Zarpamos Leonce e eu de Porto-Novo no começo da tarde rumo a Adjarrá e o riacho negro. Ele era um homem preto e careca de seus 40 anos, vestido de roxo e azul do pescoço aos tornozelos no hábito comum das pessoas aqui do oeste da África, com suas calças compridas e mangas compridas num padrão só.
— “Leôncio era o nome do vilão de Escrava Isaura”, brinquei eu, sabendo que as pessoas aqui conheceram a novela brasileira. “Ele era bem perverso.”
— “Ah não, não”, reagiu meu guia sem perder o requebrado, “os Leôncios daqui são todos muito doces”, foi ele se assegurando.
Estávamos nós no acolhedor Centro Cultural Ouadadá — minha recomendação de hospedaria na capital do Benim, de que lhes falei no post anterior. Tendo vários dias aqui, este era mais um de passeio, e eu passeio que eu diria essencial a quem vem até Porto-Novo. A cidade em si não tem muito, você vê tudo numa tarde, então a pegada é aproveitar para fazer bate-e-volta, e Adjarrá é a principal delas.
Estamos falando de um vilarejo de onde se pode fazer um passeio leve de barco mata adentro. Trata-se de algo mais rural que selvagem, mas que lhe permite conhecer um pouco deste interior do Benim.



Indo a Adjarrá — e a chuva no meio do caminho
Adjarrá fica a 7 Km da capital Porto-Novo. Não há transporte coletivo aqui, então a melhor e talvez única forma viável de vir é organizando um passeio com guia através da sua acomodação — coisa que Ouadadá faz com facilidade e sem exploração de preço. Paguei 7.500 francos (o equivalente a uns 11 euros) para basicamente passar toda uma tarde, com tudo incluso.
A quem gosta, algo típico da região é carne de porco assada. Você vê vários estabelecimentos com a cara do porco na fachada, e aí Fernand — o engraçado motorista que trouxera desde Cotonu até Porto-Novo — ria dizendo que as pessoas aqui eram muçulmanas de fachada, mas que faziam macumba e comiam porco. “No fim de semana fica tudo cheio.“
Eu disse a Leonce que não comia carne, então podíamos pular essa parte. Deixo portanto a vossas mercês que queiram porventura saborear suínos à brasa quando vierem cá. Quem quer, geralmente faz este passeio pela manhã, terminando com o almoço. Eu optei pela tarde.
— “Você não vai levar água?”, indagou ele ao que nos encontramos à pousada para sair.
— “Não. Aquilo é para os europeus, que precisam de garrafa d’água para todo lugar aonde vão, feito bebês com a mamadeira”, vaticinei algo mordaz, talvez inconscientemente desconfortável com o hábito dos africanos de pré-julgar que todos os ocidentais não-negros pertencem a um mesmo costume social e têm os mesmos hábitos. “Você vai levar água?“, terminei eu já sabendo a resposta, como quem questiona por que eu precisaria se ele não precisava.
Leonce respondeu um très bien [muito bem] com um sorriso de quem estava gostando da coisa. Eu gostava sempre de lhes dizer que era brasileiro, não europeu, para ver se os sensibilizava um pouco mais às semelhanças Brasil-África. (E, realmente, acho preciosismo demais andar com garrafa de água para todo canto. Eu nunca fiz isso no Brasil, e não via motivo para fazê-lo aqui — não para um passeio de poucas horas.)

