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Senegal

Visitando a região da Casamansa no Senegal: Ziguinchor e Cap Skirring

(Este será um post longo.)

Você talvez não tenha ainda olhado de perto o mapa do Senegal (ou mesmo de longe). Estamos na ponta da África Ocidental, onde as áridas areias do Saara encontram o mar — e a África tropical verde.

Esse na foto acima é o rio Casamansa, que dá nome a esta região batizada assim pelos navegadores portugueses. Esta, digamos, é a região verde do Senegal, tropical, algo distinta do que tenho lhes mostrado nos posts anteriores pelo país

A Casamansa é, além disso, região que há tempos quer se tornar independente de Dakar, por ser de outra maioria étnica e linguística.

Curiosamente, ela fica separada do restante costeiro do país pela Gâmbia, que é país independente porque foi colônia dos ingleses, enquanto que o Senegal foi colonizado pela França. Note que, para se chegar à Casamansa por terra, é preciso fazer uma volta enorme que ninguém faz, ou tomar um raro transporte de ferry. Quem pode, pagar avião, que foi o que eu fiz para encerrar minha estadia neste país, conhecendo o seu recanto diferenciado, separatista.

Senegal no mapa da Africa Ocidental
O Senegal no mapa da África Ocidental. Note também a Gâmbia, aquele (anglófono) país comprido no meio do (francófono) Senegal.
Casamansa no Senegal mapa
Agora note a Casamansa, esta região cinzenta destacada do restante — exceto por um contato remoto lá no interior, mas de características geográficas e etno-linguísticas bem distintas.

Casamansa, a Casa do Mansa — assim mesmo em bom português

Quem é o Mansa, Mairon?” (Vírgula importante aí.) Mansa é um título desta região da África que equivale aos reis da cultura europeia ou aos sultões da cultura islâmica.

Quem popularizou esse título foi Mansa Muça (que você verá escrito Musa noutros idiomas), um imperador medieval do Mali que governou de 1312 a 1337. À ocasião, o Mali era um grande império às bordas do deserto do Saara, com sua capital na lendária Timbuktu (ou Tomboctu, ou ainda Tumbuktu). “Lenda” por assim dizer, pois a cidade existe mesmo, e um dia eu hei de visitá-la (quando os jihadis diminuírem a matança por lá).

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A figura de Mansa Muça no ilustrado Atlas Catalão (1375), que o descrevia como “soberano da terra do povo negro“. E continua: “Este rei é o mais rico e nobre daquelas terras devido à abundância de ouro que é extraído de suas terras.

Com a conquista árabe de todo o norte da África nos séculos VII e VIII, os povos aqui se islamizam, e com isso precisam cumprir o preceito de peregrinar a Meca pelo menos uma vez na vida. Mansa Muça então se fez famoso no Mediterrâneo por levar tanto ouro por onde passava com suas caravanas que chegou a desvalorizar o metal.

Muça é Moisés em árabe, e vale lembrar que o islamismo segue a mesma base histórica e mitológica do judaísmo e do cristianismo.

Você imaginem os portugueses e demais europeus se debruçando sobre esse Atlas Catalão — feito pelo geógrafo espanhol judeu Abraão Cresques — após 1375 e babando sobre as possibilidades de chegar até toda aquela fonte de ouro.

Não tenha a menor dúvida de que todos estes dizeres, rumores e saberes incentivaram — e muito — o esforço português e italiano de navegar à costa tropical da África e encontrar o que havia lá. 

Querem dar uma olhada no Atlas Catalão de 1375 por curiosidade? Ei-lo aí abaixo. De uma época em que os povos latinos do Mediterrâneo eram de longe os mais avançados da Europa.

Europe Mediterranean Catalan Atlas mapa
O dito Atlas Catalão, cuja autoria é atribuída ao espanhol judeu Abraão Cresques e datado de 1375, com o mundo que era conhecido aos europeus na época. Note a rota transaariana, do ouro que saía de algum lugar na África Ocidental até a Arábia.

