(Este será um post longo.)
A Ilha de Goreia, dita Île de Gorée em francês e às vezes usada assim também no português, é tombada Patrimônio Mundial da Humanidade pela UNESCO pela sua histórica falta de humanidade.
Gorée é uma pequena ilha estrategicamente posicionada a meros dois quilômetros de Dakar, a moderna capital senegalesa (não o era nos tempos de colônia), hoje a uma curta jornada de 20 minutos em ferry. É um pingo de terra no mar que você atravessa a pé de um lado a outro em 15 minutos. À época do século XV ao século XIX, era das maiores feitorias de escravos de toda a África.
Os portugueses iniciaram suas atividades por aqui em 1444, quando o Atlântico ainda era um mar muito pouco navegado. A costa oriental africana já era pujante desde a Idade Média, com os árabes de Sinbad a singrar aqueles mares entre a Arábia, a Somália, e o que são hoje Quênia e Tanzânia (mais sobre isso você lê nas minhas postagens lá.) Já este lado de cá, não. Quem se atrevia a navegar para além da costa do atual Marrocos desaparecia vítima de ventos — ou de monstros.
Mas Gorée nem é nome português, faça-se saber. Nem francês. É holandês, batizado em homenagem à ilha de Goeree no estuário do rio Reno nos Países-Baixos. Os holandeses também tiraram um naco aqui, antes de Luís XIV reclamá-la para a França e afrancesar o nome.
Hoje, ela é talvez o lugar mais singelo — ainda que duro — para se conhecer em todo o Senegal. Venhamos a bordo.

Estabelecendo a Ilha de Gorée — o pano de fundo histórico
Non plus ultra, Mare Tenebrarum
Olhem no mapa mais abaixo onde estamos. Era o fim do mundo, durante as Idades Antiga e Média, lugar remoto distante de todas as grandes civilizações de que se tinha notícia.
Os romanos e os cartagineses já haviam navegado o Atlântico para além dos chamados Pilares de Hércules — montanhas de um lado e de outro do Estreito de Gibraltar, que separa a Espanha da África —, mas sem ir muito além. O máximo que parecem ter chegado foi às Ilhas Canárias, que têm esse nome pela vasta presença de cães à época. (Ao contrário do que se pensa, são o pássaros que devem sua alcunha a estas ilhas, não o contrário.)
As Ilhas Canárias ficavam próximas ao então chamado Cabo Não, ou o cabo non plus ultra, sobre o qual o explorador veneziano do século XV Alvise Cadamosto dizia que “Quem o passa tornará ou não“.
O segredo estava nos ventos e nas correntes marinhas, mas os medievais não necessariamente sabiam disso. Fábulas e lendas abundavam acerca de monstros, do fim da terra plana, ou supondo que o calor aumentava progressivamente a caminho dos trópicos até o ponto de a água do mar ferver.
O fato é que dezenas de navegadores foram e não voltaram, mais famosamente os irmãos venezianos Vandino e Ugolino Vivaldi no século XIII, os primeiros a tentar chegar à Índia contornando a África. Os muçulmanos tampouco tinham mais sucesso, e chamavam o Atlântico de Bahr al-Zulumat em árabe, ou Mare Tenebrarum em bom latim — o Mar Trenebroso.

