(Este será um post longo.)
Estima-se que até 1 milhão de escravos possam ter zarpado aqui destas praias com direção às Américas, fazendo deste o segundo maior porto negreiro da História, atrás apenas de Luanda, Angola. É possível que centenas de milhares deles tenham ido ao Brasil, sobretudo aos portos de Recife e Salvador, embora as cifras variem.
Há portanto uma macabra ponte histórica que nos liga a esta cidade no Benim, que os portugueses chamaram de Ajudá (ou Ouidah) nesta antiga Costa dos Escravos — ou talvez eu devesse dizer “houve”, já que os navios pararam de singrar os mares. Nós nos desconectamos; e, na desconexão, esquecemos aquilo que nos une.
Não me refiro apenas às memórias do criminoso tráfico negreiro — cujos detalhes aqui você fica conhecendo para além do que aprendemos no Brasil. Refiro-me às ligações culturais e, para muitos, também genética. Vir ao Benim deveria ser como é ir a Portugal ou à Itália para tantos brasileiros. É que nossas ligações com a África ainda são negligenciadas, as físicas (sequer há voo direto daqui para o Brasil!) como as mentais (muitos nem sabem que o Benim existe ou como ele é).
Bem-vindos a Ajudá, que no predominante idioma fon (Huedah, que soa como Rhuedá) quer dizer “a casa vizinha”, porque o rei morava a 7 Km daqui e vinha ficar cá. Os portugueses apareceram em 1580, e não se sabe desde quando adaptaram o nome para “Ajudá”. Os franceses, muito tempo depois tomando estas terras como colônia, chamaram-na Ouidah [Uidá]. Já o então Reino de Daomé não existe mais — mas não lamente isso. Não imagine um nobre reino de grandes guerreiros (como diria o Mestre Yoda, guerra não faz de ninguém grande), imagine um ente colaboracionista que fez seu poder vendendo o povo como escravos aos europeus.
Vamos dar um mergulho neste lugar, senhoras e senhores. Ajudá, hoje, está procurando se reinventar como destino turístico “de memória”, com mil coisas sobre a escravatura e mais algumas sobre a cultura e religião local, o vodun (que deu nome ao vodu das Américas). Desnecessário dizer que as relações com o Brasil não são poucas, mas sabia você que há até uma Casa do Brasil aqui, como há uma Casa do Benim na Bahia? Coisa da descoberta. Precisamos redescobrir a África.


Ajudá na História
Vamos a um breve pano de fundo, apenas para contextualizar.
Quando os portugueses — primeiros europeus a singrar estes mares tropicais — começam a aparecer por esta costa nos idos dos séculos XV e XIV, encontram aqui potentados com chefes a quem chamaram de “reis” (uma palavra europeia, afinal). Esta África Ocidental já tinha tido grandes impérios, como o do Mali e de Songhai na Idade Média, mas estes já haviam decaído após seu zênite, e ademais ficavam no interior, tendo enriquecido em trocas comerciais com os árabes através do Saara. O oceano, como para Portugal, era àquele tempo uma parede, um fim de rota, não um mar de possibilidades.
Portugal portanto encontrou tribos e chefes relativamente fracos nestas costas. Os problemas surgiam apenas quando se atreviam a navegar os rios adentro, encontrando daí hostilidades e — sobretudo — febres tropicais que os acometiam à morte. Ficaram, assim, sobretudo à costa com suas feitorias. Traziam aos líderes africanos ouro, panos finos e outras mercadorias em troca de gente.
Somente nos idos de 1580 é que se consolida um Reino de Ajudá, centrado aqui perto, traficando com os portugueses. Ainda assim, o apogeu do tráfico negreiro aqui se daria mais tarde, quando nos idos do século XVIII ele é conquistado pelo Reino de Daomé, centrado Benim adentro. Este, sim, ficou rico traficando cativos de tribos vizinhas aos europeus (ainda que jamais tenha sido “rico” se comparado aos reinos europeus da época). Daomé surge nos idos de 1620, conquista Ajudá em 1727, e perdura até 1904.

