Tours [lê-se igual Tour, o S é mudo] é das mais subestimadas cidades históricas da França. A maior cidade do Vale do Loire está a um pulo dos tantos castelos da Renascença e também abriga muitos monumentos ainda mais antigos. Não é à toa que seu centro histórico está tombado pela UNESCO como Patrimônio Mundial da Humanidade, ainda que poucos turistas estrangeiros deem as caras aqui.
Se você se interessa por coisas da Idade Média — inclusive do começo da Idade Média, de antes do período gótico — não lhe faltará deleite aos olhos nem significância ao coração. Ampla de referências tanto ao imperador carolíngio Carlos Magno (747-814) quanto a São Martinho de Tours (316-397), eu acho esta cidade um dos centro espirituais da França. Não no sentido estritamente religioso, mas de espírito nacional francês.
O douro adicional é que, vamos e venhamos, Tours me pareceu uma cidade super agradável onde passear — bem melhor organizada e mais arejada que Poitiers em comparação. Ruas bem dispostas, espaços abertos, e bastante verde em se tratando de Europa. Deu-me vontade de dar um beijo na prefeita ou no prefeito, que eu depois viria descobrir que é de um partido ambientalista (Europe Écologie Les Verts.)
Hoje, Tours vibra como uma cidade universitária (com mais de 30 mil estudantes), e isso se nota no seu dia-dia. Junto com toda a historicidade, há uma agradável contemporaneidade pulsante que a acompanha. Você verá. Veremos.





Da prefeitura à catedral: Voltas iniciais por Tours
Você desembarca na moderna estação ferroviária de Tours, 1h30 a sudoeste de Paris, e tem diante de si suas praças e jardins. O Jardin de la Préfecture está logo ali presente ao lado de um boulevard arboresco que parece até escuro demais. Lembrou-me em algo o Corredor da Vitória em Salvador, só que com uma calçada sob as árvores.
Você vira à esquerda e não demora a chegar à linda Prefeitura de Tours — das primeiras coisas a me impressionar na cidade. Sua fachada elaborada foi concluída em 1904, quando a França da Belle-Époque ainda vivia seus tempos de glória imperial.
Dali, tem-se a ampla Rua Nacional, um calçadão fechado a carros e acessível apenas a pedestres, ciclistas e bondes elétricos — coisas da França e de muito da Europa de agora. Eu por ali segui, rumo às partes mais antigas da cidade.
Adiante dali a menos de 1 Km, tem-se o rio Loire que aqui banha. Entre nós e ele, a cidade de Tours.


Essa rua data do pós-guerra, quando a cidade foi remodelada após os bombardeios alemães que destruíram muito de seu legado arquitetônico. Por sorte, salvaram-se — ou foram restauradas — partes importantes, como a sua catedral gótica medieval plena de gárgulas.
Se você descer esta rua toda, chega à Ponte Wilson sobre o rio Loire. Embora seja do século XVIII com seus arcos em pedra, ela há um século homenageia o presidente dos EUA Woodrow Wilson (1913-1921), pelo seu papel ao lado da França durante a Primeira Guerra Mundial.
Chegaremos a ela, mas vejamos primeiro a Catedral de São Gaciano (St. Gatien em francês), que foi o primeiro bispo aqui de Tours ainda no século IV. (Não confundir com o mais famoso São Caetano, que viveu na Itália do século XV.)
Essa edificação, como de costume feita por cima de outras mais antigas, foi começada em 1170 e concluída só em 1547. Com a demora, houve certo ecletismo na construção, com partes românicas e detalhes já renascentistas nas torres da estrutura predominantemente gótica.
Vejam abaixo o jumbo.

Adentremos.



A entrada na igreja é gratuita, como costuma ser o caso na França, mas se quiser pode pagar € 3,50 para visitar a área de conservação do antigo claustro anexo à catedral. Ele o chamam Cloître de la Psalette, que em francês significa uma espécie de colégio de música sacra.
Tudo estava tranquilo quando eu cheguei, quase não havia mais ninguém visitando. (Não deixo de me surpreender sobre como os turistas na Europa vão todos sempre em massa para os mesmos lugares e deixam outros vazios.)
O céu de chumbo ajudava a dar a atmosfera já formada pelas gárgulas e as paredes medievais manchadas pelo tempo.
Não havia viv’alma, só almas penadas.






A viv’alma que havia ali plantada era a moça da bilheteria para entrar no claustro, figura espirituosa. À compra do bilhete, ela havia perguntado se eu tinha moedas, e eu dito que não, só para depois descobrir que tinha, sim — daquelas que se escondem no fundo do bolso.
— “Você mentiu, então?“, indagou ela no característico jeito irônico dos franceses.
— “Não, não. Eu supus rápido demais“, tergiversei. “Mentir na igreja é complicado.”
— “Não, não, aqui é o Estado, então não tem problema não.”
Concluímos, ela apontando que estes sítios históricos ficam já fora da alçada da Igreja e sob cuidados públicos. Dali segui, rumo à Ponte Wilson e a ver um museu curioso de artesanias.



