Você aí talvez nem soubesse que Leonardo Da Vinci está enterrado aqui no Vale do Loire, na França.
Está aqui em Amboise [Ambuáz], onde ele viveu seus últimos anos, uma das principais cidadezinhas com castelo de época nesta região da França — e talvez a principal de todas elas. Naquele tempo do Renascimento francês (1500-1600), cada rei escolhia residir numa morada diferente a seu gosto, e junto com Blois (que lhes mostrei no post anterior), Amboise é das mais emblemáticas.
Amboise é visita obrigatória aos entusiastas do Renascimento francês. É um período fundamental para a formação da cultura francesa como a conhecemos, quando começa a se formar aquela pompa e o absolutismo que ganhariam níveis inimagináveis com Luís XIV e seus sucessores em Versalhes nos idos de 1650-1750.

Este foi o princípio do período de glória francês, e esta foi a porta de entrada a novas modas, costumes e saberes da Itália já em pleno Renascimento desde o século XV. Dentre outros, dois reis franceses casam-se com mulheres oriundas da florentina família Médici, que trazem consigo séquitos de auxiliares italianos.
Ninguém menos que Leonardo Da Vinci (1452-1519) é convidado a vir morar aqui pelo rei de França, François I (1494-1547), seu grande admirador. Foi como a Mona Lisa veio parar na França.
Vamos visitar tudo isso: tanto o real Chateau d’Amboise quanto o Chateau Clos Lucé [clô-lucê], a 500m do anterior, uma mansão renascentista entregue a Leonardo para que ele ali vivesse confortavelmente e trabalhasse nas suas criações. Passa-se um dia bem passado de visita aqui.


Vindo visitar Amboise
Um pouco do pano de fundo
Amboise existe desde antes da Idade Média. Já no tempo dos romanos, havia uma fortificação neste ponto onde duas ilhotas no meio do rio Loire fazem deste um lugar perfeito onde construir pontes, ter um posto fortificado de proteção, e cobrar pedágio de quem passa.
Castelos medievais foram sendo erigidos e ampliados sobretudo após os ataques Vikings no século IX. Eles usavam os rios para penetrar neste interior da França e pilhar os tesouros deste que já era um reino bem mais próspero que as agrárias terras escandinavas naquele tempo.
O magnânimo rei acabou por perdoar o nobre, mas ficou com o castelo.
Adiantemos a fita para 1431, quando o rei Charles VII — o qual Joana D’Arc ajudou a coroar e a derrotar os ingleses na Guerra dos Cem Anos (1337-1453) — confiscou a propriedade do nobre Louis d’Amboise, acusado de conspirar contra a coroa. O magnânimo rei acabou por perdoar o nobre, mas ficou com o castelo.
Ainda no fim daquele século XV, seu sucessor Charles VIII decidiria reformar o castelo, dando-lhe a cara que você vê hoje. Adotou o estilo gótico flamboyant, tipicamente cheio de detalhes, e chamou arquitetos italianos para dar um ar renascentista com jardins e interiores decorados, de acordo com os novos tempos.

Amboise hoje
Amboise hoje é uma turística cidadezinha com sua própria estação de trem a 2h de viagem desde Paris (Gare d’Austerlitz) ou 1h20 de Orleans, que foi o trajeto que fiz. Você chega do outro lado, e entre você e o castelo há o Loire.
Ali desembarcando, desci a Rua Jules Ferry (em homenagem ao finado piloto francês)até a ponte. Nada pretensioso, poderia ser uma rua de bairro de uma cidade qualquer no Brasil. Daí é que você chega ao rio, o qual eu tive a impressão de poder cruzar a pé se quisesse, de tão baixa sua vazão.

Com a devida vênia, os franceses deveriam tomar vergonha e regenerar o Loire. Está uma coisa triste, ver um rio tão famoso — e, ainda por cima, numa região de tamanho chamariz turístico — definhar desta maneira.
Neste ritmo, daqui a algumas décadas vai ter um filete de água, quiçá acompanhado de uma placa “Aqui jaz o Loire”. (Os brasileiros não podem dizer muito, é verdade, visto o que se faz ao São Francisco e os rios eternamente poluídos das urbes brasileiras. É uma vergonha geral.)


