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Senegal

Conhecendo Saint-Louis, a antiga capital colonial do Senegal

(Este será um post longo.)

Bem-vindos a Saint-Louis, a cidade senegalesa fundada pelos franceses ainda nos tempos de Luís XIV. A homenagem é ao medieval rei Luís IX, o dito São Luís, falecido nas Cruzadas e depois canonizado — o mesmo a quem se refere nossa São Luís do Maranhão.

Esta de cá não deixou de ser uma forma indireta de agradar também ao Rei Sol, Luís XIV, monarca da época da sua fundação. Estamos em 1673, com os franceses a começarem a ficar saídos mundo afora na esteira dos portugueses, holandeses e espanhóis. Fez-se então esta feitoria e entreposto comercial francês no Senegal, acompanhando a Ilha de Gorée mais ao sul, onde hoje está Dakar.

Saint-Louis é uma pequena e comprida ilha, que os nativos jalofos (ou wolof) já ocupavam desde o século VIII. Nesse século chegam os árabes, completando sua conquista do norte da África e trazendo o islã — por terra, pela costa e com suas caravanas transaarianas. Os senegaleses em tempo se tornariam praticamente todos islâmicos até hoje.

No século XV, surgem os portugueses trazendo o cristianismo e a escravatura em grande escala, ela que já era praticada pelos árabes e entre os próprios africanos em escala menor. Os lusos chegaram em busca de ouro, encontraram pouco, e resolveram levar gente a trabalhar suas plantações nas Américas. A partir do século XVII, estes domínios seriam sobretudo franceses.

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Saint-Louis nos idos de 1910.

Como é Saint-Louis hoje, ela que foi capital colonial francesa aqui até 1902? Veremos em detalhes. A cidade é reconhecida pela UNESCO como Patrimônio Mundial da Humanidade, embora esteja carecendo de cuidados. Podemos também dizer que estamos na capital turística do Senegal, o que vem para o bem e para o mal.

Os turistas franceses, em especial, fazem um alarde grande daqui, e são a grande maioria dos visitantes. Só volta e meia aparece alguém de outras bandas feito eu. Comecemos com mais algumas fotos de época que encontrei, e depois me acompanhem pela Saint-Louis atual.

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Saint-Louis em 1915, tempo ainda da colonização francesa, que duraria até a Independência do Senegal em 1958.
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Saint-Louis hoje é tombada como Patrimônio Mundial da Humanidade pela UNESCO. Ela é facilmente a cidade mais histórica que há no Senegal.
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Nós estamos no extremo norte do Senegal, quase à fronteira com a Mauritânia. A Saint-Louis antiga é aquela ilhota comprida ali no meio, onde estão os lugares de interesse e é melhor se hospedar. A oeste você tem a estreita península arenosa que se estende por 40 Km desde a Mauritânia, que serve de proteção e hoje ocupada aqui por bairros pobres próximos ao centro histórico de Saint-Louis. Cá no continente você tem a parte “moderna”, aonde eu cheguei.

Chegando a Saint-Louis

Eu cheguei a Saint-Louis à noite, vindo desde Dakar num ônibus da Senegal Dem Dikk. Tudo correu bem, como relatei em detalhes no post anterior. Eram 19:30, tudo já escuro, e meu primeiro contato com a cidade histórica seria portanto à noite.

Uma ponte elegante do tempo de colônia — a Ponte Faidherbe, inaugurada em 1897 — o leva desde as partes mais novas (e muvucadas) da cidade até seu centro histórico, onde eu me hospedaria. Note pelo mapa acima que essa ponte é relativamente extensa, com mais de 500m de extensão numa armação de ferro. É um dos cartões-portais de Saint-Louis.

Até a sua construção o acesso à ilha de Saint-Louis era feito exclusivamente por barco. Instalou-se um ferry já no fim do século XIX, mas logo se viu que ele não dava conta e lotava com rapidez. Naquele afã modernista da Belle-Époque francesa, oito anos após a inauguração da Torre Eiffel em 1889, fez-se esta ponte de estrutura metálica no que era o jeito da época.