Vamos agora à concretude da visita, para não ficar só na coisa dos livros de História. Sobre Daomé eu lhes falarei mais nas próximas postagens, sobretudo quando chegar mais perto do que era o centro de poder deles, no interior.
Organizando uma vinda de Cotonu a Ajudá
Cotonu é a maior cidade do Benim, sobre a qual lhes falei no post anterior (lá eu também dei a introdução geral ao Benim, tratei de visto, etc.). Ela bem serve de base a um bate-e-volta até aqui, Ajudá estando a 40 Km e coisa de 45-60 min de pista no tráfego. Se você estiver vindo de carro de Lomé (no vizinho Togo) a Cotonu, pode bem inserir um bordejo em Ajudá no caminho, pois você necessariamente passará pela entrada dela — mas eu queria visitar com mais tempo.
🛏 Não é necessário dormir em Ajudá, nem eu vi tanta infraestrutura assim. Há lugares interessantes, mas não é como as cidadezinhas pitorescas do interior da América Latina. Inclusive, os pontos de interesse são espalhados, e vale a pena estar com um motorista que o leve de lá para cá. O ideal é vir logo após o café da manhã, almoçar aqui, e retornar a Cotonu no meio da tarde. Você terá visto tudo.
🚗 Eu consegui o motorista por 20.000 francos, o equivalentes a 30 euros, mas isso vai do seu poder de barganha. Qualquer acomodação conhece pelo menos um motorista, e estas coisas aqui na África são todas na base da informalidade. Não espere que haja agências realizando passeios; a coisa é mais, como às vezes no Brasil, aquela coisa de “eu tenho o número de um motorista”.
💵 Uma observação prática aos navegantes é que Ajudá tem um misto de atrações gratuitas e lugares onde a entrada é paga. Os matutos da cidade costumam — na informalidade — oferecer a todos os turistas um “pacote” por outros 20.000 francos [30 euros] com o serviço de um guia (ou “guia”) que entra no seu carro lhe explicando as coisas e, supostamente, incluindo as entradas todas (que ele paga do próprio bolso ou consegue isenção com um tapinha nas costas do cumpáde).
Vou deixar claro que eu não acho que compense, pois nem tudo precisa de guia, o “guia” às vezes não passa de um matuto de rua dizendo generalidades, e muito lugar tem entrada grátis ou corre o risco de estar “fora do pacote”. Onde você quiser entrar e precisar de pagar, pode sempre pagar individualmente. Foi o que fiz, e não me arrependi.

Rumando a Ajudá
Não demoraria a aparecer Cári, o motorista. Um sujeito meio zarolho, com a fala algo atrapalhada, mas cordial. Foi recomendação da pousada onde eu estava.
Era manhã em Cotonu, e o tempo é aquele mesmo da região costeira do Nordeste ou do Norte do Brasil — umidade forte e um certo calor. No início do dia, às 7:30 chegaram trazidas de moto as duas serventes do restaurante da pousada, aquele ritual conhecido e praticado amplamente também no Brasil. Trocam de roupa e põem o uniforme, uma camisa simples bege com o nome da pousada, suas calças compridas e chinelos.
Depois eu conversaria mais com Véronique e Odette, moças afáveis de seus menos de 30 anos, que tomavam fresco na varanda uma com a outra boa parte do dia, já que não havia grande movimento de hóspedes. Disseram-me que o movimento turístico era mais antes da pandemia, e que esperam que vá voltar. Era uma varanda agradável, com plantas, buzinas de carro ao longe, e passarinhos mais de perto.
Cári — sujeito de seus 40 e alguma coisa e naipe de taxista — apareceu por volta das 9h, e tomamos a estrada saindo de Cotonu para o que prometia ser um dia nublado. Em menos de 1h, estaríamos em Ajudá.