Do Cabo Bojador à Ilha de Gorée
O Cabo Não não é o mesmo Cabo Bojador, faça-se saber. Eles frequentemente se confundem, mas há 2º de latitude separando um do outro. O Cabo Não é mais ao norte, ainda no sul do Marrocos, enquanto que o Cabo Bojador fica mais ao sul já no Saara Ocidental, território hoje semi-independente que os marroquinos reclamam como sendo seu.
Foram os portugueses os primeiros a cruzar o Cabo Não e retornar, com as navegações organizadas pelo Infante Dom Henrique a partir de 1417. Àquela altura, já haviam também visitado as Ilhas Canárias comentadas pelos escritores romanos, e o novo limite do mundo tornava-se o Cabo Bojador. Os árabes, que já estavam desde o século VIII neste norte da África, o chamavam Abu Hattar, ou “pai do perigo”. (Já o nome Bojador parece ser mesmo português, referente a algo bojudo, volumoso.)
Gil Eanes é quem primeiro passa por ele em 1434, dando a volta mar adentro até os Açores (que Portugal já conhecia desde o século anterior) e retornando a Lisboa. Imortalizado uma vez na historiografia, mais tarde esse cabo acabaria também imortalizado na poesia, num poema de Fernando Pessoa do qual muitos só conhecem os primeiros dois versos.
Valeu a pena? Tudo vale a pena
Se a alma não é pequena.
Quem quer passar além do Bojador
Tem que passar além da dor.
Deus ao mar o perigo e o abismo deu,
Mas foi nele que espelhou o céu.– Fernando Pessoa

A costa africana, porém, seguia por ser descoberta. Lá mais além dos mouros e do deserto viviam povos negros de que os europeus tinham notícia, mas que pouco conheciam. Sabiam deles através dos tempos romanos e, sobretudo, das lendas medievais de Mansa Musa, o rei malinês do século XIV que era tão fabulosamente rico em ouro que dizem ter depreciado o preço do metal após fazer sua peregrinação a Meca e sair distribuindo moedas douradas pelo caminho.
Os portugueses sabiam que esse ouro vinha de algum lugar mais a sul do Saara, e pretendiam chegar eles diretamente às minas.
Nuno Tristão foi quem em 1441 foi mais além, identificando o Cabo Branco na atual Mauritânia. (Você aí já percebeu que os portugueses daquela época demarcavam seus avanços identificando cabos pela costa.) Foi ele, de acordo com os cronistas de seu tempo, “o primeiro fidalgo que viu terra de negros“.
A 1444, ele próprio — ou, segundo outros cronistas, o também português Dinis Dias — encontraria este Cabo Verde na atual Dakar, e aqui junto dele a ilhota que mais tarde ganharia o nome de Gorée. Uma década depois, descobririam as desabitadas ilhas que, por conseguinte, receberiam a alcunha de Ilhas do Cabo Verde.


Escravidão em Gorée
Todas essas edificações que você vê aí são posteriores a esse período que eu descrevi. Os portugueses, à época, encontraram tribos relativamente pouco desenvolvidas por aqui. Seus líderes — islamizados após séculos de contato com os mouros — já tinham por hábito vender gente capturada de tribos vizinhas nas suas guerras santas (jihad) aos árabes, e os portugueses se encaixaram bem nesse esquema. Estes vieram atrás de ouro, pensando encontrar rio Senegal acima um caminho para a lendária Tomboctu de Mansa Musa, e acabaram levando gente embora.
Laurentino Gomes no seu Escravidão fala do primeiro leilão de escravos em Lagos, sul de Portugal, a 1444, e tais escravos provinham destas primeiras navegações. Dominavam aqui os jalofos (ou wolof), povo negro longilíneo que até hoje é a maioria no Senegal. Só mais tarde é que se chegaria à então chamada Costa dos Escravos, que lhes mostrei um pouco no Benim.
Gorée serviu de feitoria portuguesa de 1444 a 1588, quando foi tomada pelos holandeses e ganhou esse nome. Salvo por uma breve reconquista efêmera em 1629, os portugueses jamais voltariam a dominar este lugar. Os holandeses perderam-na para os ingleses em 1644, e estes para os franceses do reinado de Luís XIV em 1677. Exceto por breves interregnos de retomada pelos britânicos, Gorée permaneceria um entreposto comercial francês até 1960. O tráfico negreiro cessou com Napoleão em 1815, mas as suas marcas persistem.
Vamos, enfim, vir pessoalmente a esta ilha que é como se fosse um centro histórico insular de Dakar.