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Ponte Faidherbe, inaugurada em 1897. Ela homenageia Louis Faidherbe, administrator colonial da época. Por que a água é barrenta? Porque este não é o mar, senhoras e senhores, é o rio Senegal.
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Notem ali o rio Senegal — que dá nome ao país — vindo do norte e desembocando mais a sul. Note também, pela linha cinza a norte dele, que já estamos à fronteira com a Mauritânia. A extensa península arenosa à beira-mar foi apelidada ao longo da história de Língua da Berbéria (Langue de Barbarie).

À noite, todos os gatos são pardos, mas numa terra de negros isso não seria o bastante.

Eu desci do táxi que me trouxe aqui desde a parada de ônibus na Saint-Louis nova e adentrei meu simpático hotel, uma casarão de época transformado em pousada.

A luz da lua iluminava a mal-iluminada cidade, que me lembrava certas paragens do Brasil interiorano, aquelas cidades cenográficas de novela.

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A luz da lua à noite ilumina Saint-Louis, Senegal.
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Minha acomodação, pousada com cafeteria cultural numa casa de época.
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Este ambiente me lembrava em algo o Brasil — ou até mesmo aqueles ambientes cenográficos de novela. Vê-se até o saci, e poderia ser o cadeirudo a rondar pela noite de São Tomás de Trás, mas era Saint-Louis no Senegal.

Voltas por Saint-Louis

Um primeiro bordejo à noite

Eu não havia jantado, então deixei as coisas no aconchegante quarto, conversei rapidamente com o dono do lugar — um senegalês com jeito de ter a minha idade, gordinho e de ares tranquilos, daqueles que estão sempre com o celular em mãos e a cabeça parece sempre estar metade falando com você e a outra metade ainda no que ele estava fazendo no celular — e voltei a sair. Disse-lhe que queria algo simples, e ele me recomendou uma senhora que vendia sanduíches numa esquina.

Embora pouco iluminada, a cidade segue funcionando nestas primeiras horas da noite. Há mercearias ainda abertas, e cidadãos a cruzar as ruas sob o farol dos carros — que era o que as iluminava. O índice de vadiância aqui parece incrível entre os homens, maior que no Brasil. Homens de várias idades ficam sentados às portas sem aparentemente fazer nada, só chamando quem passa. “Bonsoir! Ça va, monsieur? Mon ami!” Se você não responder, muda a língua e o tom: “Hello, my friend!! My friend! Looking for a restaurant?

Você dá alguns passos, e logo vê alguém andando rápido para lhe alcançar e vir falar com você. Eu disse a esse de modo firme que me deixasse caminhar. Ele tomou rumo, e eu tomei uma outra rua para nem dar a chance de ele cogitar uma segunda investida.

Dali a uma quadra, você se detém para tirar uma foto, e já aparece outro com a mesma abordagem. “Bonsoir! Ça va??”. Estaria tudo bem se não fosse óbvio que o interesse é puramente comercial, de lhe vender algo ou de levá-lo para algum lugar.

Já sem paciência, eu dei uma baixa dizendo que ele nem falasse comigo. “Mas você está nervoso?”, indagou ele surpreso, como se nunca tivesse parado para refletir que esse chama-chama enche o saco.

—  “Sim, porque a gente anda 5 minutos — exagerei eu, porque era mesmo menos que isso — e já vem toda hora alguém”.

— “É o teranga, a hospitalidade daqui”, disse ele num misto de contrariedade e resignação. Também não estiquei e tomei meu rumo.

“Teranga minha ****”, teria dito um amigo meu que gosta do baixo calão.