Primeira parada: As tradições religiosas locais
Antes de falar de escravidão, precisamos falar de cultura local. Eu diria que ela responde por metade da visita aqui, a outra metade sendo a parte histórica (invariavelmente vinculada ao fado dos escravizados).
A Floresta Sagrada de Kpassè
Minha primeira parada em Ajudá foi na chamada Floresta Sagrada, onde se fazem até hoje rituais do vodun (que quer dizer o “maravilhoso”, o encantado, o sobrenatural), a religião local de que lhes falei um pouco mais em Lomé, Togo. Há semelhanças claras com as religiões brasileiras de matriz africana, mas não é exatamente a mesma coisa.
O comum entre elas é uma certa espiritualidade mística com reverência à natureza, árvores sagradas, oferendas (às vezes com sacrifícios) aos espíritos, mas as entidades propriamente ditas variam bastante.
Aqui no Benim, os reis não morrem, viram purpurina. Digo, desaparecem, viram árvore.
Há grande diversidade de povos ainda hoje na África, e com isso tanto os cultos quanto os nomes das coisas mudam. Para dar uma dimensão, o Benim é um país de 11 milhões de pessoas, de extensão menor que o Ceará, e tem mais de 40 idiomas. O mais comum deles, o fon, não é falado que por mais de 25% da população. Daí quase todos (nas zonas urbanas) usarem o francês para se comunicar. Há, portanto, cultos e cultos.



Kpassè foi um rei que teria vivido nos idos do século XVI. Ninguém sabe dizer exatamente. Algo que você não demora a notar na África é a parca historiografia. Não que não haja História, como diziam os racistas do século XIX, mas que ela está pouco documentada. Muitas informações só existem nos arquivos da UNESCO. Se você perguntar, os guias chutam, nem sempre com precisão.
De toda maneira, estamos aqui para falar do mágico, pois a sacralidade desta floresta se dá sobretudo pela árvore onde o rei reencarnou. Aqui no Benim, os reis não morrem, viram purpurina. Digo, desaparecem, viram árvore, etc., mas não se admite que o rei morra. Quem dissesse publicamente o contrário, era decapitado.
Não faltam causos aqui de fulano que precisou informar que o rei morreu, mas não podia dizê-lo assim abertamente. Precisava dizer que o rei desapareceu ou que ficou encantado.

As árvores sagradas são assim decoradas com esses panos, e se você o vê manchado de amarelo, é pelos rituais ali feitos usando o nativo azeite de dendê. Eles fazem oferendas, às vezes com sacrifícios. Antigamente, havia inclusive sacrifícios humanos, mas não mais.
Esta floresta é uma mata pequena, que mais parece um lugar da zona rural que propriamente uma floresta impenetrável. Nós caminhamos por entre as árvores naquele chão tropical molhado (e algo enlameado), e entre elas, vimos algumas imagens de figuras simbólicas da religião daqui.
Quem usa o termo “orixá” são os iorubá na vizinha Nigéria. Os beninenses o reconhecem, mas — pelo menos quando se comunicam em inglês ou francês — usam o termo “divindades”. Inclusive, o fazem com bastante liberalismo, um tanto como se faz com o hinduísmo, sugerindo que ele tenha não sei quantos mil “deuses”. (Os hindus, por sua vez, têm diversas palavras distintas para distinguir os seres celestiais da sua crença.)





Abaixo, você vê um pequeno vídeo que fiz aqui nesta floresta com os seus sons. Coisas surpreendentes.
Na Floresta Sagrada, há morcegos por toda parte nas árvores a arrepiar o couro dos mais temerosos. Eu já imagino alguns disparando aquela coisa da moda de “está repreendido em nome de Jesus”. Coitados dos morcegos, parece aqui até que não fazem parte da Criação. E isso porque ainda não chegamos nas cobras.
O Templo das Cobras
É curioso, pois é justo em face à igreja na praça principal de Ajudá que fica o Templo das Pítons (Temples des Pythons), em referências a essas grandes serpentes reverenciadas no vodun. Antes que façam associações diabólicas, essa reverência tem origem no fato de as cobras aqui comerem os ratos que destroem a lavoura.