Prólogo de Gorée, saindo de Dakar
Coisas no hotel
A moça que veio me servir os omeletes de manhã estava tão macambúzia que, se fosse lá na Bahia, alguém bem poderia ter perguntado: “O que foi isso assim, minha filha?”. Ninguém fique achando que os africanos são todos festa o tempo todo.
Eu estava no pátio do meu hotel no centro da capital senegalesa, um cinzeiro chinês sobre a mesa de madeira neste arborizado lugar onde as pessoas ainda fumam — inclusos aí os turistas europeus que já não podem fazer isso em casa, mas que pelo visto não internalizaram as razões para tal. Depois a gente pensa que só brasileiro é que se comporta diferente no estrangeiro.
Aqui eu era mais uma vez Monsieur Limá, como no Benim, mas aqui as pessoas têm ares outros e se comportam de maneira diferente. Por vezes, têm um biotipo alto e longilíneo (Aicha à recepção não tinha menos de 1,70m), e se vê a influência árabe nas roupas e nos costumes. Homens por vezes estão naqueles robes brancos e de sapatos pontudos de Aladim, outros noutros tons monocromáticos, contrastando com os vestidos coloridos e turbantes das mulheres que passam — vestidas assim apesar do seu islamismo.

Vou dizer a verdade e contar que há, especialmente entre os homens, uma altivez que por vezes beira um ar de superioridade — ou mesmo uma certa empáfia — diante de estranhos que eu não havia encontrado nem no Togo nem no Benim, e mais semelhante à que vejo por quase todo o mundo muçulmano. Não há necessariamente daquela cordialidade espontânea como no Brasil.
Pelo contrário, o comportamento das pessoas lembra os árabes ou indianos, aquela coisa altiva e por vezes interesseira também. Começa à francesa com aquela coisa cortesa de “Bonjour, monsieur. Ça va? Comment allez-vous? Eu tenho uma loja de souvenirs; não sei se lhe interessa. O senhor poderia dar uma olhada, para me ajudar.”
Os homens de poder têm por vezes um jeito arrogante ou carrancudo — aquela coisa nua. “Qual o prato do dia?“, perguntou por exemplo um cliente senegalês à moça tristonha da manhã, agora no almoço. “Não sei“, respondeu ela meio perdida. “Não sabe? Pois vá lá se informar e volte para me dizer“, retrucou o cliente tão preto quanto ela naquela coisa meio Brasil Colônia — que ainda se vê entre patrões e empregadas em certos cantos também do Brasil, verdade seja dita.
Noutra mesa ao lado, um homem branco — creio que francês — conversava todo coquete com uma mulher africana. Sabe-se lá o que rolava. Eu tinha tempo de ficar observando porque meu almoço levou 1h30 até ser servido. “A vida como ela é” nestas partes da África.
Eu começava a olhar o relógio, porque meu barco para Gorée sairia muito em breve, até que por fim a moça triste falou e o meu prato chegou.

A moça das belas tranças por fim me falou. Devia ter seus 20-22 anos, e tinha umas coisas plásticas que faziam um simpático barulhinho quando batiam um no outro às pontas de cada trança no meio das costas. (Era um pedaço de mau caminho, verdade seja dita.)
Minha atenção agora se voltava ao que eu tinha diante de mim. O supukanja é um o prato guineano com pasta de amendoim, azeite de dendê, quiabo e frango ou algo outro, comido arroz. Era portanto uma espécie de caruru com carne em vez de camarão seco. Eu geralmente não como carne, mas às vezes a gente faz as coisas por etnografia. A pasta de amendoim eu não idenfifiquei, mas devia estar lá, e o quiabo com dendê na composição se notavam claramente.
Gostei? Gostei, mas não sei se comeria repetidas vezes. Continuo a não ser o maior fã daquela consistência pegajosa do quiabo.
“É um guineense que faz“, disse-me a outra funcionária, que depois voltaria para perguntar se eu “amei” o prato. Disse que demorou porque a rua estava impossivelmente engarrafada. Eu pensava nisso, sabendo que iria a pé até o porto, mas mesmo assim a pensar, ao mesmo em que me dava conta que, é mesmo, há imigração regional por aqui, dos guineenses que saem da sua Guiné pobre para vir tentar a vida no Senegal mais desenvolvido. Entre uma elucubração prática e outra, eu tomei rumo.