Chegam os portugueses à casa do mansa

O ano é 1445, exatos 70 anos depois de o Atlas Catalão começar a mexer com a cabeça — e a ambição — dos navegantes europeus. Não se sabe ao certo se o português Dinis Dias ou a dupla italiana Antonio da Noli (genovês) e Alvise Cadamosto (veneziano) foram os primeiros a aparecer cá por estas bandas. Os italianos, de toda maneira, navegavam a serviço do Infante Dom Henrique de Portugal, que no século XV teve a sagacidade de aportar todo o conhecimento renascentista que os italianos tinham a emprestar.

Algum deles viu esta foz do caudaloso rio esverdeado que eu veria meio milênio depois e julgou que esta terra era, afinal, a morada dos mansa, a Casamansa. (A saber, os portugueses também nomearam Casablanca no Marrocos, que era Casabranca e só passou ao espanhol Casablanca durante a União Ibérica, quando em 1580 Portugal cai sob a monarquia de Castela até 1640.)

Vale dizer que os portugueses não encontraram todo o ouro que acharam que encontrariam. Acabaram traficando gente, como a História nos conta, e sugando ouro — e prata — das veias da América Latina em seu lugar.

Instalariam-se aqui por séculos junto com a vizinha Guiné-Bissau, que permaneceria colônia portuguesa até 1975. Os portugueses fundaram Ziguinchor — hoje a maior cidade da Casamansa —, mas tiveram que ceder toda esta região aos franceses em 1886. Ainda hoje, a gente da Casamansa se sente mais conectada aos vizinhos da Guiné-Bissau falantes de português, que foram colônia dos lusos até 1975 (!), que com seus compatriotas senegaleses do norte do país. Venhamos conhecer.  

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Vamos à Casamansa neste voo doméstico da Air Senegal?

Prólogo: Tomando a estrada para um voo doméstico

Saíra eu de Saint-Louis, a antiga capital colonial senegalesa, rumo ao aeroporto de Dakar — que fica bastante fora de Dakar — para tomar um voo até Cap Skirring, o aeroporto funcional da Casamansa. Falarei-lhes mais sobre ele a seguir.

Notem, neste trajeto, como este Senegal “principal” é diferente do que veremos a seguir na Casamansa.

O chapa que veio me levar até minha acomodação em Saint-Louis para o traslado de suas 3h30 até o Aeroporto Blaise Diagne era um cidadão de seus quase 30 anos. Conversava pouco, mas era afável, desses rapazes de 28 anos que mais observam que falam. Íamos no ar condicionado, com conforto. (O serviço me custou 40.000 francos, o equivalente a 60 euros. Caro, mas saiba aí que um mero táxi do aeroporto de Dakar até o centro da cidade já custa 25.000, portanto mais que a metade disso.)

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A estrada à saída de Saint-Louis, Senegal. O capim seco em meio aos arbustos.
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Melancias sobre aquele chão arenoso na beira da pista.

Num dos poucos momentos em que se pôs a conversar, o motorista me falou que num certo lugar dali a pouco seríamos provavelmente parados pela polícia. Solicitou que eu dissesse ser um conhecido dele em vez de passageiro pagante.

Indaguei o porquê, e ele explicou que se falasse que era um amigo próximo, eles perguntariam demais coisas para saber se era verdade; e se eu abrisse o jogo para dizer que era uma corrida contratada, os policiais o extorquiriam querendo uma fatia do que ele estava recebendo. (Ô coisa cansativa é a polícia na África…).

A África nesse sentido parece a Idade Média europeia — ou algum planeta distante de Star Wars governado pelo império. Não há Estado de bem-estar social, tudo é na base do “cada qual que se vire”, as pessoas vivem quase em estado de natureza, como dizia Hobbes. As atividades econômicas são informais, não-reguladas, e o governo só existe para impor uma segurança abusiva e desregrada garantindo os interesses de quem governa. Acabou. (A diferença entre uma blitz da polícia na África ou daqueles soldados do Império Galáctico é meramente estética.)