As cobras são mesmo sagradas, mas eu preciso dizer que esse templo é mais um pega-turista que qualquer outra coisa.
À frente, dois caras folgados, com ares de quem não tinha o que fazer, sentados estavam ao que eu passei, à espera de turistas brancos dispostos a pagar um ingresso para ver as cobras num poço — e depois mais tanto para tirar uma foto com elas no pescoço.
Eu sei que daria uma baita foto de Instagram, mas eu não me presto a encorajar animais selvagens em cativeiro. Eles podem ter as crenças deles, e eu também.

Hoje nos tempos da internet, esse templo das pítons é essencialmente um lugar turístico, com muito pouco de religioso (se é que algo ainda).

Eu entendo que eles precisem de renda, e esta é uma das formas que eles têm, mas há caminhos e descaminhos.
Se você quer aprender sobre as tradições religiosas locais sem exploração animal, vale visitar a Fundação Zinsou (Fondation Zinsou), uma galeria gratuita com trabalhos de fotografia e detalhes sobre a manifestação dos egungum, aqui chamados revenant em francês, de rituais em que baixa o espírito de alguém que já morreu. Em geral, são manifestações de dança em que há batuques e alguém fantasiado com o rosto coberto.
O espaço da Fundação Zinsou funciona todos os dias, exceto às segundas. É gratuito, e mais informações praticas você encontra no site oficial. Ele é simples, pequeno (você gasta no muito uma meia hora aqui), mas é dos lugares mais bonitos e legais que há para visitar em Ajudá.





Voltas pelo centro de Ajudá — e a Casa do Brasil
Ajudá, como lhes disse, não tem o ar jeitoso das cidades coloniais latino-americanas. Aqui, é como visitar um bairro ou distrito pobre do interior do Brasil. Ruas de chão, com calçamento apenas nas imediações da praça principal; residências pobres precisando de um reboco; e negras pessoas humildes a circular a pé ou de moto.
Este é um lugar que está se “turistificando”, todavia. Você vê obras por todo lugar. O governo quer fazer, por exemplo, uma esplanada turística de visitação sobre os escravos no trajeto que eles percorriam das praças onde eram vendidos até o mar.
Circulando aqui, me deparei com dois grupos de pessoas. Primeiro, a casta de guias e matutos que o indagam querendo acompanhá-lo num percurso convencional: floresta sagrada, ênfase na foto com as cobras para turista ficar ouriçado, terminando com as informações sobre a escravidão. (Daqui a uns 10-20 anos, isto aqui vai estar um clichêzão danado.)
O outro grupo são, eu diria, as pessoas normais, que lhe fazem menos caso. Foi justo o que eu achei mais autêntico e interessante.




As pessoas, por vezes, estão vestidas assim como nos lugares pobres do Brasil. Já outras vezes, vemos sujeitos usando as roupas tradicionais coloridas típicas aqui desta África Ocidental. Um que passou por mim parecia um integrante da mangueira, de verde e rosa com a careca negra a reluzir.
O Centro Cultural John Smith
Passei na Fundação Zinsou, que mostrei acima com as fotos dos egungum, e — em busca da Casa do Brasil — acabei entrando primeiro no Centro Cultural John Smith achando que um era o outro. (O aplicativo às vezes não ajuda, então nada como perguntar a alguém).
Não me perguntei quem foi ou é John Smith. É bem capaz de esse ser o nome mais comum que há na língua inglesa, e o próprio site da organização não se dá ao trabalho de especificar. Seja como for, trata-se de uma bela e tranquila casa ajardinada — dessas de classe média no interior do Brasil — transformada em centro de arte contemporânea local e de registros históricos sobre o período da escravidão.
Uns homens trabalhavam em obras à entrada, ao que eu entrei sem prestar contas. Circularia ali livre, vendo os pôsteres — e um ou outro ocasional calango que se imiscuía pelo jardim, quieto, até se mexer repentinamente diante da minha aproximação. O mais interesse a meu ver foram as figuras femininas de resistência. Só então eu me dignei a perguntar a alguém onde afinal eu estava, ao que me indicaram que a Casa do Brasil não era esta, mas aquela ao lado.



