A Tchéquia — ou República Tcheca, como os nativos também chamam a gosto — é daqueles países que conservam mais segredos do que supõe a nossa vã filosofia.
Telč [lê-se Téltch, esse č tendo som de tch] é um deles. Pense numa cidadezinha renascentista que pouco mudou desde o século XVI. Um lugarejo de 5 mil habitantes, com um castelo medieval e plano urbanístico original dos idos de 1550.
Foi o lugar que resolvi visitar logo após este último Natal, numa viagem curta de ônibus desde České Budějovice, outra cidade bela e da qual lhes falarei em breve.
Telč se revelou um pitoresco encanto e me disse o porquê de ter sido tombada pela UNESCO na Tchéquia como um Patrimônio Mundial da Humanidade.


Telč: Surge uma cidade renascentista
Nesta tônica de viagem no tempo, viajemos de volta aos meados do século XIV. Idade Média. Esta região do que hoje é o miolo da República Tcheca era densa de florestas, aquelas florestas que tanto inspiraram os contos populares centro-europeus — aqueles compilados pelos Irmãos Grimm e que terminaram virando produções da Disney no século XX. Sempre há uma floresta escura ali no meio, seja para o lobo de Chapeuzinho Vermelho ou para o lenhador da Branca de Neve.
Na vida real, o século XIV traz um fenômeno novo aqui: povoamentos planejados estrategicamente para assegurar território. (Foi uma espécie de grilagem de terras avant la lettre.) A floresta começou paulatinamente a dar lugar aos campos, o desmatamento sendo desde muito uma lamentável consequência de certas ações humanas.
Telč surge assim, produto do seu tempo. Estávamos e estamos na região da Morávia — onde viveu Mendel com seus experimentos de ervilhas no século XIX — e bem na fronteira com a Boêmia, onde Praga fica. Hoje, as duas regiões formam a Tchéquia, mas naquele tempo as relações eram menos amistosas. Os moravianos destas bandas queriam para si o controle dos recursos do lugar.
A obra, sejam quais tenham sido suas motivações, foi bela. Há notícias de um castelo medieval aqui desde 1335, o qual duzentos anos depois passaria por uma reforma renascentista (para chegar ao que você encontra hoje). As casas de madeira numa extensa praça central triangular também adaptariam-se aos tempos do Renascimento com cores e fachadas enfeitadas.




Chegando a Telč
A quem supuser que estamos “no meio do nada”, é um pouco isso mesmo, só que no seio da Europa.
Para dizer a verdade, eu nunca nem havia ouvido falar em Telč, ainda que eu venha à República Tcheca com certa frequência desde 2008. Chegar até aqui não é muito prático, mas tampouco é tarefa hercúlea.
É melhor tomar ônibus que trem. De Brno ou České Budějovice, são 2h de viagem, o que permite que você faça um bom bate-e-volta. (Desde Praga, você precisaria trocar em outros lugares, e a viagem fica longa demais para vir e voltar no mesmo dia. Você pode dormir em Telč, mas não sei se é necessário tanto. Melhor combiná-la com visita a outras cidades do país.)
Eu vim de České Budějovice com a United Buses, empresa local. O Google Mapas lhe informa os horários de partida, e no site oficial da empresa (com a ajuda da tradução no navegador a menos que saiba tcheco) você compra facilmente as passagens com o cartão de crédito. Mais barato que viajar no Brasil.
Naquele 26 de dezembro, que é feriado aqui na República Tcheca como em muito da Europa, quase não havia viv’alma na rua. Os campos à beira da estrada de mão dupla estavam deveras vazios no que foi um dia semi-nublado, e assim também estava o ônibus, só com uns gatos pingados e um velho motorista ranzinza que ficava pistola quando as pessoas se levantavam e ficavam ali já perto dele antes de o ônibus parar.


