Poitiers [Puá-TIÊ] talvez não diga muita coisa a algumas pessoas, mas este foi o lugar de uma das batalhas mais importantes da História ocidental.
Aqui, em 732 d.C os francos — sob o comando de Carlos Martel, avô do futuro imperador Carlos Magno — detiveram o avanço dos mouros na Europa.
A vitória definiu que a presença árabe na Europa Ocidental se limitaria às bordas do Mediterrâneo, mais precisamente à Península Ibérica e ao sul da Itália. Tivesse o resultado sido diferente, a França poderia nunca ter surgido depois como reino, e talvez nem existisse hoje a Europa enquanto tal.
Como é Poitiers atualmente? Foi o que vim descobrir, eu que escutei falar dela pela primeira vez uns 20 anos atrás no clássico jogo de computador Age of Empires II. Ali, usa-se a alcunha anglófona de Battle of Tours, pois a verdade é que a batalha se deu entre essas duas cidades francesas — Tours e Poitiers, ambas históricas e ricas em legado que visitaremos.

Poitiers (732 d.C.) em contexto
Os dois lados

Antes de eu tratar da minha visita propriamente dita, deixem-me situar melhor onde estamos e o que ocorreu aqui.
Poitiers fica perto da zona medieval e renascentista dos castelos do Vale do Loire, mas puxada para o sudoeste — a região francesa hoje chamada de Nova Aquitânia, que tem Bordeaux como capital.
À época dos anos 500-700 d.C., não havia ainda a França como tal, havia os francos, um povo bárbaro que havia abraçado (ao menos formalmente) o cristianismo em 496 d.C. e se consolidava como uma potência militar naquela Europa pós-romana do começo da Idade Média. Seu território incluía Paris assim como pedaços da atual Alemanha, pois os francos eram germânicos e só séculos depois na História franceses e germânicos se diferenciariam.
Enquanto isso, a sul do Mediterrâneo e pelo Oriente Médio, uma nova força ainda maior surgia. O profeta Maomé faleceu no ano 632 d.C., mas seus ensinamentos — o islamismo — e liderança uniram os árabes de tal maneira que estes conquistaram um território imenso, da então Pérsia (atual Irã) ao Marrocos e à Península Ibérica.


Quem estava no meio
Vamos agora à parte que você talvez desconheça. Quem estava espremido entre os árabes e os francos? Outros bárbaros germânicos migrados do leste, especialmente os visigodos, assim como também os bascos (ou vascos), povo que já vivia ali perto dos Pirineus (montanhas que hoje dividem a França e a Espanha) desde antes da chegada dos romanos. (Note no mapa acima como há de ambos os lados um território chamado Vascônia, um a norte dentro do reino dos francos e outro fora. O do sul viraria depois do Reino de Navarra e, atualmente, o País Basco dentro da Espanha.)
No norte, os francos reinavam, mas só no papel. Visigodos e bascos haviam sido vencidos e dominados por eles já no século VI, porém os reis daquele tempo não tinham braço nem perna — leia-se tecnologia — para governar grandes territórios diretamente. Eles dependiam de prepostos, gente de confiança que governasse no seu nome (os duques), mas que com o tempo e o passar das gerações iam sentindo esvair aquela lealdade.
Por volta do ano 700, governava ali um duque chamado Eudes (ou Odão), que não se sabe bem se era franco, basco ou romano. Sabe-se é que ele gostava de autonomia. Mandava em todo o atual sudoeste da França como Duque da Aquitânia, nome que os romanos já haviam dado àquelas terras — e que, por sinal, é a origem do nome Guiana, que é uma variação de Aguiéne, como se dizia Aquitânia na língua regional daqui.