Achei também coisas interessantes sobre Anne Knight (1786-1862), uma senhora britânica que já em 1833 conseguiu 350.000 assinaturas para um boicote de damas inglesas ao consumo de açúcar, que elas sabiam provir de trabalho escravo nas colônias. Foi no bojo do movimento abolicionista inglês. O tráfico negreiro já havia sido proibido na Grã-Bretanha em 1807, mas nas colônias, só em 1838.
A Casa do Brasil — e como o Benim quase virou território brasileiro
Claro que nem todos nas Américas — ou alhures fora da África — eram contrários à escravidão dos negros. Esta casa do Brasil, por exemplo, surge de um negreiro mestiço nascido em Salvador, e que construiria uma das dinastias mais famosas aqui no Benim. Era ele o dono da atual Casa do Brasil: Francisco Félix de Souza (1754-1849).

Nascido na Bahia do século XVIII, dizem que ele era filho de um traficante negreiro português e de uma escrava. Pouco se sabe sobre sua vida no Brasil até ele zarpar para este lado de cá do império português, onde ganhou favores do rei de Daomé e trabalhou no Forte de São João Batista de Ajudá — ainda de pé.
Francisco Félix, segundo dizem, viria a ter mais de 80 filhos de 53 mulheres diferentes, e ganhou dinheiro envolvendo-se no comércio negreiro. Acabou sendo congraçado com o nobre título de chachá, uma espécie de padrinho, benfeitor e “pai” de Ajudá.
Apesar de tudo o que fez, a família curiosamente é bem-quista aqui — e parece dar aos beninenses um cálido sentimento de irmandade com o Brasil.
Foi ele quem, à Independência do Brasil (1822), sugeriu a Dom Pedro que tomasse posse — em nome do Rio de Janeiro e da Bahia, não mais de Portugal e Algarves — destas terras, ou ao menos do Forte de São João Batista de Ajudá, como parte do nascente Império do Brasil.
Eu não sei exatamente por que não deu certo, mas imagino que os portugueses não quiseram saber de perder seus domínios africanos para um “protetorado do Brasil” aqui. Em verdade, seu descendente Juliano de Souza em 1885 ajudaria os portugueses a firmar um documento estabelecendo um protetorado de Portugal aqui — exceto que ele não combinou com os franceses, que tinham presença na área (em Cotonu) e não aprovaram da ideia. À época, Portugal já era escanteado por franceses e ingleses nas suas pretensões.
Os portugueses reteriam soberania sobre o Forte de São João Batista até 1961. Mesmo depois que o Benim ficou independente da França (1960), Portugal quis reter — como reteria Angola e suas colônias africanas até 1975 —, mas não teve jeito. Eu daqui a pouco o mostro a vocês.
A Casa do Brasil hoje é museu. Dedica-se a mostrar peças e mapas antigos do que foi o comércio de escravos e de Ajudá no então Reino de Daomé. Lembra um pouco aqueles museus de antigamente, da primeira metade do século XX.
Eles não gostam que tire foto, mas não há nada bombástico, ainda que interessante seja. A entrada me custou 1500 francos (equivalente a pouco mais de 2 euros), e eles aqui na África têm o costume de entender visita a museu como alguém que vai lhe explicando peça por peça, sala a sala. Uma mulher de trajes coloridos o fez, a quem dei outros 1000 francos como gorjeta (eles sempre esperam).


O caminho da escravidão: o forte português, a árvore do esquecimento, e a porta de não-retorno
Eu estava prestes a, finalmente, olhar melhor os lugares marcantes no percurso que os escravos faziam. Vocês me permitem só almoçar primeiro? Pois também do pão vive o homem. Ou melhor, da mandioca. (Tivesse Jesus vindo num outro ambiente cultural, todos os versículos bíblicos sobre pão — ou o milagre da multiplicação dos pães — teriam sido sobre milho, ou aipim, ou arroz. Imagine você o milagre da multiplicação dos inhames.)
Eu recomendo almoçar no Amicale, o restaurante aonde eu fui. Serve bobagem fast food, tipo fritas ou xauarma (kebab ou o que se vende como “churrasco grego” no Brasil), mas também pratos típicos africanos.
Eu peguei um atchieké com peixe e aloko, que são bananas-da-terra fritas. Delícia! Peça o molho de pimenta se quiser. Nestes lugares que recebem muitos turistas, o de praxe é que a comida nunca tenha pimenta, mas você pode pedir — eles sempre têm a oferecer.