Teranga logo
Teranga é um conceito que você cedo ou tarde vai descobrir aqui no Senegal. Palavra jalofa que se refere a algo como “hospitalidade calorosa”, ela tem sido usada na indústria do turismo para promover o Senegal. Pisque, e você esbarrará em referências a isso na mídia nacional ou internacional.

Pode muito bem haver teranga no contexto familiar ou pessoal, mas hoje seu uso “de rua” com turistas é todo corrompido por segundos interesses. É como na Índia, onde os mesmos que vêm com aquele papo de “na nossa cultura, o hóspede é como um deus” tentam lhe passar a perna. 

Vida que segue, e à noite eu segui até encontrar a tal senhora dos sanduíches, uma matriarca já meio cega com a provável filha e o neto pequeno ali aprendendo, numa banquinha debaixo da luz de um dos raros postes numa esquina. Vendia  sanduíches com coisas tiradas direto da panela e uns espetinhos de que ela falava com orgulho. Aqui, como em tantas periferias brasileiras, são as mulheres que fazem quase tudo, trabalhando da madrugada à noite, dentro e fora de casa, enquanto os homens ficam à toa arrumando confusão. 

Amanhã seria um novo dia, dia de ver melhor e em cores estas ruas de Saint-Louis.

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Saint-Louis, Senegal.

Saint-Louis durante o dia: Vendo de perto seu legado

Saint-Louis quase toda parece datar dos fins do século XIX e início do XX. Há muitas daquelas janelinhas de madeira com treliças típicas do Mediterrâneo ítalo-francês, assim como casas de arcos redondos, às vezes já com a pinta do movimento art déco dos anos 1930.

Eu cheguei até a achar que veria coisas mais antigas, como nas cidades coloniais latino-americanas, mas não é esse o caso.

Em verdade, boa parte das edificações está caindo as pedaços e lembram aqueles clipes do Buena Vista Social Club em Havana, com aquela cara dos idos de 1920 a 1950, sem manutenção e se erodindo. Vi algumas casas restauradas e habitadas, mas a maioria padece de abandono.

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Ruas de Saint-Louis, Senegal. Note as janelas de treliças típicas da Itália e da Provença francesa. Aqui, diante delas passam os negros com carrinhos de mão em vez de turistas da Côte d’Azur.
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A carroça e as areias da obra ao lado da edificação colonial francesa nos seus típicos tons. Quem for à Ligúria ou a Nice verá deste tom em abundância.
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Casario colonial francês nesta África tropical senegalesa.
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Casa já com ares do Art Déco dos anos 1930, com seus arcos redondos estilizados. (Impossível não notar também os viçosos vestidos das mulheres em tons nada pasteis, se contrastando com as obras francesas aqui.)
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Mesquita senegalesa neste centro histórico.

Como eu não gosto de meias verdades, vamos a outras ruas que você também encontrará, com as coisas bem menos conservadas. 

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Ruas de Saint-Louis, Senegal.
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Mulher com suas crianças.
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De algumas casas só restam as cascas.
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Esquinas pela cidade.
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A tônica geral é esta.
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Cabras no sol.
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Pela cidade.

Eu caminhava debaixo do sol da manhã por aquelas ruas com ares residenciais, e você pode me perguntar o que tem para visitar ali. Não há nada de muito específico — ou seja, quase não há lugares onde entrar. A atração principal corre por conta do casario e, a meu ver, olhar os encantadores vestidos coloridos das mulheres na rua.

Saint-Louis tem um Museu de Fotografia que alguns dizem ser legal, mas que estava fechado por ser segunda-feira. Há um clima ligeiramente cult artístico de influência francesa na cidade. As lojas todas se chamam de gallerie ou de atelier — efeito da atração francesa pelo chiquê e pelo artesanal.

Você encontra alguns ateliês que o são de fato, com peças diferenciadas e originais (e até etiquetas de preço!), mas ali espere pagar preços de Europa.

