As pessoas associam (corretamente) o Renascimento à Itália e, à França, o absolutismo dos suntuosos palácios como Versailles ou Chantilly. Porém, esquecem-se muitas vezes de que a França também teve renascença — e que essa foi um passo fundamental para haver sua monarquia absolutista depois.
Bem-vindos a Blois, um castelo renascentista francês no famoso Valo do Loire. Há muitos por aqui, como se sabe, e Blois [lê-se Bluá] é dos mais importantes e visitados. Aqui viveu a florentina Catarina de Médici como rainha de França, esposa do rei Henri II, mãe dos próximos três reis, e uma das responsáveis pela “conquista” italiana dos franceses.
Venhamos até a estação ferroviária Gare de Blois-Chambord, a 3h de Paris ou 1h de trem desde Orleans (muito melhor!), conhecer de perto um pouco melhor aquele período francês. Blois é dos castelos mais bonitos que há no Vale do Loire, especialmente por dentro, e dos mais ricos de história.
Você aqui vê como viviam os reis da França antes de eles irem viver em Paris e arredores.

A situação da França nos idos de 1500
Vamos a um breve pano de fundo para vocês compreenderem melhor o significado e o contexto histórico da época em que estes castelos no Vale do Loire foram feitos e habitados.
Do suserano ao soberano
Como ia a França, afinal, nos idos em que Cabral aportava na Bahia e os ibéricos singravam os mares buscando colônias e especiarias?
A França não era uma potência naval — nem de longe se comparava ao globalismo imperial que Portugal e Espanha tinham à época —, mas ela se consolidaria aos poucos como a monarquia mais poderosa da Europa.
Vencida a Guerra dos Cem Anos (1337-1453), expulsos os ingleses e consolidada a autoridade real, tivemos um processo de transformação do suserano em soberano.
O que é isso? Simples: antes, na Idade Média, o rei havia sido seu suserano, um senhor superior a quem você devia honras e reconhecimento; agora, o rei consolidava poder o bastante para ser soberano, o que significava que ele de fato mandava na coisa toda. Passa-se da suserania à soberania real.
(É daí que depois, no século XVIII, de novo na própria França, pensadores resgatarão a ideia clássica de que verdadeiros soberanos são os cidadãos, e se passará com a Revolução de 1789 da noção de soberania real à de soberania popular e do estado como “coisa pública” [a Res Publica], etc.)

A monarquia absolutista em Blois
Por ora, estávamos na época da consolidação da soberania real. Vencida a Guerra dos Cem Anos, Charles de Orleans (1394-1465), duque que por 25 anos ficou cativo dos ingleses, voltou à França e se retirou aqui. Transformou, para sua comodidade, o antigo castelo medieval de Blois no palácio renascentista que você agora encontra.
Seu filho viraria o rei de França Luís XII (1462-1515), que abraçaria Blois como residência real. Ele foi genro de Luís XI, cujo único filho homem governou por pouco tempo e morreu prematuramente (aos 28 anos) ao bater a cabeça na verga de uma porta.
Rei morto, rei posto. Luís XI havia sido apelidado de “a aranha universal”, dada a quantidade de futricas, intrigas e maquinações sobre as quais ele regia. Nascia a política moderna. Com a concentração do poder real, ocorreu o chamado desarmamento da nobreza, pois vantagens agora se obtinham através de favores na corte do rei, não mais com brigas de espada.
A casa real manteve as cobranças de impostos introduzidas para custear a Guerra dos Cem Anos e, agora também com armas de fogo, controlava exércitos aos quais nenhum nobre encastelado poderia se opor. Governavam, além disso, uma economia mais complexa, comercial, e que já não era mais aquela coisa medieval de subsistência dos feudos.

Luís XII, o primeiro rei francês a governar aqui de Blois, foi até um rei pouco centralizador — ele seria apelidado de “pai do povo” por ter reduzido impostos.
Seus sucessores, porém, inaugurariam o absolutismo francês aqui em Blois com uma corte cada vez mais centralizada — e pomposa. Veremos em breve como remodelaram este castelo num palácio.
Seria, além disso, uma corte cada vez mais italianizada, dando partida ao Renascimento francês.