Esse forte chegou a ser considerado “a menor colônia do mundo” à altura de 1958, pois esta era a parte cabida a Portugal neste latifúndio.
Os europeus todos vinham e faziam a feira aqui na Costa dos Escravos — não eram só os portugueses. Também os ingleses, franceses, holandeses e dinamarqueses tiveram fortes aqui, mas esses não existem mais. Foram destruídos. Sobrou esse português, que estes abandonaram pondo fogo em tudo em 1961. Restou, segundo dizem, apenas o cofre vazio chamuscado.
O butim grande, claro, ficava com os europeus — basta olhar na História e na economia mundial hoje quem é rico e quem é pobre. Aqui, enriqueceu a pessoa do rei de Daomé e seus asseclas, que apanhavam cativos por todas as vizinhanças dos domínios para vender aos vorazes europeus. Em troca, alguns dos seus principais interesses eram o rum das Américas e o tabaco do Brasil.
A vendagem se dava naquela que é hoje conhecida como a Praça Chachá (Place Tchatcha) em homenagem a Francisco Félix de Souza.


Esta esculhambação acima eles estão querendo transformar num bulevar turístico pleno de lojas, museus etc. Há uma certa gentrificação em curso. A ver se incluirão as pessoas que aí vivem.
Quem quiser fazer o percurso — por curiosidade ou penitência, à là o Caminho de Santiago — até o mar, ele leva 45 minutos, mas já advirto que não há muita coisa no trajeto.
Este lugar era como ir além da Bahia mais um passo.
Aqui e ali, haverá referências à Árvore do Esquecimento (l’arbre d’oubli), uma ideia genial que o rei de Daomé teve (ou ao menos creditam a ele a implementação dessa política). Para reduzir o choro e o ranger de dentes, cada escravizado tinha de dar 7 (as mulheres) ou 9 (os homens) voltas na árvore para esquecer da família, da vida que estavam deixando para trás, parar de chorar, e se preparar ao avenir no desconhecido.
A árvore propriamente dita não existe mais (embora não duvide que guias digam “é esta aqui” para contentá-lo), mas no caminho há alguns lugares que alegam ser onde ela ficava.

Este lugar era como ir além da Bahia mais um passo. Assim como o norte de Minas prenuncia o Nordeste para quem vem do Sul, ou o Tocantins prenuncia o restante da Amazônia, é como se a Bahia prenunciasse o que há ainda mais aqui — de cultura africana pós influência europeia.
Acontece de ter um tanto de água separando o Benim da Bahia, mas culturalmente, é como se ela não existisse. Isto aqui tinha pouco a ver com a África do Discovery que eu havia conhecido noutras partes do continente, e tudo a ver com o Brasil.

Eu segui com Cári caminho abaixo de carro, desviando das obras aqui e ali. Ao final de tudo, estava o grande Oceano Atlântico numa larga praia árida e vazia.
Pisar naquela praia tem uma sensação. Você fica ali imaginar os centenas de milhares — quiçá milhões — de almas que partiram ao desconhecido, levados água adiante para tenebrosos meses das viagens que Castro Alves tão bem cantou em Navio Negreiro.
Senhor Deus dos desgraçados!
Dizei-me vós, Senhor Deus!
Se é loucura… se é verdade
Tanto horror perante os céus?!
Ó mar, por que não apagas
Co’a esponja de tuas vagas
De teu manto este borrão?…
Astros! noites! tempestades!
Rolai das imensidades!
Varrei os mares, tufão!Quem são estes desgraçados
Que não encontram em vós
Mais que o rir calmo da turba
Que excita a fúria do algoz?
Quem são? Se a estrela se cala,
Se a vaga à pressa resvala
Como um cúmplice fugaz,
Perante a noite confusa…
Dize-o tu, severa Musa,
Musa libérrima, audaz!…São os filhos do deserto,
Onde a terra esposa a luz.
Onde vive em campo aberto
A tribo dos homens nus…
São os guerreiros ousados
Que com os tigres mosqueados
Combatem na solidão.
Ontem simples, fortes, bravos.
Hoje míseros escravos,
Sem luz, sem ar, sem razão. . .Parte V de O Navio Negreiro (1870), do poeta baiano Castro Alves.
Abaixo, um curto vídeo que eu fiz na localidade.