Gordinho, Leonce tinha trejeitos ligeiramente efeminados e falava com uma voz algo aveludada — mas tudo muito sutil. Aqui, como no mundo árabe, não parece haver a instituição do homossexual na sociedade. Se ele o for, fica no armário, e geralmente constitui família como os demais homens.
Eu vi um Jeep ou quase Jeep estacionado à porta da pousada, e me surpreendi que Leonce se aproximou em vez disso de uma moto. Iríamos de moto — o jipe era de outra pessoa. Pois bem.
Caímos nós no trânsito vespertino de Porto-Novo, as motos muitos a zumbir feito abelhas e a buzinar cá e lá naquilo que nuvens cinzentas se ajuntavam no céu, e eu começava a me arrepender um pouco de não ter vindo pela manhã — um arrependimento inútil e que eu logo trataria de deixar pra lá.
A chuva nos alcançou ainda antes de alcançarmos Adjarrá. Ao que já havíamos tomado alguns pingos na cara e nas roupas, Leonce estacionou a moto sob a copa de uma árvore pequena na lateral de uma pista ainda urbana, vendedores ali postos com as suas barracas. Como a árvore não se mostrou suficiente, entramos numa biboca que havia logo ali — um abrigo com ar quase rural, um retângulo de cômodo só, telha Eternit, paredes frágeis, chão de massa já sujo e rachado pelo tempo, uma senhora de pano na cabeça circundada por panelas, e homens vários que se assentavam ali para comer algo ou simplesmente esperar a chuva.
A senhora — que nem era tão idosa assim, devia ter pouco mais que a minha idade, mas já de um aspecto vivido — servia-lhes massa de milho tirada de uns panelões de metal acompanhada de carnes num caldo, o que eles comiam de mão encurvados em mesas baixas de madeira daquelas de refeitório. Todos eram homens, e conversavam uns com os outros.
Um ramo de palmeira encostado à parede parecia servir às vezes para varrer o chão. Os pingos de chuva começavam a entrar pela abertura sem porta, e as pessoas se afastavam mais para dentro para evitar se molhar. A mulher parecia meio em piloto automático, mexendo suas panelas sem se interromper muito pelo que acontecia. Um ou outro me olhava com breve curiosidade, mas sem nada dizer a mim; trocavam observações — sabe-se lá sobre quem ou sobre o que — com Leonce.
Até que a chuva diminuiu, e Leonce indagou se tentávamos a nossa sorte ou não. Voltamos à moto, e terminamos o trajeto sob uns chuviscos grossos que não incomodaram demais.


No Benim rural
Logo nós estaríamos fora da rodovia e numa estrada de terra, onde cabanas irregulares e casas espalhadas meio que desordenadamente faziam a paisagem. Debaixo do que eram oficinas de trabalho sob telhados de palha, homens agachados cortavam galhos de palmeira com serras e, em modo formiguinha, preparavam mobílias para vender. Faziam poltronas e sofás com galhos de ráfia, que é como eles chamam uma palmeira daqui.
Circulamos ali, a cabeça baixa para não bater no teto, e em seguida passamos cá e lá na vila rural para ver aquilo de que outros moradores se ocupavam.


As pessoas aqui em geral são taciturnas. Elas o saúdam — você dá bonsoir já à tarde aqui na África, ao contrário dos europeus, que via de regra só o fazem após o escurecer, e o dá a quase todo mundo com quem cruza, e eles respondem —, mas isso não significa que irão lhe dar conversa.
As pessoas no Brasil conversam muito mais, e são mais abertas. Eles aqui são algo reservados, um pouco como se eu tivesse aterrissado ali num OVNI vindo de Marte e eles não soubessem ao certo se eu mordo ou não. As crianças pequenas gritam yovô! [branco] para todo canto, suas vozinhas mimosas a ecoar com o encanto inocente das crianças dessa idade. Os pré-adolescentes já eram mais reticentes, e às vezes hesitavam mesmo em retornar o cumprimento — só olhavam atentos.
As mulheres pareciam mal terminar a adolescência e já se converterem naquele estilo de mães e donas de casa, por vezes dando de mamar ou com seus bebês a tira-colo. As pessoas parecem bem integradas, vivem em comunidade, mas a carestia material é visível — você fica a imaginar que aquilo seria um campo perfeito àquelas equipes de saúde coletiva ou universitários voluntários que vão a comunidades pobres fazer serviço.
As pessoas andam por vezes descalças, seus pés batidos e amassados pelo tempo. Cabras pequenas circulam entre eles, e galinhas entram e saem das casas à vontade. Não há saneamento grande, embora haja fontes de onde tiram água de poço que julgo ser potável.