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Os fascinantes vestidos das senegalesas nas ruas.
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Rama Diaw, um dos ateliês modernos (para turista e com preços de Europa) em Saint-Louis, Senegal.

Quando eu me detive para almoçar já passava das 13h. Aqui, a pessoas almoçam tarde, e se você chegar antes no restaurante, lhe dirão que não há nada pronto ainda. 

Fiz hora, e depois caí na conversa do “Entre, sente que em 10 minutinhos já estará pronto“. Eu acabaria sendo servido 45 minutos depois. O que? Um tchiebu-djienne, o prato nacional do Senegal de arroz com peixe e verduras. 

Se você conhecer um senegalês, descobrirá que há uma rivalidade entre as cidades, com aquelas perguntas retóricas tipo “O tchiebu-djienne de Saint-Louis é o melhor, não é ?!“, mas a verdade é que — obviamente — depende de quem faz, e este daqui não se comparou ao que eu havia comido em Chez Loutcha, em Dakar.

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Meu almoço hoje em Saint-Louis, um tchiebu-djienne, prato nacional senegalês de arroz com peixe e verduras — primo da paella espanhola. O arroz temperado é saboroso, com uma pontinha de limão, mas a generosidade do pedaço de peixe e da diversidade de verduras varia de acordo com o restaurante. Chez Loutcha, em Dakar, ainda é meu favorito.

À tarde, fui à parte central deste miolo histórico de Saint-Louis, e decidi que depois cruzaria o rio até o banco de areia à beira-mar para ver o pôr do sol.

Não sei se ainda por rescaldo da pandemia, mas havia poucos turistas nas ruas. Alguns vendedores me disseram que até 2019 havia mais. Esse desequilíbrio, junto com a altíssima taxa de desocupação masculina aqui no Senegal, faz com que você seja abordado pelos ambulantes a todo momento. É uma marcação cerrada.

A única norma de respeito que eles parecem observar é que, se você já estiver acompanhado de um senegalês, está ocupado — já lhe pegaram. Aí, via de regra, eles não interferem. Se não, virão você como um receptor ainda disponível e tentarão se conectar  com aquelas conversas fiadas de “Bonjour! De que país?“, “Primeira vez no Senegal?“. 

Todos os vendedores parecem vender das mesmas coisas — que parecem, em grande medida, produzidas em grande escala em algum lugar, porque você encontra das exatas mesmas peças aqui, no Togo, no Benim, e provavelmente África Ocidental afora.

Claro, vão lhe dizer que é feito à mão, que foi talhado pelo avô dele no vilarejo, etc. Os vendedores não têm escrúpulos em mentir tanto sobre os materiais de que são feitos (tudo de madeira no Benim era supostamente ébano) nem sobre a própria situação. Que são pessoas vulneráveis, é evidente, mas as histórias de que precisam do dinheiro da passagem para retornar ao vilarejo são cascata pura.

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Cocheiro levando dois turistas brancos para passear.
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Lojas com estatuetas de madeira e souvenirs diversos. Quase todas as lojas têm mais ou menos as mesmas coisas.
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Panos e badulaques.

Você encontrará panos coloridíssimos, pulseiras e braceletes feitos na Ásia (às vezes ainda com os ideogramas chineses ou o Om hindu gravados), algumas peças de madeira (comprei uma estatueta por 5.000 francos, e havia maiores por 7.000 — não pague muito mais que isso).

Há também batik, que lhes dirão ser artesanais, mas que são feitos a máquina — e idênticos aos que eu vi do Benim. Não pague mais que 5.000-7.000 neles, embora lhe pedirão 10.000-12.000 francos facilmente.

Circulei pelo centro, vi o movimento de táxis e outros carros, e passei por pessoas ali sentadas de prosa. Gradualmente ao que a tarde caía, eu fui tomando rumo para a Língua da Berbéria, a estreita faixa de terra arenosa que separa o rio Senegal e o mar. Atravessei a ponte, e lá me deparei com a praia dos senegaleses. 