“O melhor arranjo de casamento do mundo“
Em 28 de outubro de 1533, o rei de França se casava com Catarina de Médici, uma pessoa comum, sem sangue nobre, mas da poderosa rica e família que dava as cartas em Florença. O casamento foi arranjado pelo seu tio avô, Giulio de Médici, que então era mais conhecido por sua alcunha papal: Clemente VI. Foi ele quem se jactou de fazer aqui “o melhor arranjo de casamento do mundo“, vinculando a sua família à pujante realeza francesa.
Esse rei foi Henri II (1519-1559), que havia sucedido François I, o qual sucedeu o nosso estimado Luís XII “pai do povo”. François I (1495-1547) é dito ser o primeiro rei absolutista da França.
O nome “absolutismo” não era usado nesse tempo — o nome só aparece, e de forma crítica pejorativa, no século XVIII. Porém, ele realiza uma série de reformas centralizadoras, e é por exemplo o primeiro rei francês a exigir ser tratado por Vossa Majestade em vez de Sua Alteza, como era habitual.
A bem da verdade, a mudança do pronome de tratamento adveio primeiro de Carlos V, que ao assumir tanto a coroa espanhola quanto o Sacro-Império Romano Germânico achou-se poderoso demais e que a alcunha de Sua Alteza já não lhe era suficiente.
François I quis imitar aquele que era seu arqui-inimigo e que agora cercava a França de ambos os lados. Daí também sua urgência centralizadora — mas eu aguardarei para falar melhor de François I no vizinho Chateau de Amboise, onde ele escolheu viver e onde chegou a albergar ninguém menos que Leonardo Da Vinci. (Foi como a Mona Lisa viria parar na França.)
Como sua esposa queria voltar para Blois, ele mandou construir toda a ala que você vê abaixo, conhecida devidamente como a ala de François I.


Mas voltemos a Henri II, o sucessor de François I. Ambos foram reis arquetipicamente renascentistas na França, e que no caso de Henri II importou trocentos costumes e produtos italianos vindos com sua mulher.
Por exemplo, não se usava garfo na França — a moda veio da Itália. Comenta-se que Catarina de Médici trouxe dezenas de cozinheiros italianos para sua corte na França, e com eles muitos alimentos e maneiras à mesa. Por exemplo, os franceses não tinham por hábito usar guardanapos individuais (limpavam-se as mãos na toalha da mesa). O costume foi introduzido aqui neste período.
As guloseimas açucaradas aparecem também na França nesse tempo, o açúcar que era na Idade Média visto como um raro produto terapêutico. Agora, e com o espalhamento da produção de açúcar Atlântico afora pelos portugueses, os italianos trariam as suas receitas, como as pastilhas com goma arábica, cujo nome dizem vir do confeiteiro italiano Giovanni Pastilla. (Já “goma arábica” é porque foram os árabes que trouxeram o uso dessa goma africana de origem vegetal.)
Com as comidas e novas maneiras à mesa vieram também outras artes, como detalhes da arquitetura que já lhes mostrei acima. A Itália começava a conquistar culturalmente a França. Vamos ver agora um pouco melhor, no Chateau de Blois, no que isso deu.

Visitando o Chateau de Blois
Chegando à cidade de Blois hoje
Eu visitava numa manhã amena do segundo semestre, ainda antes de o outono francês aparecer com força. Cheguei à estação ferroviária de Blois-Chambord vindo de Orleans, a cidadezinha de Blois já pacata e tranquila, sem as hordas de turistas que chegam em massa naqueles ônibus no auge do verão.
Embora tudo aqui obviamente gire em torno do château, Blois é também uma cidadezinha de algumas poucas ruas. Tem ruelas, restaurantes, praças, escadarias, e naturalmente uma ponte sobre o rio Loire. Em menos de 10 minutos, se chega a pé da estação ferroviária ao palácio.
Como eu já havia observado em Orleans, achei o rio Loire seco. Como grande parte dos rios europeus, ele parece sofrer de assoreamento e outros problemas ambientais que só agora, tardiamente, têm recebido mais atenção. Antes tarde do que nunca, e espero que aqui não seja ainda tarde demais. Os efeitos se notam.
Boa parte desse caminho até o castelo você pode fazer dentro do Parc des Lices, com uma estátua da deusa Diana, a caçadora, e o conjunto de árvores apelidado de Bastião do Rei (Bastion du Roi), de onde já se tem uma vista ao Château de Blois. A cidadezinha tem sua breve medida de sobes e desces.



Ali adiante, no antigo Bastião do Rei, eu veria árvores em fileira, bem podadas, tudo com esmero. Embora o outono ainda não houvesse entrado pra valer, muitas folhas amareladas já se apresentavam pelo chão.