Cruzando a ponte, damos com a cidadezinha que tem os ares da França do século XIX. Não havia propriamente uma cidade aqui nos idos medievais nem renascentistas — os reis viviam no que era essencialmente uma zona rural. Somente séculos mais tarde é que este povoamento ganharia proporções próximas das atuais.
Ainda assim, e embora Amboise hoje tenha uma aura bastante contemporânea e comercial da França turística, há do pitoresco na cidade.





Aspectos práticos
Não é necessário comprar ingressos antecipadamente na internet para visitar o Château d’Amboise, pois ele é bastante amplo, mas você pode fazê-lo no site oficial se quiser. Ali há os custos sempre atualizados e os horários. (Note que fecha para o almoço na baixa estação!).
Você, entretanto, precisa reservar antecipadamente — de preferência várias semanas antes — a entrada no Château Clos Lucé, onde Leonardo morou. Aquele é pequeno, e ali só se entra com hora marcada. Os dois lugares ficam cerca de 500m um do outro (e se vai a pé), então vale se programar bem com os horários.
Eu comecei por Amboise, no fim da manhã, vindo de Orleans. Não é nem um pouco necessário você dormir aqui, a menos que faça questão. Eu almoçaria ali pelo centro, e depois seguiria para o Clos Lucé num horário que reservei à tarde.
Comecemos pelo grande château real. Você gasta cerca de 1h visitando os interiores de Amboise. Sua área externa é ampla, mas seu interior é menor que o de Blois.

Mas a entrada turística não é por aqui. Tive que dar a volta até o centrinho da cidade, onde se sobe por uma rampa. Lá, você encontra o acesso ao Château d’Amboise bem no meio da folia.


O Château d’Amboise e a Capela de Da Vinci
Daqui a pouco iremos ao Clos Lucé, onde Da Vinci residiu. Iniciemos por onde se começa a visita aqui: com o Château d’Amboise propriamente dito.
Você sobre aquela rampa, e lá dentro há a bilheteria que lhe fornece também um tablet (que eles chamam de HistoPad) vinculado ao audioguia. Está na moda aqui na França. Há em português e uma pá de idiomas.






Os interiores do Château d’Amboise
Os interiores do Castelo de Amboise não são tão extensos, como lhes disse. Depois é que, com a prosperidade crescente do Reino de França, os reis esbanjariam palácios monumentais como Versalhes.
Aqui a coisa ainda era relativamente modesta em comparação, mas se vê o início da tendência de se decorar os interiores — uma inovação após as típicas paredes nuas dos castelos medievais.
Agora, a tônica estava no conforto, no gosto e no estilo. Ganharam popularidade as tapeçarias, de pôr na parede, assim como tetos de madeira pintada e também camas cerimoniais, onde o rei não dormia, mas realizava certos ritos sociais com os nobres mais próximos.




Quem mais trabalhou para levar adiante um Renascimento francês, inspirado naquilo que já ocorria na Itália, foi o rei François I (1494-1547). Nascido no ano da assinatura do Tratado de Tordesilhas, ele cresceu já aqui em Amboise, transformado como este ia sendo por Charles VIII e, depois, Luís XII.
Faço menção ao famoso tratado que dividiu o Novo Mundo entre Portugal e Espanha porque costumamos pensar no Renascimento como o resgate do mundo clássico nas artes, mas nos esquecemos que os descobrimentos das Américas e de uma nova rota comercial em torno da África até o Oriente revolucionou a visão de mundo dos europeus.
François I indagou ao papa onde é que estava o testamento de Adão em que ele legava o mundo apenas aos portugueses e espanhóis.
De repente, havia novos alimentos (como a batata, o tomate, o milho, todos eles do Novo Mundo), um gênero diferente de gentes, maior contato com os mercados asiáticos — e a urgência de a França tirar o atraso naquilo tudo. É nesse tempo, no reinado de François I, que a França deixa de ser apenas um reino medieval europeu e passa a se projetar como império global, ela que largava atrasada um século depois dos ibéricos.
Foi nesse período, mais precisamente nos anos 1530-1540, que zarparam as expedições do navegador Jacques Cartier, que chegaria à America do Norte para fundar o que se tornaria o Quebec no Canadá francês e também outras posses que posteriormente seriam vendidas aos Estados Unidos (como a Louisiana). Foi também a partir dali que a França começou a se interessar em tomar as posses portuguesas na América do Sul, no que viria a se tornar o Brasil.
Já em 1555, os franceses invadiriam o Rio de Janeiro, após François I indagar ao papa onde é que estava o testamento de Adão em que ele legava o mundo apenas aos portugueses e espanhóis.