Pilando gengibre
Acheguei-me numa espécie de palhoça onde mulheres se punham sentadas com tachos grandes sobre o fogo, onde mexiam gengibre pilado. Obtinham gengibre em grande quantidade do norte do Benim para pilá-lo aqui em Adjarrá e mexê-lo caramelizado com açúcar ou mel, a ser vendido posteriormente.
Deram-me o pilão a experimentar, ao que Leonce ao vídeo brincou dizendo que eu realmente não era europeu — pilava por demais bem. “É verdade que você não é europeu. Você é africano 100%“, diz ele aí abaixo. (De quebra, você ouve o francês com sotaque africano.)
Este abaixo é um cadinho mais extenso, e Leonce mostra como o gengibre é primeiro pilado e depois seco ao fogo, caramelizado com mel ou açúcar até ficar crocante. Elas depois o vendem em garrafas plásticas recicladas.
Comprei algumas pelo equivalente a €1,5 cada, coisa que a farmácia ou a loja de produtos naturais no shopping lhe venderá pelo décuplo do preço.




As pessoas não me davam muita abertura, talvez até pelo pouco domínio do francês e minha inabilidade em falar o gum, a língua local, mas volta e meia alguém mais saído — geralmente um coroa ou uma coroa — me olhava sorridente ou me dirigia a palavra. Uma senhora chegou toda alegre a me dizer algo na língua local sabendo que eu não entenderia, e ficou me olhando achando graça.
Um rapaz com celular próprio quis tirar uma foto comigo, e eu disse que queria uma também no meu. Eles aqui, como na Índia, tiram foto feito as pessoas no começo do século XX, como meus avós tiravam, aquela coisa 3×4 de posar sério e imóvel para a foto.

As guloseimas
Ao que localizei Leonce, ele estava de prosa com um senhor mais adiante que comia aipim cozido com bolinhos de feijão fritos no dendê. Este comentou comigo do que se tratava, e parecia animado com a minha presença. Leonce comprou todo um embrulho daquelas guloseimas locais, quentinhas e recém-preparadas, para levarmos no caminho.
O aipim cozido era igual à macaxeira que se come no Nordeste do Brasil (e que é, saiba-se, originária da nossa América do Sul, não da África), enquanto que o bolinho de feijão com dendê (estes, sim, da África) deixavam algo a desejar ao acarajé — que eles nesta região pelo visto também fazem, à sua maneira.
Isso que achei aqui era uma espécie de bolha de dendê frito sem muito sabor, exceto pelo azeite abundante que se espalhava na língua com aquele sabor inconfundível. (Sugiro cautela estomacal a quem não for habituado, ou pode padecer de um bom piriri em plena Rivière Noire.)

O terreiro
Dali seguimos. Leonce chegou a me mostrar certos terreiros de vodun, e disse que aqui é Ogum que as pessoas reverenciam. Se Ogum atende por Ogum na língua iorubá, aqui eles o chamam Ogu. É o mesmo.
Leonce observou que Ogu era a deidade guerreira, mas que não era por isso um promotor das guerras, mas da bravura e do bom combate. Contou-me que, às vezes, havia sacrifícios de galinha, de cordeiro, e até de cachorro (coitados). (Sim, eu sou contra sacrifício de cachorro, e preferiria muito mais que seus sacro-ofícios fossem de natureza moral, mas não ia eu agora pegar discussão no vilarejo sobre isso.)
Havia um espaço dali onde só poderíamos entrar descalços, o que não fizemos devido à lama que estava. Era curioso ver alguém chegar, como chegou um homem, a pôr-se ali para se queixar gesticulando sobre algo no seu idioma, como que a fazer uma confissão católica, só que diante do egbá de Ogum — e certamente a lhe solicitar ajuda com algo. Leonce me disse que aqui é assim, as pessoas chegam e depõem, e pedem o que quiserem.