Comprando as passagens e viajando a Gorée
Paga-se 5.200 francos CFA pelo bilhete de ida e vinda, mais 500 francos pela tarifa municipal, o que totaliza o equivalente a cerca de 9 euros para viajar à Ilha de Gorée. Como lhes disse, a maioria dos turistas vai e volta no mesmo dia, mas vale muito a pena pernoitar lá.
Saem barcos a cada 2h, e o trajeto dura meros 20 minutos. Se quiser se assegurar de que tomará um barco específico, melhor vir umas horas antes e garantir suas passagens. Até mesmo porque pode haver uma filinha na hora de comprar, e o procedimento, embora não seja bicho de sete cabeças, tampouco é tão simples quanto poderia ser.
Primeiro de tudo, traga seu passaporte já quando vier comprar, pois para acessar a área da Estação Marítima será preciso mostrá-lo ao guarda. Se não, não entra. A internet abunda com queixas de turistas desavisados que bateram e voltaram porque estavam sem o passaporte, e não adianta conversar com o policial.
Daí há dois guichês distintos lado a lado. Você precisa ir em ambos. Primeiro, paga-se num a tarifa municipal de 500 francos. No outro então, você faz a compra do bilhete propriamente dito por 5.200. Tudo em espécie, em francos CFA. (Não há bilhete só de ida para estrangeiros. Você obrigatoriamente compra desde já a volta, seja ela no mesmo dia ou no dia seguinte.)
Esses dois guichês são duas janelinhas próximas uma da outra na área aberta da Estação Marítima. Só então você, munido do bilhete, adentra a sala de espera com ar de rodoviária.

Tendo já vindo mais cedo antes do almoço a comprar minha passagem, uma senhora vendedora que também ia viajar havia me abordado a querer me vender coisas, e eu a dispensei. Fui para o meu esperado supukanja no hotel, para regressar em seguida. Meu barco sairia no começo da tarde. Lá no hotel eu também deixei minha bagagem principal para evitar viajar com muito — até porque eles aqui são cismados com segurança, e tem essa coisa de ficar vistoriando bagagem, o que eu preferi evitar.
Nesta segunda vinda para embarcar, o guarda se engraçou pegando meu passaporte para ler “República Federativa do Brasil” em voz alta, e eu já encurtei com receio de alguma graça extra não-requisitada. Após a tentativa de extorsão no aeroporto de Dakar, fiquei de soslaio. (Gato escaldado…). Disse Merci, e passei.
Alguém facilitava manualmente a passagem de todo mundo à sala de espera, já que o leitor de código de barras da catraca estava quebrado. Na sala, havia gente africana em sua maioria , somados a alguns turistas brancos aqui e ali. Em tempo, as pessoas começariam a se aglomerar de pé mesmo.
Às 14:25, faltando portanto 5 min para o horário, abriram o acesso e começamos a entrar no breve ferry. É uma embarcação de médio porte com dois andares, sofás plásticos tanto dentro quanto fora, e lugares pode você pode ficar de pé. Alguns se atreveram sob o sol, umas mulheres francesas sentindo-se propriamente tuaregues com um pano enrolado em torno da cabeça e do pescoço, deixando só a face de fora, como um turbante.