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O centro da parte histórica de Saint-Louis, Senegal.
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Táxis e veículos na praça de ontem você tem a ponte para a Língua da Berbéria.
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Este breve canal do rio Senegal separa Saint-Louis de Guet Ndar, a vizinhança pobre que fica na Língua da Berbéria, à beira-mar.

Visitando a Língua da Berbéria

Aa ponte sobre este canal estava um movimento grande de gentes pretas a passar cá e lá, um reboliço quase 25 de Março, tipo shopping às vésperas de Natal, só que aqui ao ar livre.

Segui com rumo, mas ligeiramente surpreso pela quantidade de gente ali e pela pobreza residencial feito uma favela sobre os areais, naquela terra seca com alguns matos, muitas canoas coloridas de madeira encostadas — quase que amontoadas umas sobre as outras — nas costas do rio.

Havia aqui muito mais gente que na ilha principal de Saint-Louis, onde volta e meia eu cruzava com um e outro, adolescentes ocasionais a me dizer bonjour no seu uniforme escolar no calor poeirento do meio-dia nesta terra de pouca água. Já aqui nesta tarde suburbana, ninguém me dizia nada, só passavam cá e lá aos montes feito formigas.

Cruzei uma área aberta de reboliço suburbano, até encontrar uma grade daquelas com tela de galinha e 2m de altura separando a cidade da praia, com dois espaços abertos por onde se passar até a areia. Lá, o sol se derramava majestoso no que era quase fim de tarde, seu fulgor ainda potente.

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A vizinhança de Guet Ndar, na Língua da Berbéria à beira-mar. É tradicionalmente uma vila de pescadores, mas a ambiência é a de um bairro pobre de Saint-Louis. A quantidade de lixo por toda parte é homérica.
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A tela de galinha separando a praia, com o sol fulgurante lá atrás e alguns rapazes a jogar bola na areia.
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Olhem a cabra ali atrás — e o Oceano Atlântico, enfim.

Não demorou — é claro — a alguém se aproximar enquanto eu tirava fotos. Quando você menos vê, a pessoa já parou e se pôs a puxar conversa, e segue caminhando na mesma direção que você. Noutras ocasiões, eu saía feito flecha numa direção e podia despistar facilmente esses oportunistas, mas neste entorno aqui eu achei até útil ter essa “cobertura” local (para que outros não me chateassem) enquanto eu tirava fotos.

Caminhamos ali um pouco, ao que crianças passavam, jovens às vezes olhavam, e mulheres suspendiam a vista para me ver ali sem se alterarem por isso. Não falei francês, fiquei num misto de inglês quebrado, português e gestos. Eu não estava ali afim de celeridade. O cidadão de robe preto e chapeuzinho muçulmano na cabeça me disse que era instrutor na escola islâmica. Era um senhor de seus 50 anos e óculos escuros, que foi me dizendo que todo mundo aqui era pescador e criava cabras. 

A areia estava uma imundície sem nome — só se salvava o próprio mar, lindo, no que seria uma estonteante praia se ali não houvesse dejetos e lixo por toda parte. A poucos metros de mim, cabras ajuntadas e mulheres abaixadas a mexer panelas compunham uma espécie de zona rural pobre à beira-mar, enquanto jovens rapazes corriam na areia e meninos jogavam bola.

O curioso é que não havia absolutamente ninguém dentro d’água. 

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Uma linda praia plena de lixo, onde cabras forrageavam.
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Cabras à beira-mar no Senegal.

O tio folgado quis que eu fosse adentrando os caminhos por entre os barracos, que pareciam um acampamento sem-terra daqueles de raiz. 

Começa assim, e eles logo vão querer guiá-lo, que você o acompanhe até o lugar X ou Y, onde estarão em melhores condições de lhe extorquir algo. Achou que ia me encantar com umas conversas sobre “pelicanos lindos” que havia ali “junto com os carneiros”, e que eu viesse ver. Certamente, depois iria querer cobrar pelo que me mostrou.