Leonardo Da Vinci na França
Leonardo Da Vinci (1452-1519) não carece de fama nem de obras. Nascido em Vinci na região da Toscana, onde fica Florença, esse homem das ciências e das artes trabalhava em quase tudo: paleontologia, anatomia, botânica e pinturas, assim como em astronomia, engenharia e tantos outros temas.
Leonardo trabalhou bastante tempo sob a batuta do Duque de Milão Ludovico Sforza — que pela sua pele morena era adequadamente apelidado de Ludovico, o Mouro, e foi um dos grandes nobres da aristocracia italiana. Sua residência oficial, o Castelo Sforzesco, você ainda visita hoje em Milão. Lá Leonardo pintou, por exemplo, A Última Ceia (1498) na parede de um refeitório, que visitei e lhes mostrei aqui.
À altura do ano 1500, Leonardo Da Vinci já era bastante famoso Itália e Europa afora, mas não havia ainda pintado a Mona Lisa. Essa Leonardo faria entre 1503 e 1506, um retrato da aristocrata italiana Lisa Gherardini, e que viria a se tornar o quadro mais famoso do mundo. O rei francês François I não demoraria a adquiri-lo, e é por isso que o quadro está desde então na França.
François I (r. 1515-1547) era um entusiasta de todas as coisas do Renascimento, e estava determinado a trazer dos saberes e artes italianas à França. Trouxe o próprio Leonardo Da Vinci a viver cá, o mestre italiano já sexagenário, num contexto das Guerras Italianas em que França e Espanha disputavam o controle sobre ducados e reinos menores na Península Italiana.

François I conquistou Milão em outubro de 1515 — tornando-se ele próprio o novo Duque de Milão, à revelia dos Sforza — e logo no ano seguinte apelou a Leonardo que viesse trabalhar na sua corte, na França.
Leonardo trouxe consigo a Mona Lisa, que terminaria de retocar ao longo dos anos seguintes até 1517, e viria viver o restante de seus dias aqui, instalado no renovado Chateau Clos Lucé, a um pulo da então morada real em Amboise.
Ambos os castelos já existiam no medievo como típicas fortificações nobres, e no século XV foram adquiridas (compradas ou confiscadas) por uma realeza em ascensão. (Em Orleans, eu comentei como a conclusão da Guerra dos Cem Anos em 1453 permitiu aos reis franceses concentrar poder.)
A França agora entrava na sua transição do medievo para a Renascença. Fortificações já não eram mais tão necessárias; a ênfase agora estava na arte, no estilo, e no conhecimento.
Iremos ao Clos Lucé, onde Leonardo residiu, mas antes de deixar o Castelo de Amboise é preciso visitar a pequena capela onde estão os restos mortais do artista.




Se você quiser ver mais deste entorno, pode assistir ao seriado The Serpent Queen, que foi filmado em parte aqui no Castelo de Amboise. Estreou em 2022, com Samantha Morton no papel de Catarina de Médici, a florentina que viria a se tornar rainha da França, casada com Henri II, filho de François I. (O seriado tem contornos demasiadamente anglo-americanos para o meu gosto para ser retrato histórico do que se passava aqui entre italianos e franceses, mas fica a dica como entretenimento.)
Embora Catarina e seu rei tenham vivido a maior parte do tempo no Castelo de Blois aqui próximo, foi neste de Amboise que eles se casaram. Fala-se do festim com cisnes assados — e que depois eram re-enfeitados com as próprias penas para apresentação à mesa — e uma série de outros costumes ainda medievais, antes de os modos renascentistas ganharem lugar.
Já se usavam, por exemplo, garfos e guardanapos na Itália renascentista, mas a França só os adotaria a partir do século XVII. Até então, comia-se de mão com uma faca. Limpavam-se as mãos na toalha, e era normal cuspir os ossos no chão — as boas maneiras da época exigiam apenas que se fizesse isso do seu próximo lado da mesa, não atirados ao outro lado.