Sentou-se perto de mim no sofá plástico um longilíneo coroa senegalês de seus quase 60 anos e a cabeça lisa.
“Bonjour”, deu ele, e como que a vaticinar minha observação de que as pessoas aqui puxam assunto com segundas intenções (como pelo mundo árabe e na Índia), ele foi perguntando de onde eu era e se seria minha primeira vez em Gorée. “Sim“, respondi eu indisposto a mentir, e ele não demorou a comentar que tinha uma loja na ilha e que eu viesse ver.
Um minuto depois, lá estava ele abrindo a mochila, que se revelou cheia de braceletes e miçangas e coisas com o nome do Senegal. “Tudo isso sou eu que faço”, declarou ele, bem possivelmente mentindo, pelo aspecto algo genérico e a quantidade “camelônica” de coisas. Tive que cortá-lo dizendo que não iria ficar olhando aquilo agora.
“Se eu o vir passar na ilha, eu chamo você pra vir ver”, disse ele com ar de quem me dizia algo muito atraente. (Estaria tudo ótimo e cordial se fosse um interesse social genuíno, não um interesse em mim enquanto consumidor meramente.)
Aproximávamos-nos da Ilha de Gorée, que se aumentava no horizonte diante de nós.




Voltas pela Ilha de Gorée
Depois de 20 minutos de navegação (14:35 – 14:55), chegamos. Eu tinha agora a Ilha de Gorée aos meus pés. Desembarcando, há uma prainha onde o mar é mais bonito que a breve praia, e pessoas várias — inclusos ali muitos turistas provavelmente chegados pela manhã — ajuntados já esperando os portões se abrirem para embarcar de volta a Dakar.
Há dois grandes propósitos aqui na Ilha de Gorée. Um é a visitar a Casa dos Escravos (Maison des Esclaves), onde conhecer e ver algo do passado deste lugar como feitoria do tráfico negreiro. O segundo propósito — talvez até mais impressionante — é bordejar pela ilha, caminhar por suas vias floridas e de casario antigo. Digo-lhes sem pestanejar que este foi o lugar mais singelo que eu veria em todo o Senegal, apesar do seu histórico.
É sobretudo por esse segundo objetivo que digo que vale a pena pernoitar aqui, para fazê-lo com mais tranquilidade. Este cais é onde se concentram os estabelecimentos comerciais, com uma meia dúzia de restaurantes daqueles com mesas ao ar livre, mas as ruas de detrás são bem tranquilas, com ares singelos de zona histórica.



Desembarquei e me dirigi ao restaurante Chez Thio, logo em frente ao cais, onde eu deveria encontrar um tal de Oumar Sy, gerente da pousada onde eu ficaria. (Não confundir — mas impossível não confundir — com o ator francês Omar Sy, do filme Intouchables e do seriado Lupin, de origem senegalesa. Mas visualmente eles seriam inconfundíveis.)
Meu Oumar Sy daqui era já um coroa, sentado lá detrás das mesas do restaurante, com um caderninho amassado à mesa, e ares de chefe de máfia — aquela mistura de olho meio cozido e ar de mafioso, que não foi ajudado quando ele pareceu dar um esporro repentino num funcionário. Do seu lado, com ar de tenência, um rapaz alto, mais jovem, e de óculos escuros (embora estivéssemos à sombra). Oumar perguntou o meu nome, e eu fiquei atento para ver se ele era realmente a pessoa da pousada que eu havia reservado. Quem sabe se era, mas ele realmente aconteceu de ter o meu nome escrito a mão com lápis no caderninho.
O cidadão de óculos escuros, Modou [Modú], acompanhou-me, e se revelou uma pessoa prestativa por detrás daquele semblante de gângster. Gingando, providenciou-me papel higiênico e me mostrou onde estava a toalha, além de arrumar o wifi. No outro dia, estaria ele lá também a nos preparar bem e com gentileza o café da manhã.
Decidi que deixaria para ver a Casa dos Escravos na manhã seguinte, e que neste restante de tarde tomaria meu tempo perambulando pela ilha. O próprio caminho desde o cais até a pousada já me havia revelado belas ruelas com calçamento de pedra, casas coloridas bem conservadas, e gentes moradoras a passar. Um ambiente bem gostoso e pitoresco.
Pareciam-me casas de engenho, só que mais coloridas, lembrando-me em algo o México ou a Guatemala com seu casario colonial.





Como vocês hão de notar, o lugarejo é um charme. Dá vontade de se perder só passeando aqui. Se uma tarde em Itapuã tem seus sabores, uma tarde em Gorée também.