À revelia da sua oferta, eu optei por descer às areias e ir tocar a água do mar — que ele disse que estava muito fria para o banho, e por isso o mar estava vazio. Toquei, e a temperatura estava nível do Nordeste do Brasil. (Eles são, afinal, pessoas que vestem casaco com 25 graus de temperatura.)

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A praia na Língua da Berbéria, em Saint-Louis. O mar é lindo, mas a areia fica uma imundície com as condições precárias em que estas pessoas vivem.
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O sol já querendo se pôr sobre o Atlântico, que aqui está a oeste.

Fui sendo um turista meio duro de seguir, até porque eu supostamente não entendia nem francês nem inglês direito. Eu estava meio lúdico hoje, dando vazão ao meu erê interior. 

Num dado momento, dei-me por satisfeito daquela pantomima e daquela populosa muvuca, onde as pessoas se divertiam alegremente ainda que circundadas por lixo em quantidade que eu jamais havia visto em praia. As cabras seguiam lá e cá naquela pobreza periférica contemporânea à beira-mar.

Como eu não queria antagonizar o matuto, fiz que amigos tinham me chamado ao telefone e eu tinha de voltar imediatamente à cidade para me encontrar com eles. Fui dando tchauzinho e tomando rumo, ao que ele ficou um pouco ansioso e apressou o passo para me acompanhar indo embora da areia.  

Aí foi direto ao ponto final, o seu destino desde sempre: pedir-me dinheiro. Foi indagando se eu não poderia contribuir com o leite em pó para as crianças. Depois passou a ser o leite em pó e o açúcar. Um minuto depois, quando ele viu que aceitei, virou o leite em pó, o açúcar e o café. Eu vi a hora de ele recitar a cesta básica inteira e aquilo virar um jogo da memória para saber se ele ainda se lembraria de toda a sequência (o leite em pó, o açúcar, o café e a manteiga…)

Fomos caminhando céleres, e saídos da areia ele adiantou um pouco o passo para que parássemos numa mercearia no caminho. Eu tenho certeza absoluta, como sei que o sol há de raiar amanhã, que ele ali faria uma feira imensa de milhares de francos para eu pagar. Mas como licuri é coco pequeno, eu o distraí dando logo uma nota de 500 francos (0,75 euro) — que ele obviamente tomou de pronto — e o despachei com aquilo, dizendo que ele ali comprasse o que precisava, porque eu tinha de ir.

A cara de que ele fez quando dei 500 francos foi de que ele se via ter estado prestes a ganhar muito mais; mas não lhe dei tempo de reagir muito, ocupado que ele ficou com a nota na mão, e eu dei o fora. Adieu.

Você fique certo de que essas abordagens de rua aqui no Senegal são todas com segundos interesses.

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De volta eu estava às ruas mais arrumadinhas de Saint-Louis. Pobres e mal-cheirosas apesar da beleza das flores, mas incrivelmente superiores à urbanidade insalubre de Guet Ndar lá à beira da praia.

Despedindo-me de Saint-Louis

Detive-me — mesmo depois da história da praia — para ver as coisas de Ouleye, uma rara ambulante mulher, que tinha um ar simpático. Eu acho as vendedoras mulheres aqui mais sinceras, naturalmente com sua conversa de comerciante, mas sem aquela brodagem falsa e interesseira dos vendedores homens.

Ao que eu olhava alguns badulaques para comprar, um outro vendedor meio que já aguardava polidamente a uns passos de distância me esperando terminar com ela. Parece que fazem fila. Eles ficam ali à espreita, e quando você termina com um, deu um passo e eles já o saúdam, pedindo que apenas olhe, sem compromisso, e o acompanham.

