na cidade de Beaune, um hospital aos doentes pobres, com uma capela, em honra de Deus e da sua gloriosa mãe…

A Borgonha, nesse período, era facilmente o ducado mais poderoso da França. Governava, como cheguei a detalhar no post anterior, inclusive terras fora da França — como se o Estado do Amazonas tivesse domínios também fora do Brasil, digamos no Peru. Na Idade Média, havia dessas.
A verdadeira galinha dos ovos de ouro dos borgonhos era Flandres, terra próspera (onde hoje é a Bélgica) e que já desde o século XII prosperava com pujantes cidades comerciais (Gante, Leuven, Bruges e outras).
Ali no século XV, era Antuérpia quem prosperava já como capital europeia do açúcar e de outras especiarias asiáticas, dinheiro que se usava para fomentar as artes. Flandres teve provavelmente a maior expressão artística europeia renascentista fora da Itália.

À esquerda da obra, os portões do paraíso. À direita, o caminho para o inferno, que algumas almas inevitavelmente tomavam após renascer da terra. (Daí a relação com os nomes das ruas de Beaune.)
A obra fica no interior do hospício de Beaune, comissionada também ela por Nicolas Rolin. Muito do que pintores flamengos fizeram naquele século XV foi tendo os borgonhos como mecenas.
Vale lembrar que o duque borgonho Filipe III, o Bom, chegou mesmo a falecer em Antuérpia, já que passava boa parte do seu tempo lá.
O próprio Rogier van der Weyden veio a ficar rico, como também deu aos pobres.




Este lugar, na verdade, funcionou como santa casa até a década de 1960. Sobreviveu bem mais que o Ducado da Borgonha.




Você faz uma visita agradável de 1h aqui. (Note que, se fizer o tour guiado, não dá para retornar — você só passa por cada sala uma vez e não volta, então tire logo as fotos que quiser.)
Eu falei que os duques da Borgonha duraram muito menos que este hospital. Isso foi porque, depois de Filipe III, o Bom, o seu filho Carlos, o atrevido (1433-1477), acabaria por ser o último duque da Borgonha. Morreu cedo sem deixar descendentes masculinos, e sua única filha — conhecida como Maria, a rica (1457-1482) — acabaria por se casar com o futuro imperador Maximiliano I da casa dos Habsburgo da Áustria. (Eu tratei mais sobre ele em visita a Salzburgo, naquele país.)
Luís XI, rei da França, logo tratou de assegurar seu controle sobre o Ducado da Borgonha quando Carlos, o atrevido — o último duque — morreu. Sua filha Maria, a rica, que tudo havia herdado aos meros 19 anos, teria o infortúnio de literalmente cair do cavalo aos 25, deixando as coisas para o seu esposo Habsburgo.
Foi o fim da Borgonha enquanto potência europeia e o início da rivalidade histórica entre os reis de França e a Casa de Habsburgo na Áustria. Essa rivalidade, que se sagrou aqui com a morte de Maria em 1482, marcaria os próximos séculos na Europa, chegando até as Guerras Napoleônicas mais de 300 anos mais tarde.

A Borgonha não vive mais enquanto entidade política autônoma, mas sua identidade histórica e cultural bem se preserva aqui. Vale a pena conhecer.
Eu, daqui, retornaria a Dijon, para em seguida continuar a ver outras partes da França.