Uma construtora chinesa trabalhava ali ao lado para edificar uma nova e melhorada versão da Porta do Não-Retorno — eram o único som afora o vento que se ouvia nesta praia.
Há dezenas de “portas de não-retorno” África afora — memoriais aos milhões de escravos que partiram sabendo que, em sua imensa maioria, jamais haveriam de retornar. Aqui, a ideia é que ela seja o ponto derradeiro da caminhada que se estende desde a Praça Chachá, onde os escravizados eram vendidos.
Um pequeno grupo de turistas negros dos Estados Unidos estavam ali pisando na fofa areia junto comigo, algumas mulheres a tirar foto. O calor era intenso, lembrando mesmo as praias do Nordeste brasileiro, ainda que aqui com uma tristeza parada no ar.


O Retorno
A nossa volta seria pela chamada Rota dos Pescadores (Route des Pêcheurs), uma estrada de terra que vai margeando a beira-mar até Cotonu. Demora mais tempo, mas é considerada mais bonita.
Cári, matuto até a alma e com aquele ar fresco-esperto que só os prestadores de serviços têm, entrou aí numa negociação de que para voltar pela Rota dos Pescadores o preço era mais alto. Nada há de específico aqui aos beninenses nem aos africanos — creio ser o ofício de guia ou de motorista que faz isso.
Vamos, Cári.
As visões me pareciam saídas de alguma música de Dorival Caymmi ou livro de Jorge Amado, daquela velha Bahia.


Como Deus não gosta de nada mal feito (diria minha avó), havia um lamaçal homérico no meio do caminho, onde Cári temeu que atolaríamos. Temeroso — um tanto como se tivesse visto um monstro do pântano — ele retrocedeu sem pestanejar, dizendo que teríamos de retornar para tomar a rodovia de de manhã. Sendo assim, voltamos também ao preço original.

Eram umas 15h, e às 16h estaríamos já de volta a Cotonu. À noite, Véronique havia me prometido fazer um djewô, que é como eles aqui chamam o djékumé do Togo, a massa vermelha ou pâte rouge — daí as pessoas usarem o francês para se entender. Jantei meu temperadíssimo pirão de milho com peixe à varanda da casa. Nem só de escravidão vive o Benim, afinal.
Caetano cantou que o samba é pai do prazer, mas filho da dor. Ele tem irmãos, ora pois. Estes daqui — da mesa — tem uma relação de compadrio com o prazer também, mas eu já não sei quem são seus pais. Não tenho certeza se for a dor quem pariu, mas fazem parte da mesma família transatlântica.
ihh ..Adorei Benin… Lindo,,, a cara da Bahia.
Lindas paragens…. belas árvores… lindo forte.. belo mar… parece o NE do Brasil, e o povo parece com alguns baianos
Que tristeza essas lembranças da escravidao… Triste passado que deixou tamanhas marcas…
Lindo esse poema de Castro Alves sobre essa tragédia … uma ignomínia.
A regiao é ate arrumadinha. Há umas lindas áreas. A natureza sobressai magnífica.
A casa do Brasil, a casa de Zizou, o Centro Cultural, as Igrejinhas, sao todos muito bonitinhos… um encanto e de belos tons…
As vistosas comilanças parecem saborosas…Adorei cibgecer o Ajudah
conhecer*