Por dentro de uma obra renascentista
Quem pensa em Renascimento geralmente traz à mente pinturas, esculturas, não cidades inteiras. Entretanto, aqueles idos de 1450-1600 não foram somente um período em que artistas resolveram pintar ou esculpir diferente, foi uma época em que toda a concepção europeia do que é próprio e bom mudou. O comércio direto com o Oriente e a descoberta das Américas havia se juntado ao resgate da Antiguidade clássica para revolucionar o pensamento europeu.
Assim, surgiu também uma nova forma de imaginar as cidades. Surgiu a ideia de “cidade perfeita” renascentista, com ordem e planejamento — não mais as cidades pútridas e desordenadas do medievo. Ano passado eu lhes falei de cidades renascentistas feitas assim na Polônia, como a bela Zamosc, e Telč é um exemplo da mesma época (século XIV) na Tchéquia.
A ideia era que houvesse uma ampla praça onde as moradas seguiam um certo padrão e eram ligadas por um eixo de arcadas que faziam uma espécie de calçada coberta — coisa típica que você vê em cidades italianas como Bolonha também.
Curiosamente, aqui em Telč não se concebeu um quadrado nem retângulo, mas um triângulo para o formato da praça.





Hoje, há quase sempre lojas ou restaurantes nestes térreos, e eu não acredito que ninguém mais viva aí.
As pessoas em Telč me deram sinais de viver nos arredores deste centro histórico, fora de onde eram as muralhas e suas lagoas.
No que foi princípio dócil de inverno com seus 5-10 graus em vez das versões negativas destes números, eu caminhei tranquilo os 20 minutos que separam a estação rodoviária-ferroviária deste centro histórico, entre as primeiras moradoras que apareciam a passear com seus cães.
No que me aproximava da praça, dei graças por avistar um café aberto — sinal de que haveria almoço, e eu não precisaria recorrer aos lanches trazidos por segurança na mochila. (Eu sou do tipo que prefere comer sentado num lugar legal do que fazer piquenique com coisa trazida de casa, o que ressoa bem no Brasil mas me põe na contracorrente com as pessoas da minha idade aqui na Europa.)

Embora as muralhas não existam mais (afora o castelo), Telč segue circundada por canais e lagoas — e você percebe onde é que as muralhas ficavam.
Ela chegou a ser invadida numa guerra civil da Reforma Protestante no século XV quando surgiu o movimento Hussita aqui nestas terras. Foi precisamente com a destruição que a cidade sofreu nesses idos que ela veio a ser redesenhada e melhorada em padrões renascentistas no século XVI.
Daí também existir também um colégio jesuíta aqui criado com a Contrarreforma da Igreja Católica e hoje absorvido como campus estendido de uma das universidades tchecas.



O Castelo de Telč
Passear pela praça renascentista de Telč foi um tanto como visitar um museu a céu aberto. Você fica ali passeando de frente às casinhas coloridas como se elas não fossem de verdade. Mais tarde, no século XVIII, puseram aqui uma coluna mariana para celebrar a superação de uma peste epidêmica — mas, no mais, a área está conservada como concebida no século XVI e, como nota a UNESCO, preserva a sua autenticidade após “escapar à mania de excesso de restauração do século XIX“.
Já o castelo, mais adiante, me traria um ar bem mais medieval, ainda que a Renascença tenha mesmo lhe mudado a aparência para algo menos rústico e mais elegante.





Com a pandemia, aproveitaram para restaurar o interior deste castelo, então ele não estava aberto à visitação hoje. (Via de regra, de qualquer forma, muitos castelos na Tchéquia só abrem de abril a outubro. Bom ter isso em mente.)
Fiquei então eu ali passeando pelos arredores, um chão meio enlameado pelas recentes chuvas de outono, e vendo a beleza da quietude as águas quase congeladas nas lagoas do entorno.

Pausei para almoçar no Amigo, restaurante recomendado na cidade com coisas de inspiração mexicana e único lugar da vida onde encontrei pedaços de laranja cortada postos para cheirar no mictório. Dali, reencontrei-me com algumas das minhas casas favoritas ao que outros turistas dorminhocos começavam a aparecer.
O sol também aos poucos aparecia, tornando a cidade mais encantadora.

Vi belas fotos da cidade florida e animada no verão. Quem sabe um dia eu volte.
Por ora, eu não me demoraria. A oferta de ônibus de retorno não me era tão grande assim. Era preciso eu voltar a České Budějovice, a cidade de nascimento da Budweiser, a qual eu lhes mostrarei a seguir.
Deixo-lhes com provavelmente a minha casa favorita em Telč.