Rumo ao centro histórico de Tours
A Ponte Wilson é bela, e a vista para o pequeno Castelo de Tours nos transporta a outras eras, mas ninguém cometa o mesmo equívoco que eu achando que há algum promenade pitoresco à margem do rio Loire aqui. Os entornos ali são bastante ordinários. É no centrinho histórico de Tours, a algumas quadras, que fica toda a vida daqui. Eu recomendo concentrar lá o seu tempo de visita.
No caminho, antes de chegar às miríades de casas de enxaimel, às mesas plenas de estudantes e jovens, à Basílica de São Martinho de Tours ou à medieval Torre de Carlos Magno — tudo lá naquele miolo do centro — eu passei no Musée du Compagnonnage, um espaço dedicado às artes manuais (especialmente a carpintaria) na antiga abadia de São Juliano de Tours.




Há também na cidade um Museu de Belas Artes, que acabei não visitando. Eu rumei em vez disso ao animado centrinho histórico da cidade, onde parecia que toda a população de turistas e universitários estava concentrada.
Tours foi pesadamente bombardeada pelos alemães em 1940, mas o que restou — e foi restaurado — segue lindo. Não é muito grande, mas o suficiente para você passar um par de horas circulando, e quem sabe se sentar para beber ou comer algo. Há desde cerveja a restaurante tailandês estilo expresso (Pitaya, se for do seu interesse).

Tours é uma cidade cuja importância histórica remonta a muito tempo. Ela, inclusive, talvez tenha tido maior destaque na História antiga e medieval francesa que na modernidade — o que talvez explique a ausência de tantos estrangeiros aqui, que sempre ou quase sempre vêm à França atrás de palácios ou de lavanda.
Tours não tem lavanda — exceto as que você encontra nas onipresentes L’Occitane en Provence e outras lojas — e data de um tempo mais violento, de antes dos palácios.
Eu já comentei em detalhes como, nesta região, entre Tours e Poitiers, os francos de Carlos Martel detiveram o avanço dos mouros na Europa em 732. Naquele primeiro milênio, Tours era dos mais importantes centros da França e lugar de peregrinação religiosa. A Abadia de São Martinho de Tours, ele que havia sido bispo daqui no século IV e depois canonizado, era a maior de toda a Europa Ocidental.
Hoje, aquela zona histórica da cidade (apelidada Vieux-Tours) serve de lugar a muitos bares e restaurantes no térreo das edificações antigas, dando energia mas sem lhes tirar da beleza.




A Basílica de São Martinho de Tours e a Torre de Carlos Magno
Ninguém havia me preparado para isto. Ou talvez a responsabilidade seja minha mesmo. Eu nunca tinha ouvido falar dessa Torre de Carlos Magno, erigida durante o medievo e consagrada no ano 1014 sobre onde estaria enterrada a sua quarta esposa.
Carlos Magno (747-814) foi quem organizou seu império carolíngio e estabeleceu o chamado Sacro-Império Romano Germânico no ano 800, após seu avô Carlos Martel — e outros — terem expandido o poder dos francos na Europa.
Ele fazia ainda o estilo do rei que comanda e participa de batalhas, então estava sempre itinerante pelo reino. À época, França e Alemanha não eram entidades distintas, já que os francos eram um povo “bárbaro” de origem germânica. O que você tinha era um amalgamado de povos a norte dos Alpes sob a égide agora desse imperador.
Aqui, no mesmo ano 800 em que ele seria coroado imperador no dia de Natal em Roma pelo papa, em junho tinha morrido em Tours a sua quarta e última esposa, que ficou conhecida como Luitgarde da Alemanha. Para você ver como a vida dos grandes personagens da História também tem altos e baixos. Em honra a ela, esta alta torre medieval — enorme para a época.

Esta Torre de Carlos Magno veio a fazer parte da Basílica de São Martinho de Tours, formando à época uma das maiores edificações de toda a cristandade medieval.
Essa basílica medieval foi destruída não pelos alemães, mas pelos revolucionários franceses no fim do século XVIII. No século XIX, num período de surgimento da identidade nacional e resgate dos seus símbolos, fez-se então a basílica neo-bizantina que você aqui hoje encontra. Eu digo que é das igrejas mais belas que já visitei.
São Martinho (316-397), ou Saint Martin, é das figuras mais emblemáticas da hagiografia francesa. Nascido onde hoje fica a cidade de Szombathély na Hungria, ele migrou para cá e se tornou o terceiro bispo aqui de Tours. Foi das grandes figuras responsáveis pelo cristianismo ter perdurado na Gália mesmo após a desintegração do Império Romano do Ocidente.
Na arte, ele é sobretudo retratado na ocasião em que teria dado seu manto a um mendigo.





Se você descer, há uma quieta cripta no subterrâneo onde se encontram os restos mortais de São Martinho. Não havia nem de longe tanta gente quanto há, por exemplo, em Assis ou na Basílica de Santo Antônio em Pádua — talvez por São Martinho ser venerado quase que exclusivamente pelos franceses.


Tours se revelou um destino que teria até merecido pernoite (quiçá duas noites para aproveitar com mais calma), mas eu tinha um trem de volta a Orleans.
Passadas algumas semanas neste pedaço da França visitando o Vale do Loire e seus lugares históricos (o Castelo de Amboise com o túmulo de Da Vinci, o castelo renascentista de Blois e outros), era hora de eu zarpar a outras bandas. Reencontro vocês lá.
