České Budějovice tem um nome tão complicado de ler — lê-se Tché-ské Bud-ei-o-ví-tsé, sem sílaba tônica porque não há isso em tcheco — que os vizinhos alemães a chamaram Budweis, e daqui saiu então a cerveja Budweiser.
Mentira? Verdade! Exceto pela brincadeira de ser essa a razão do nome alemão. Tchecos e germânicos convivem desde os albores da Idade Média aqui nesta Europa Central. Hoje estão cada qual com os seus países, mas antes eles viviam misturados, e o grosso dos lugares tinha um nome eslavo e outro alemão. (Os dois nomes às vezes se assemelham, mas nem sempre. Ex. Bratislava, a capital da Eslováquia, foi — e às vezes ainda é — chamada de Pressburg em alemão.)
České Budějovice é uma delícia de se ler e melhor ainda de se visitar. Estamos no sul da Boêmia, uma das duas principais regiões que compõem a atual República Tcheca (a outra sendo a Morávia).
A cidade fica quase na fronteira com a Áustria, numa área com o ar típico da Europa Central e todos os seus jeitosos segredos que os turistas de fora ainda tem a descobrir — quando se atreverem a conhecer a Tchéquia para além de Praga. Venhamos.





České Budějovice em pleno Natal
Boêmia, aqui me tens de regresso
Era Natal, como as fotos mostram. Não apenas a época, mas precisamente o dia de Natal. Desembarquei na cidade no que era um dia curto (o mais curto do ano no hemisfério norte), com o sol ralo de inverno, frio de seus 5ºC e ruas deveras vazias. As cidades centro-europeias tornam-se cidades quase fantasmas dias 25 e 26 de dezembro, o qual também é feriado aqui como o “segundo dia de Natal”. (A alcunha de Boxing Day usada nos países anglófonos refere-se a uma caixa de doações tradicionalmente posta nas igrejas neste dia para caridade cristã — qualquer leitura do termo como suposto dia de trocar presente na loja é interpretação maluca dos nossos tempos de Natal consumista.)
Mesmo quieta, České Budějovice já passava uma atmosfera mais autêntica da República Tcheca que sua capital. É que, com a explosão do turismo, Praga virou um certo circo internacional. Eu continuo a recomendar muito a visita à cidade, porque ela é linda e histórica, mas o que você menos vê no centro da cidade é tcheco. Encontrará essencialmente turistas oriundos do mundo todo e funcionários ucranianos — que olhos e ouvidos destreinados tomarão por tchecos — atendendo nos hotéis, lojas etc.
O interior proporciona uma experiência bastante mais tcheca, se é o que você procura. Aquela coisa beirando o “ninguém fala inglês”.
É que a Tchéquia ainda sofre daquele hiperfoco turístico nas capitais, que não sei se é natural ou de onde vem, como se não existisse vida além dali. Ledo engano, pois o interior tcheco é pleno de cidadezinhas pitorescas que eu continuo a descobrir, como já mostrei em Telc, Olomouc, Česky Krumlov, Brno e Kutná Hora.
České Budějovice era um lugar por onde eu já havia passado, num verão longíquo mais de 10 anos atrás, mas que custei a reconhecer no inverno uma década depois.




Até o McDonald’s e outros muquifos de fast food estavam fechados neste 25 de dezembro. Por sorte, nem todos os lugares lá no miolo do centro estariam. Natal também se celebra, afinal, e aqui no antigo “leste europeu” eles — ao contrário dos alemães — perseveram com as feirinhas natalinas até a virada do ano.
O coração de České Budějovice é a Praça Ottokar II (Přemysl Otakar II em tcheco), o qual foi rei aqui da Boêmia entre 1253 e 1278. Foi nesse período que este então vilarejo medieval ganhou status de cidade (em 1265), daí a homenagem.
O nome, caso alguém esteja curioso, surgiu como “vila de Budivoj”, um nome masculino eslavo. O “České” apareceu depois para distingui-la de outra cidade de nome igual que apareceu na Morávia por causa de algum outro Budivoj (viva a criatividade). Assim ficamos com as atuais České Budějovice e Moravské Budějovice, pois.
Seu surgimento se deu na Idade Média, mas é do Renascimento a cara que a cidade tem hoje, um tempo em que o tcheco Reino da Boêmia fazia parte do Sacro-Império Romano Germânico — a frouxa estrutura feudal governada por vezes de Praga, às vezes de Nurembergue, de Palermo, e por muito tempo a partir de Viena, o qual abrangia quase toda a Europa Central e que Voltaire famosamente satirizou dizendo que não era propriamente um império, muito menos romano, e nem um pouco sacro.