Quase todo este casario é do século XIX. Alguns são do século XVIII, mas não há muito de antes disso.
Não vi quase nada do tempo português (1450-1588) ou holandês (1588-1664) aqui. Estas edificações datam do tempo francês (1677-1960), quando a Ilha de Gorée foi um importante entreposto comercial. Não eram só escravos, como também cera, goma arábica, amendoins, óleo de amendoim, e marfim. (O amendoim é uma planta das Américas, mas trazida aqui pelos europeus.)
O comércio de escravos foi terminado pela Revolução Francesa (1789), depois reinstaurado, e finalmente abolido por Napoleão em 1815. Portanto, nesse período do século XIX e começo do XX — de quando datam estas construções — o comércio já não era mais em gentes, mas em matérias-primas.
Já hoje, o que você vê é uma gente humilde num lugar ainda pobre. Basta se afastar um pouquinho das ruelas mais arrumadas, e você se depara com caminhos de terra onde circulam cabras. Meninos corriam na vizinhança, as moças voltavam da escola, e rapazes jogavam futebol num terreno de areia em meio à paisagem histórica.




Cheguei a dar uma passada na igreja, que estava vazia, com o padre curiosamente à porta como que em busca de fiéis.



Eu seguia caminhando pela ilha. A hora da glória é a tardinha, com o sol caindo — bem mais do que a noite, já que o principal aqui são as cores do casario em contraste com o azul do céu.
Detive-me ali diante da moça que vendia salgados e antecipei o jantar. Eu não sou muito de jantar, o que veio a calhar porque a a ilha é fraca em opções de alimentação, mas c’est la vie. Pedi pela pimenta, que me cederam com breve ar de curiosidade, e me olhavam brevemente, mas sem puxar papo. Papo viria depois no mercado.
Há um mercadão de artesanato aberto até as 18h aqui em Gorée todo tocado por mulheres, e foi aonde eu fui dar um bordejo.







Eu estava caminhando rumo ao cais, a tirar fotografias de lá com o cair do sol, quando me chamou uma mulher sentada em frente a esse centro de artesanato. Era a mesma que havia me oferecido coisas na Estação Marítima de Dakar. (Mundo pequeno.)
— “Você se lembra de mim?“, indagou ela meio coquete.
— “Sim, lembro.“
Disse-lhe que voltaria após tirar umas fotos, ao que ela me alertou que só estariam ali até as 18h, quando o sol já cai, e eu voltei já à quase penumbra para cumprir minha palavra.
Chamava-se Mariam, mas disse que seu “nome de comércio” era Coco Channel. Perguntou de onde eu era, e eu lhe dei três tentativas para descobrir. Argelino. Marroquino. Tunisiano. “Eu sei que tenho essa cara, senhora, mas não. Brasileiro.”
— “Mas os brasileiros não vêm cá! Ou muito raramente.”
— “Pois aqui estou eu. Encantado.“
Fiz vontade, e ela me puxou para dentro das lojas, onde outras que estavam lá à toa sem clientes logo também caíram de olho, querendo que eu em seguida fosse ver este e aquele estande.

O engraçado foram elas palpitando a minha idade.
— “20 anos“, disse a outra que chegou.
Tomaram um susto — que me pareceu genuíno — quando eu lhes disse que tinha quase o dobro. Parece que eles acham inusitado alguém com essa idade e que não tenha jeito de pai de família à moda antiga.
— “Eu sei, eu sou bem conservado“, disse eu.
— “De verdade!“, foram elas na minha massagem coletiva de ego.
Acabei por levar umas coisas. (Barganhe até não poder mais.)

Mais adiante, já passado das 18h, o cidadão que havia se sentado de junto de mim no barco apareceu caminhando no sentido contrário ao meu e me avistou. “Oh! Onde estava você?!”, protestou levemente, “eu acabei de fechar a loja, eu fico ali atrás”, completou como se eu tivesse perdido uma grande chance e agora o leite estivesse derramado. (Bah).
Eu disse a ele que não se preocupasse porque eu pernoitaria na ilha, e amanhã ainda estaria por aqui. Ele se tranquilizou (embora não fosse mais me ver).