No Riacho Negro
Foi ali, depois do gengibre caramelizado e do terreiro, que tomamos uma canoa para navegar o riacho negro — a rivière noire, como eles aqui a chamam em bom francês.
Trata-se de um curso d’água que quase parece parado, entre as palmeiras de ráfia e tantas outras, por onde uma trupe relativamente quieta nos levava empurrado o barco com uma vara que alcançava o fundo — típico aqui. É um passeio plácido, silencioso, onde escutar a natureza: os sapos, pássaros, e talvez macaquinhos nas árvores.



Você passa ali uns bons 20 minutos ou mais naquele passeio pitoresco, até que desembarcamos de um outro lado.
Lá, caminhando um pouco por entre as palmeiras e visitamos um artista que tinha suas obras expostas ao ar livre. Parava seu carro ali todos os dias para expor as esculturas de metal, as pinturas, e esperar turistas. O lugar me pareceu um verto ermo, mas ele estava contente dizendo que vinham uns 100 turistas todos os dias.



Isso não é pinga comum. Eles aqui fabricam álcool a partir da seiva doce no miolo do dendezeiro, o que apelidam de vin de palmier (vinho de palmeira). Faz-se também da ráfia — a palmeira mais longilínea que eles usam para fabricar móveis.
Há a versão fermentada e a versão destilada. A destilada tem aquele gosto habitual dos destilados, como a vodka. Já a fermentada, que é mais cotidiana e Leonce me deu num vilarejo para experimentar, tem gosto de água de coco que ficou do lado de fora da geladeira depois de um tempo.

O dia já começava a querer se findar cedo, como é comumente o caso na zona rural. Caminhamos de volta até o barco vendo os dendezeiros altos (embora sem frutos), os coqueiros e tantas outras árvores. Cheguei a ver um pé de fruta-pão também e muitas bananeiras.
À canoa, os meninos nos esperavam, e tivemos aí mais um longo tempo navegando devagar — a ponto de eu cogitar que o sol cairia antes de aportarmos em algum lugar. Estava claro que terminaríamos num lugar diferente de onde começamos.


Nosso retorno foi com o sol se pondo. Cheguei a comer mais um pedaço de aipim, e deixei que o estômago de Leonce lidasse com o azeite de dendê frito. Embora eu normalmente não tenha problema com ele, este não havia me caído muito bem, e eu quis evitar que houvesse consequências nefastas ali naquele mato.
Finalmente aportamos num lugar insuspeito, e ali deixamos a canoa e os meninos. Fizemos então uma breve caminhada de volta até o Leonce havia deixado sua moto — e que a esta altura eu nem fazia mais ideia de onde havia sido — passando por pequenos cultivos de mandioca e de milho, bases da alimentação aqui. A chuva havia-se ido embora, e nós regressávamos a Porto-Novo para eu então encerrar minha estadia no Benim.
A moto estava no vilarejo, onde à luz do crepúsculo alguns muitos jogavam futebol. Desta vez havia mais crianças, que se animam e pululam como se o palhaço tivesse chegado na cidade. “Yovô, yovô!“, puxavam o coro ao me ver. Mas não se aproximavam, ficavam só às vezes de olho.


Retornamos dali a Porto-Novo, e noutro dia Fernand — que lhes apresentei em Ganvié — apareceria para me levar até o aeroporto de Cotonu por 10 mil francos (15 euros). Chegada era de eu deixar o Benim e finalmente partir rumo a outras paragens nesta África Ocidental.
Linda, a regiào. Semelhante à Amazonia com seu lençol dágua e seus igarapés varios…
Belissima a vegetacao, povo simpático, musical, esportivo, artistas de belos efeitos. gostando muito do que estou apreciando.
Lindo o Benin. a cara do Brasil e do N-NE, principalmente.
Adorando.