Este ducado era forte, mas ficava na linha de frente da invasão árabe. Eudes chegou a vencê-los em Toulouse em 721, o que lhe rendeu o epíteto de Eudes, o Grande, e elogios públicos do papa a ele como um bastião da cristandade.
Eudes chegou a fazer aliança — sacramentada pelo casamento de sua filha — com um chefe muçulmano rebelde, em movimentos políticos que lhe custaram expedições punitivas dos francos e saques destes a cidades da Aquitânia. (É por essas e outras que naquele tempo todo nobre vivia numa fortificação, não em palácios.)
O problema surgiu quando os árabes retornaram com um novo comandante e uma tropa maior. O tal chefe muçulmano rebelde foi posto nos eixos (isto é, foi executado); a filha de Eudes, viúva, foi parar num harém em Damasco; e os árabes agora avançaram Aquitânia adentro para — quem sabe desta vez — estender seus domínios ao norte dos Pirineus, além da Ibéria.
Derrotado agora em Bordeaux em 732 d.C., Eudes não teve alternativa a não ser pedir arrego aos mesmos suseranos que haviam saqueado as suas cidades, os francos. Com o que restou de suas tropas, o duque fugiu para o norte na direção de Poitiers a alertar Carlos Martel sobre o que ocorria.

O Conflito
Há todo um debate sobre até que ponto os árabes sabiam dos francos como um poder militar crescente lá mais ao norte. Os relatos e visões dos historiadores divergem muito — uns dizendo que os árabes subestimaram os francos e foram massacrados, até outros afirmando que os islâmicos, na verdade, não tinham interesse nenhum ali e a derrota lhes foi irrelevante. Como de costume, a verdade provavelmente se encontra entre os extremos.
A data era 10 de outubro de 732. Abd al-Rahman ibn Abd Allah Al-Ghafiqi comandava o que se acredita serem dezenas de milhares de mouros — misto de berberes (os nativos do norte africano) e árabes. Adentravam estas terras da antiga Gália pilhando e tomando como fazia qualquer exército.
Não demorou, é claro, ao papa e outros para enquadrar isto como um enfrentamento civilizacional entre cristandade e “infiéis”. Diz-se que os mouros cobiçavam saquear a Abadia de São Martinho de Tours, então o santuário mais prestigioso da Europa Ocidental à época, mas é difícil dizer se tais contornos religiosos de Guerra Santa não foram aqui impressos posteriormente.
Carlos Martel pôs-se com dezenas de milhares de homens sobre as colinas que separavam as forças árabes da cidade de Tours. Lá esperaram sete dias, Abd al-Rahman impaciente com a aproximação do inverno naquele frio outubro francês. Por fim, lançou seus cavaleiros árabes sobre a infantaria franca organizada em falanges.
Apesar de mortes de ambos os lados, as baixas árabes foram muito maiores — seja pelo terreno alto favorável a Martel, seja pela experiência deste e de suas tropas. Abd al-Rahman acabou morto em batalha. Caiu a noite, e suas tropas fugiram no escuro, deixando tendas vazias sem que os francos soubessem.
Derrotados aqui nesta Batalha de Poitiers, os califados árabes nunca mais chegariam tão longe nas suas ambições de invadir a Europa. Esse povo permaneceria, entretanto, mais de meio milênio no que virou Al-Andalus, trazendo seus conhecimentos e cultura à Ibéria.
Já cá a norte do Pirineus, os francos consolidariam seu reino, e Martel sua Dinastia Carolíngia, que com seu neto Carlos Magno (747-814) definiria os rumos da Europa.