A Casa dos Escravos (Maison des Esclaves)
Despertei para um café da manhã à francesa, com pão baguete, omelete, manteiga e geleia preparado por Modou, e me preparei para minha manhã final nesta ilha. Eu, finalmente, hoje veria a Casa dos Escravos.
Este é o lugar sine qua non de uma vinda à Ilha de Gorée, a visita obrigatória e se fazer aqui. A Maison des Esclaves é apenas uma, restaurada, de muitas casas que serviram ao tráfico de escravos aqui, mas ela foi a que despertou os historiadores para o papel desta ilha no comércio negreiro do Atlântico. Gorée é, em consequência, a feitoria mais famosa de todas no mundo francófono. (Curiosidade que eu tenha lido sobre ela pela primeira vez na vida, não nas aulas de História, mas nas aulas de francês já durante o mestrado.)
A casa data de 1776, e foi propriedade da mulata Anne Pépin (1747-1837). Foi contemporânea, portanto, da brasileira Chica da Silva, e como esta em Diamantina (MG), Anne era proprietária de escravos e comerciante. A ficção depois é que romantizou essas personagens, mas na prática foram pessoas que se adequaram ao sistema e participaram da exploração humana. (Como bem disse Paulo Freire, quando a educação não é libertadora, o sonho do oprimido é ser o opressor.)
Na década de 1960, com o Senegal recém-independente, pessoas daqui se mobilizaram e a antiga casa foi então convertida num museu de fama mundial. Entre os famosos que aqui vieram estão Obama, Nelson Mandela, e o Papa João Paulo II, que da porta de não-retorno desta casa pediu desculpas pela escravidão em nome da Igreja.


Ela é uma casa colonial básica que você visita em coisa de 30 minutos. O ingresso aos estrangeiros que não residem na África estava em 1500 francos CFA, menos de €3. Você adquire os bilhetes na casa amarelada em frente. Se quiser vir às 10:30 na hora de abertura, eu recomendo, mas daí seja pontual, pois dezenas de outras pessoas têm a mesma ideia, e às 10:40 já há bastante gente. Note também que a casa fecha entre 12-14h.
Você verá guias acompanhando alguns turistas europeus e oferecendo seus serviços, mas eu não sei até que ponto eles são essenciais. Depende do seu gosto, disponibilidade de dinheiro, e interesse em ter guias, além do seu conhecimento prévio. Pelo que eu ouvi aqui e ali de vários guias com seus visitantes, eles se debruçam demais sobre o genérico, falando sobre o que é a escravidão, etc. Talvez mais interessante a um holandês ou italiano que a um brasileiro já algo familiarizado com esse histórico.
Em horários avulsos, há um commentaire que pode ocorrer em francês ou em inglês, por um senhor funcionário que fala durante uns 15 minutos, contando-nos como os escravos ali ficavam em média 3 meses antes de ser embarcados ao Brasil, a Cuba, às Antilhas (Haiti & cia) ou aos Estados Unidos, onde receberiam nomes sem sobrenome em português, espanhol, inglês ou em francês. Os muito magros, com menos de 60 Kg, teriam uma dieta de engorda, como animais da pecuária, para obterem melhor preço de venda. Os que não conseguissem, permaneceriam aqui como escravos domésticos, na própria Ilha de Gorée ou na então capital colonial francesa, Saint-Louis.
É uma visita crua, na qual você vê como — simbolicamente — os escravos viviam em masmorras acorrentados junto sub um salão onde a “boa sociedade” festava ou e se reunia para os negócios.