Visitando o Château Clos Lucé
Eu almocei em Paul e me dirigi então por ruas despretensiosas até o Château Clos Lucé, que fica meio que “aos fundos” da cidade. Lá ele fica refugiado de todo o bafafá, e ainda é possível imaginar Leonardo ali trabalhando em paz.
Alguns turistas ficam só no Castelo de Amboise, mas estes são dos 500m mais valiosos de se fazer. Eles agregam bastante à visita, pois a verdade é que os interiores do Château Clos Lucé são melhor arrumados que os do Chateau d’Amboise. Há também toda uma exposição sobre projetos e desenhos de Leonardo.

A visita aqui é inteiramente focada na vida e obra de Leonardo da Vinci, com as necessárias referências à realeza francesa e, em especial, ao rei Francois I como o seu mecenas.
Não há das multi-milionárias obras-de-arte de Da Vinci aqui, já lhes digo, e talvez por isso não há nenhum grande esquema de segurança. Essas você vê mundo afora, no Museu do Louvre, na cidade de Milão, ou mesmo futuramente na Arábia Saudita sob posse do príncipe Mohamed bin Salman, que em 2017 comprou Salvator Mundi por quase meio bilhão de dólares — o maior valor já pago num quadro.
Aqui no Château Clos Lucé, o que você tem é a atmosfera daquele tempo e o espaço que Leonardo habitou — exalando ainda toda a aura do Renascimento.
Embora hoje ambos os “castelos” carreguem a mesma descrição de château, vale lembrar que Clos Lucé não é propriamente um castelo, mas uma residência senhorial, uma mansão. Nele, nota-se já de pronto um estilo muito mais claramente renascentista que no Castelo de Amboise. Nada mais de fortificações cá; em lugar disso, jardins de rosas e paisagens bem cuidadas no entorno.



A visita ao Chateau Clos Lucé não é barata, mesmo para os padrões da França. A entrada me custou €22,50, o que, sim, é caro, mas que faz pouquíssima diferença no orçamento geral da viagem de quem se dispôs a vir de outro país até a França.
Atente que aqui é preciso fazer reserva com horário e data marcados — e de preferência com dias ou semanas de antecedência, sobretudo no verão. Quando for reservar seu hotel na França, adiante-se e reserve logo estas entradas também. Você pode fazê-lo pelo site oficial. (Neste momento em que escrevo, o site deles parece estar precisando atualizar o certificado de segurança. Se aparecer algum alerta ao tentar acessar a página, é por isso.)
Eu cheguei e fui entrando por aquele castelo renascentista de tijolinhos, a ver os ateliês originais onde Da Vinci trabalhou e os espaços simples, de casa, onde ele viveu durante sua melhor idade.


É curioso que, embora haja algumas decorações e até luxos semelhantes aos das habitações reais em Amboise ou Blois, aqui o lugar não consegue deixar de ter uma aura campestre simples, digno de uma alma tranquila e criativa. Sente-se isso no ar.




Talvez até pelo limite no número de pessoas por hora aqui, a visita é relativamente pacata. Você veja que eu consegui tirar essas fotos acima sem nenhum outro turista nelas.
Daqui, você pode visitar uma exposição de rascunhos e geringonças curiosas que Leonardo da Vinci concebeu, e depois se desce rumo ao jardim de rosas. Ainda na propriedade do castelo, antes de você sair da área de acesso pago, pode circular pelo pequeno bosque com córregos onde o pensador e artista costumava caminhar.




Eu completava este périplo e aos poucos voltava para a estação de trem, passando ali mais uma vez pelas fortificações do século XV do Castelo de Amboise e tendo ainda a chance de me despedir dele ao longe, ao que eu re-cruzava o rio Loire.


Leonardo da Vinci aqui foi a cereja do bolo de um período de crescente prosperidade para a França, quando ela começou a se tornar aquilo que nós viemos a conhecer — um país de grande vocação artística na matriz cultural neoclássica trazida da Itália.
Pode-se conhecer Versalhes, o próprio Louvre, Chantilly e todos aqueles espaços monumentais frutos da prosperidade posterior, mas foi aqui às margens do Loire que tudo começou.
Excelente suas explanações! A melhor a que tive acesso! Obrigada por todo o esmero que aplicou! Estamos nos planejando para visitar o Vale do Loire e encontrar com todo esse passado tão bem preservado!