O Château de Blois propriamente dito
Vamos ao que interessa. A entrada no castelo de Blois custa €13 com direito ao chamado HistoPad, um tablet que vai dando informações e também mostrando as salas como elas eram nos tempos do Renascimento. Não é obrigatório, mas é bem legal. Você pode também adquirir um audioguia pagando €3 a mais.
(Os preços e informações atualizadas você sempre encontrará no site oficial do Château. Lá em cima na página você pode trocar de idioma. Ao contrário de outros lugares, aqui não é obrigatório adquirir ingressos online com antecipação, embora você possa fazê-lo.)
A quem se interessar (e compreender), há visitas guiadas em francês nestes horários aqui. Durante julho e agosto, você pode encontrar guias em outras línguas também. Já o audioguia e o HistoPad estão disponíveis em português.
Eu visitei por conta própria, e diria que você deve planejar umas 2h de visita se quiser ver tudo com tranquilidade. Há um bom Museu de Belas-Artes embutido dentro château, além de uma capela, as suas áreas externas, e os aposentos reais renascentistas.



Os interiores do Château de Blois
Você aqui tem muitas partes. Passa-se pelos aposentos de Henri II e Catarina de Médici, pela área convertida em Museu de Belas-Artes, pela suntuosa Sala dos Estados-Gerais, assim como pela capela.
Tudo vale a pena quando a alma não é pequena, já dizia Fernando Pessoa.


Subamos aquelas escadas aos aposentos reais agora.



Aqui viveu a rainha Catarina de Médici (1519-1589), mas não apenas ela. Nada menos que sete reis franceses e suas respectivas rainhas escolheram ter sua corte neste Chateau de Blois. Inclusive, haveria depois uma outra Médici, Maria de Médici (1575-1642), casada com Henri IV e mãe do rei Luís XIII, ao qual estariam mais tarde em serviço D’Artagnan e os Três Mosqueteiros.
Eu estou falando dessas Médici como expoentes que trouxeram maneiras e coisas da Itália consigo (a introdução da pastilha que daria origem a todas as balas de chupar teria se dado com Maria de Médici). Porém, a verdade é que nesse período a França guerreou por décadas nos principados italianos contra a coroa de Espanha. Nisso, muito se transmitiu culturalmente.
A França viria a abocanhar a região de Saboia dos italianos, e futuramente apanharia também a atual Provença (que até hoje tem mais cara de Itália que da França), mas perderia o sul italiano — especialmente o Reino de Nápoles e da Sicília — para os espanhóis.





Terminando os aposentos reais, você chega à importante Sala dos Estados-Gerais. Essa, uma instituição nem sempre bem compreendida atualmente, era uma assembleia consultiva de representantes das várias camadas sociais, algo que já existia mesmo no tempo da monarquia.
Daqui saíram as noções de primeiro estado (clero), segundo estado (nobreza), e terceiro estado (o povo, representado na prática pela burguesia de comerciantes). Disso também se fariam as noções de primeiro, segundo e terceiro mundo no século XX.
A grande sacada do absolutismo é que o rei habilmente jogava os grupos uns contra os outros, sendo ele a fonte de equilíbrio.
Sempre se pergunta “Por que é que as pessoas se prestavam àquela pompa toda dos reis franceses?“. Étienne de la Boétie na sua obra desse período Discurso da Servidão Voluntária (1576) — que voltou a estar famosa atualmente — comenta como não era por coerção, mas sim por consentimento, que as pessoas se prestavam a servir os reis absolutistas.
A questão é que a sociedade medieval havia mudado, tornado-se complexa, e servir — ou mesmo adular — a realeza era agora uma forma de obter benefícios que já não se conseguiam pela via da espada. Era agora preciso ser um animal político hábil em todas as cortesias (palavra que vem, precisamente, de corte).
Afora portanto a noção do direito divino, os grupos sociais se beneficiavam daquilo. Os reis, entretanto, não permitiam que nenhuma classe ficasse poderosa o bastante para não depender mais dele em face às demais.
A Revolução Francesa se deu, precisamente, quando a nobreza e o clero já estavam tão enfraquecidos diante da burguesia que esta pôde dispensar com o rei e todo aquele sistema de contrapesos que existia.



Henri III, que reinou entre 1574 e 1589 aqui de Blois, foi o primeiro a codificar o ritual diário das atividades do rei e quem teria permissão de assistir ou participar do quê.
Luís XIV, um século mais tarde, não inventou portanto aquela bajulação toda que escutamos em Versalhes; ele meramente ampliou um sistema que já estava em voga na realeza e sociedade nobre francesa há pelo menos um século. Foi aqui em Blois que aquilo tudo teve início.



Hoje, Blois é um lugar bem mais “descolado”. No seu centro, por exemplo, você verá a curiosa escadaria literária onde cada degrau leva o nome de um autor ou livro clássico.

Porém, é sua história que segue sendo a alma da cidade, e o Château de Blois, o seu coração.

As andanças continuam. Blois é um dos mais importantes lugares renascentistas da França, mas não é o único. Outro muito importante está aqui perto: Amboise, onde François I recebeu Leonardo Da Vinci como hóspede — e onde este morreu e está enterrado. Iremos para lá.