Na sala acima, você vê depoimentos de visitantes famosos e uma foto do Papa João Paulo II, que esteve aqui pedindo perdão em nome da Igreja em 1992.
Em verdade, a Igreja nem foi ela um dos carros-chefes da responsabilidade; pelo contrário, oficialmente o clero não era permitido se envolver nisso, embora muitos se envolvessem, na África como no Brasil e na Europa. À época, os eclesiásticos eram dos poucos que se manifestavam contra, enquanto que o liberalismo teve toda uma contra-história de aumento da escravatura, já que os “direitos do homem” só valiam mesmo para homens e que fossem brancos.




É uma visita memorável, mas vale dizer — a bem da verdade — que eles aqui inflam a relevância de Gorée no contexto da escravidão africana. Estima-se hoje que foram 12 milhões de escravizados traficados pelos europeus no Atlântico; aqui em Gorée eles às vezes dão a cifra de 20 milhões só aqui (!). Há exageros bastante grandes que hoje os estudiosos identificam — Gorée teve um tráfico bem menos numeroso que portos como Ajudá, no Benim, ou Luanda em Angola, mas não deixou de ter seu papel.


Hoje, imperam as cores e as flores aqui. Tendo visitado a Casa, preparei-me para ir pegar minhas coisas na pousada e zarpar.
Deixo o alerta para que tomem cuidado com acertos de logística aqui na África em geral. As pessoas — ainda mais que o Brasil — não têm muito a cultura da pontualidade e coisas afins. Aqui a coisa é mais na base do “a gente vai vendo”.
Modou tinha me cobrado a diária ao café da manhã e na hora não tinha troco, ficou de me dar depois, disse que estaria lá. Se eu não tivesse dado a sorte de ter cruzado com ele na rua no caminho de volta para a pousada, teria perdido o barco das 12h ou partido sem o troco de 7500 francos (12 euros), porque ele já estava indo pra outro lugar. Dei sorte.
Retornei então ao porto para os 20 minutos a Dakar. No barco de retorno não há controle praticamente nenhum. Nem você precisa reservar lugar nem nada disso. Vai embarcando, e o guardinha no acesso mal pede para ver sua passagem, já que todo bilhete é automaticamente de ida e volta. Adieu, Île de Gorée.
Eu deixo vocês com mais algumas fotos desta pitoresca ilha, o lugar mais bonito que eu veria em todo o Senegal. Hora de retornarmos à sua capital para dali singrar outros mares.


Que linda, essa ilha… Encantada com as cores, os lugares, as ruelas, o céu, o mar, o verde que está em toda parte, as flores, a arrumação, as belas e históricas construções, seu calçamento, a limpeza, e se povo longilíneo e interessante. Lindinha… Uma graça. Lindo o colorido das casas…
E que pena esse passado tão triste de escravidão dos seus filhos e de outros irmãos africanos… Triste página da humanidade… E que contrasenso… também praticado em um tempo onde se pregava /defendia valores como Liberdade, Igualdade,Fraternidade… inclusive pelo mesmo povo que por esses ideais lutavam… E que mesmo assim acobertavam a escravidão dos africanos como se estes nao fossem irmãos….Que horror
A despeito disso tudo, há de se apreciar a graça e a beleza da iha e do que se tornou: um belo ponto de atração para a região e de mergulho na realidade da escravidão e suas consequências para os africanos, para a África e para o mundo. Empobrecimento e injustiça para África, enriquecimento para os que lucraram com o comercio dos irmãos negros, sofrimentos sem fim para os escravizados e vergonha para o mundo.
Lindo o estilo das construções… Lembra algumas cidadezinhas mediterrãneas da Itália, Grécia e redondezas, só que estas bem mais conservadas e cuidadas
Gostei de ver o trabalho das mulheres, a beleza dos pratos, o uso do dendê, do amendoim, do quiabo… etc e tal..
Uma bela surpresa ver essas belezinhas históricas na Africa.
Destaques para o lindo céu azul, para o verde mar e para a natureza soberba.
Adorei.
By the way, que desagradável essas características de algumas figuras ai encontradas pelo viajante.
Mas vamos que vamos… Navegar é preciso…Conhecer também e superar as dificuldades, imprescindível…
Valeu, jovem viajante