Visitando a Poitiers atual
As primeiras impressões
Era uma tarde chuvosa e cinzenta quando eu desembarquei em Poitiers, hoje uma cidade francesa de médio porte com seus 130 mil habitantes. Atendi o telefone, que tocou em boa hora, e um tempo fiquei aguardando ao abrigo externo da estação ferroviária o chuvisco forte que de repente caiu. Poitiers hoje é deveras contemporânea. Ali ao lado mais adiante de mim, vi uma moradora de rua que sentada ao chão e com as pernas estiradas assistia a tudo, seus pertences em torno de si.
Passada a chuva, o chão ainda molhado, segui cidade adentro para ver o que Poitiers afinal tem. Eu havia lido que não esperasse nada muito “Uau”, nada tão turístico.
Para quem chega a Poitiers pela via férrea, a 1h de trem Bordeaux ou 1h30 de Paris, vê-se a cidade elevada diante da saída, de modo que se sobe várias escadas rolantes em sequência para ir desde a estação ferroviária (embaixo) até o nível do centro da cidade mais em cima. O que talvez fossem antigas muralhas de fortificação hoje estão integradas às construções de Poitiers.



Lá em cima, deparei-me com ruas estreitas, outras largas, mas não antigas. Não espere aqui encontrar uma cidade medieval — à là Carcassone — dos tempos de Carlos Martel. Não é o caso. O que há daquele período são as igrejas antigas, de antes do gótico. As ruas, porém, todas têm ar dos séculos mais recentes. Povoadas por muitos estudantes, vários idosos, e alguns doidos ou pedintes na rua.
Não me pareceu um ambiente nem tranquilo nem turístico, mas uma cidade sobretudo estudantil, talvez universitária. Adolescentes pra lá e pra cá faziam as vezes no chuvisco.
Sob risco de parecer careta, confesso ter ficado impressionado de ver um par de rapazotes que não deviam ter mais que 14 ou 15 anos a sentar “de boa” numa mesa de bar com copões de cerveja após a escola. Um outro com ares de 13 passou por mim fumando um cigarro, e eu me perguntei o que estes franceses demodê têm na cabeça. Aqui, fumar ainda é considerado sinal de estilo e de ser adulto, como na década de 1950.
Poitiers assim se revelou uma jovem cidade normal de médio porte da França, mas curiosamente com alguns lugares históricos fascinantes ali “perdidos” aos desavisados. Eu não vi nada de muito turístico no centro, com seus ares de remodelado no século XIX, nem referente à batalha. A História ficou por conta das igrejas — fabulosas, antigas, e que vos mostrarei daqui a pouco.




Como vos disse, Poitiers tem a cara geral da França contemporânea. Contudo, se a gente procurar direitinho, acha aqui umas pérolas históricas para além desse padrão francês.




As visitas: Históricas igrejas de época em Poitiers
Eu nem sempre aceito acriticamente aquele enquadramento de Guerra Santa que se dá aos conflitos históricos entre europeus e árabes, como se religião definisse tudo e os dois lados fossem como água e óleo. Esse discurso servia aos donos do poder, mas não reflete a realidade do dia-dia onde não faltaram misturas, convivência, e intercâmbio cultural apesar das guerras.
Apesar disso, é verdade que o cristianismo era — bem mais do que hoje — uma fonte de identidade aos franceses. O papa, poderosíssimo à época, tampouco deixava de exaltar o papel de reis cristãos enquanto defensores de uma cristandade — ou seja, numa leitura crua, do arranjo que lhe conferia autoridade especial e que cairia por terra se trocassem de religião.
Tenha você apreço pelo aspecto religioso ou pelo artístico (ou por ambos), o que Poitiers tem hoje de medieval — e impressionante — são as suas igrejas e outras edificações cristãs daqueles idos de após a batalha contra os árabes, quando o reino dos francos se consolidou e se fortaleceu para no século X começar a ser chamado de França.
Eu viajo bastante (inclusive pela própria França) e já não me impressiono tão facilmente com as coisas; mas mesmo já tendo visitando tantas catedrais francesas, a Igreja de Notre-Dame a Grande aqui em Poitiers me fez parar e abrir os olhos.
Antes, deixem-me lhes mostrar por dentro aquela igrejinha da foto acima, a Igreja de São Porchário (Église St. Porchaire), do século IX.