Surge a cerveja Budweiser – no século XIII
É em 1265, junto com os direitos de cidade, que entre eles České Budějovice recebe do rei Ottokar II a prerrogativa de fabricar a cerveja do reino. (Aí é curioso que os alemães todos aprendam desde pequenininhos e digam que inventaram a cerveja devido a uma regulamentação de 1516, três séculos depois.)
Os germânicos, todavia, seriam mais tarde a força dominante na Europa Central, então foi pelo nome em alemão — Budweiser — que o mundo acabou por chamar essa cerveja produzida aqui. Só não a confunda com a Budweiser estadunidense que se encontra pelas Américas.
Há uma briga mundial pela marca registrada “Budweiser”. Em muitos países, vende com esse nome uma cerveja dos Estados Unidos criada em 1876 no estado do Missouri. Ela nada tem a ver com a cervejaria original aqui de České Budějovice, exceto que os dois alemães imigrantes nos EUA que criaram aquela cerveja lá “se inspiraram” nesta cidade após uma viagem pela atual Tchéquia.
A cerveja tcheca fabricada aqui em České Budějovice tem hoje o nome de Budvar Brewery (ou Budějovický Budvar), então o nome Budvar é o indicativo. Na maior parte da Europa, é ela que detém o direito de usar o nome Budweiser.

Até eu que não sou grande apreciador de cerveja gosto dessa cerveja tcheca.
Deixarei as descrições do gosto para os aficcionados, mas ela definitivamente é uma cerveja bem mais encorpada que a maioria das brasileiras — especialmente sua variedade dark lager, muito consumida aqui durante o inverno.

Eu, afinal, achei algo para comer no dia de Natal na cidade.
Confesso: não sou o maior fã da culinária tcheca, com sua quase onipresença de batata, seus excessos de manteiga e gordura animal, e versões empanadas de quase tudo — desde peixe até queijo —, mas em Roma a gente tenta comer como os romanos.
Ali era um peixe empanado no prato acompanhado de salada de maionese, pois a tradição tcheca é comer carpa e não peru no Natal.


Visitando České Budějovice
Do Renascimento ao barroco
Permitam-me uma pequena volta artística para mostrar o que é que a Boêmia tem. Um dos grandes méritos turísticos da República Tcheca é que ela não foi bombardeada durante as duas guerras mundiais, então ainda hoje você aqui encontra centros históricos originais com legado gótico, renascentista e barroco. No caso de České Budějovice, sobretudo dos dois últimos.
Os séculos XIII ao XVIII foram anos prósperos nestas terras. Praga tornou-se capital do sacro-império no século XIV (com o rei Carlos de que você tanto ouve falar lá naquela cidade, e que dá nome à famosa ponte), České Budějovice virou a cervejaria imperial (o que significava que outras cidades ficaram proibidas de fabricar), e o dinheiro fluiu por aqui.
České Budějovice ganhou então a praça renascentista que você encontra aqui hoje: o estilo de várias casas coloridas conjugadas com um espaço aberto e arcadas formando calçadas cobertas.




Esse prédio da prefeitura em si só já é uma obra de arte, um edifício barroco azul construído entre 1727-1730 e de autoria do arquiteto austríaco-italiano Antonio Martinelli.
Nesse período, desde 1648, a Boêmia havia passado ao domínio dos austríacos em Viena, então o estilo barroco tem muitos paralelos com o de lá, e os artistas às vezes eram os mesmos.
A Guerra dos Trinta Anos (1618-1648) entre católicos e protestantes deixou muito da Tchéquia atual arruinada, e esses monumentos fizeram parte de um esforço de revitalização da cidade. Foi quando se fez também a Fonte de Sansão hoje no centro da praça, com a figura bíblica do homem forte abrindo a boca de um leão de onde sai o jorro d’água.


Eu bem que já tentei patinar no gelo, mas sou um desastre completo em esportes de inverno. Tudo o que consegui foi não cair (fundamental), e opto desde então por manter esse histórico.
Assisti portanto aos jovens e crianças tchecas dando suas voltas e piruetas ao que eu tomava um quentão (vinho quente com especiarias) das barraquinhas que permaneceram abertas após o Natal. Aqui, como também na Polônia, as cidades ficam desertas, mas o centro natalino preserva uma vida pulsante onde as pessoas se concentram. É como o aconchego de uma lareira no frio, mas num sentido social e em dimensão de cidade.
Algumas igrejas estavam fechadas, mas eu as vi por fora assim mesmo. Uma delas é a igreja mais antiga da cidade, legado gótico portanto, fundada em 1265 junto com České Budějovice: a Igreja do Sacrifício da Virgem Maria (Kostel Obětování Panny Marie). Fica adjacente a um mosteiro dominicano também medieval.





Essa torre não é propriamente medieval, mas renascentista. (Não se deixou de fazer torres de pedra quando acabou a Idade Média.) Ela data do século XVI, e fica conjugada à catedral da cidade, dedicada a São Nicolau.

Eu não encontrei nenhuma explicação para a alcunha da torre, mas suponho que Sea pelo negro das suas pedras.
Ela foi feita de 1549 a 1577, sendo que a igreja original data do século XIV. Entretanto, este visual que você encontra hoje vem do século XVII, quando ela ganhou uma aparência barroca.





Eu cogitei uma visita guiada à cervejaria da Budweiser original, mas ela estava fechada nestes dias de Natal. Fica para uma outra vez, quando outro homem voltar aqui à Boêmia.
Você, se vier, pode ver todas as informações no site oficial. Há tours quase diariamente em inglês sem precisar fazer reserva, e visita com guias que falam espanhol se você agendar pelo site.
Eu seguiria portanto meu caminho a outras paradas da Tchéquia, porque aqui aparentemente há sempre mais por conhecer.