O terceiro foi aquele que resolveu me acompanhar um tempo, um preto bem preto, de chapéu de pano branco, seus 30 e poucos anos, dentes reluzentes, e que dizia ser de um vilarejo chamado Gamal Gorhh — que ele falava aspirado quase feito uma respiração de Darth Vader. Abô, se chamava.

Eu parei para ver alguém que fazia pintura em vidro e fumava um cigarro. Parei para olhar, Abô parou também. Pediu — e obteve — uma tragada do cigarro do pintor, e depois ainda insistiu em me acompanhar mais. Se você for firme e cortar logo, eles podem ficar para trás, mas se der conversa — como eu dei, porque sou boa gente — aí se prepare para ser acompanhado por um bom tempo, enquanto o cidadão conservar esperanças de que pode lhe vender algo.

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Com Ouleye, vendedora de balangandãs nas ruas de Saint-Louis, Senegal.

Abô depois ficou ofendido porque não comprei nada com ele. C’est la vie

De volta à minha pousada, arrumei com o dono um motorista que me levasse na manhã seguinte direto ao Aeroporto de Dakar por um bom preço. Duas noites aqui em Saint-Louis me pareceram mais que suficientes.

Sendo assim, eu perderia minha passagem de ônibus da Senegal Dem Dikk de retorno a Dakar, mas melhor assim. Ainda que mais caro, seria mais objetivo e tranquilo ir direto ao aeroporto que madrugar para viajar de ônibus ao miolo de Dakar e depois ainda ter que pagar um táxi desde lá.

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Adieu, Saint-Louis.

Quo vadis, domine? À Casamansa, senhor, conhecer a parte sul do Senegal, que há tempos quer se separar, e aonde só se chega contornando ou voando por cima da Gâmbia. Eu reencontro vocês lá.

Mairon Giovani
Cidadão do mundo e viajante independente. Gosta de cultura, risadas, e comida bem feita. Não acha que viajar sozinho seja tão assustador quanto costumam imaginar, e se joga com frequência em novos ambientes. Crê que um país deixa de ser um mero lugar no mapa a partir do momento em que você o conhece e vive experiências com as pessoas de lá.

One thought on “Conhecendo Saint-Louis, a antiga capital colonial do Senegal

  1. Legal, essa cidadezinha histórica, com seus ares de início do século passado, suas residências pintadas, bonitinhas, suas ruas asfaltadas, arborizadas e algumas floridas, apesar de muitas necessitarem de conservação/limpeza/restauração.
    Que pena que as mesmas instituições que as define como Patrimônio, não invistam na manutenção desse Patrimônio em bom estado de conservação. Imperdoável essa displicência e descompromisso com o Patrimônio instituído.

    Lamentável a situação de desocupação sobretudo masculina, hoje uma praga que assola as regiões pobres do planeta, particularmente na América Latina e ,agora verificando , também existente nessa parte da África.
    E vivam as operosas e laboriosas mulheres, de lá e de cá. Salvam, com seu trabalho constante, a pouca economia e a vulnerável sobrevivência de muitos.

    Outro aspecto inaceitável é a quantidade de lixo em quase toda parte da cidade e até à beira mar, o que denota falha na adminstração/educação individual, coletiva e de serviço público.
    Este abandono leva a perceber a ausência de administração pública que poderia tornar a cidadezinha mais atrativa para o turismo e com melhor qualidade de vida para seus habitantes.

    Indiferente aos problemas citadinos o Atlântico reina absoluto com suas belas águas se espraiando sobre as areias. Bela costa.

    E que desagradável esse assédio, a ponto de tirar o viajante do sério haha.

    Mas importante foi ter conhecido e registrada a ida a essa antiga capital com ares do passado francês nessas paragens.

    Que os responsáveis pelos Patrimônios se preocupem em os manter e conservar , e que melhore a situação de administração/educação/ocupação publicas, de desemprego/subemprego que sufocam as vidas ai existentes.
    Valeu viajante brasileiro. !…

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