Ao adentrar a Igreja de Notre-Dame a Grande, senti-me como se tivesse adentrado algum templo egípcio antigo. Colunas de coloridos ligeiramente apagados pela sua antiguidade, num ambiente de pouca luz, algumas imagens a se elevar nos altares laterais, vitrais que traziam alguma luz à penumbra, e poucos outros visitantes a serem contados numa mão.
Datada de antes do gótico, ela é mencionada já pelo menos na altura do ano 1000, e é possível que já existisse de alguma forma nos idos da Batalha de Poitiers em 732. Só ao longo do século XI, entretanto, é que a edificação foi refeita, para ser inaugurada em 1086 no presente formato romanesco. Seu memorável interior antigo é distinto da maioria das igrejas que já vi.





Como você certamente nota, é um visual bastante distinto — e mais colorido — que as catedrais góticas que se tornariam moda posteriormente, a partir do século XII.


Impressionado eu saí, com a sensação de que só de ver este lugar já tinha valido a pena vir conhecer Poitiers.
À saída ali perto, comprei um delicioso pain aux raisins barato, por €1,50, que veio quentinho das mãos de uma vendedora gordinha jovem e sorridente por detrás do balcão, e eu tomei caminho pelas ruas molhadas de Poitiers.
Começou a chuviscar ao que entrei na grande Catedral de São Pedro. Esta tem mais tamanho, mas embora seja a catedral — e, portanto, a igreja principal daqui — ela é a mais jovem de todas. Já em estilo gótico, ela data dos séculos XII e XIII.


Avancei até me deparar com a enorme edificação medieval da sé da cidade.






O outono aqui de Poitiers parecia perene. Eu saí da catedral torcendo para que a chuva não tivesse engrossado. Não engrossou, mas os chuviscos continuavam.
Sob eles, fui ao Batistério de São João, aquele cuja foto eu mostrei mais acima, de arquitetura merovíngia de antes de Carlos Martel, do tempo de São Hilário e do princípio do cristianismo no que eram aqui terras galo-romanas — de romanos e gauleses misturados nos idos de 50 a.C. – 450 d.C.
Pagam-se 3 euros ali para entrar, e a visita é bem curta, mas vale a pena se você gosta de História ou de religião. É uma pequena edificação da Antiguidade considerada a mais antiga do cristianismo ocidental ainda de pé. Contem o batistério octogonal do século VI, algumas ruínas, pedaços de rochas, e — o melhor a meu ver — lindos afrescos de quase um milênio atrás.
Naquele tempo, não havia pia batismal como há hoje e aguinha na cabeça: era batismo por imersão. A pessoa adentrava uma espécie de piscina que fazia as vezes do rio Jordão, onde Jesus entrou e foi batizado.




Eu finalizaria esta minha visita a Poitiers pela Igreja de Santa Radegonda, praticamente desconhecida no Brasil, mas bem-quista na França. Foi ela — não Maria — que você viu na foto de capa, nesta igreja.
Já era fim de tarde, e na igreja toda escura não havia ninguém exceto alguém que n’algum lugar que eu não via fazendo algum ruído. Parecia alguém trabalhando.
Ao que entrei na igreja vazia, contemplei sobretudo sua parte mais antiga, um espaço preservado românico no altar, com suas arcadas redondas e colunas em cor.








Naquele escuro, eu dali a pouco avistei lá ao longe, na entrada, uma velhinha com vestes de freira — ou assim me pareceu. Encaminhava-se à saída, o ruído parara, e eu de repente temi que pudesse me trancar na igreja. Virar a noite aqui dentro não estava nos meus planos. Eu não sabia que horas elas fecharia.
“Eu apavorei”, como dizem meus amigos que gostam de comer o pronome reflexivo, mas não houve problema. A velhinha não me trancou. Saí normalmente, passando o alto degrau da porta de Santa Radegonda, e tomei rumo. Vim pela batalha, e acabei conhecendo Poitiers.