Por sorte, a polícia hoje estava ocupada demais com outros veículos, e não nos deteve. Segundo meu motorista, costumava haver várias dessas blitz ao longo da estrada, até que certa vez detiveram um ministro e, sem o reconhecer, deram de gostosos para cima dele. Ele mexeu os pauzinhos e mandou acabarem com aquela palhaçada — não acabou, mas diminuíram. Vida que segue.

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Na estrada saindo de Saint-Louis. Não há acesso à saúde pública aqui (é preciso pagar, o que a torna inacessível à massa de pobres), e a educação estatal é bastante limitada fora de Dakar. As crianças dependem de escolas religiosas, em geral islâmicas. A presença do Estado quase que se limita a certa infraestrutura de transporte e forças de segurança — como na Idade Média. É assim que o mundo deixa a África viver.
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A beira da pista entre Saint-Louis e o Aeroporto de Dakar, coisa de 3-4h de viagem pelas zonas áridas do Senegal. (Uma versão mais “mundo real” de Tatooine, o planeta arenoso de Anakin e Luke Skywalker, com pessoas que passam penúria de verdade.)

No caminho, detivemos-nos afinal para comer. Meu voo seria à tarde, e almoçar era preciso. Não havia muitas opções exceto uns Chicken Fast-Food (versões genéricas do KFC) em postos de gasolina.

Paramos em dois, uma frustração atrás da outra. Mais da metade do que consta no cardápio “não tem”, e os vendedores são de tal modorra que parecem cansados demais para lhe dirigir a palavra. Você pergunta se tem isso, não; aquilo, não — só está saindo X e Y.

Alguém chega depois de você, passa desavergonhadamente na sua frente, e o atendente atende. É uma muvuca que faz o Brasil parecer a Suíça. Acabamos optando por pegar bobagens industrializadas na lojinha do posto.

O que me chamou a atenção foram uns cocos de médio tamanho que eu vi em pilhas na beira da pista, ao que tomamos novamente rumo, e que o motorista me disse que não eram cocos. Como assim não são cocos?

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Como assim não são cocos?
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Olhe a prova.

O motorista perguntou se eu queria parar para experimentar um, ao que naturalmente disse que sim.

Paramos então pra ver umas vendedoras de artesanias com suas pilhas de “cocos” na beira de estrada. A propósito, as artesanias aqui tinham preços bem melhores que na cidade — além de coisas mais autênticas, como artesanato em palha em vez das contas plásticas ou pulseiras asiáticas que vi em Gorée e Saint-Louis.

Resolvi também experimentar daquela fruta, afinal — que, buscando assim na memória, eu depois de comer tive a impressão de já ter provado dela em Angkor Wat, no Camboja

A bem da verdade, a fruta não é esse balacobaco todo. Parece que você está comendo soro fisiológico, onde o punhado de açúcar não foi muito generoso.

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Paradas na beira da pista, entre não-cocos e artesanias de palha. (Aqueles sacos de folha eles me falaram o que era e eu esqueci.)
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A beleza do artesanato de palha desta região. Tipicíssimo do Senegal.
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As simpáticas vendedoras. (Barganhe.)
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Já a fruta não vale muito o seu tempo. Tem uma textura de chuchu em bagas, com sabor de soro fisiológico em que o açúcar passou longe.

De avião para Cap Skirring na Casamansa

Cap Skirring era o único aeroporto em funcionamento na Casamansa quando eu vim. Pode ser que isso mude, pois Ziguinchor — a maior cidade da região — em tese tem um aeroporto, mas este estava desativado. Era para onde eu ia, mas voar primeiro a Cap Skirring se mostrou necessário. Trata-se de uma área de praias, quase não-urbanizada.

Cap Skirring está cotado pelo guia Lonely Planet como a principal atração da África Ocidental inteira — um exagero sem nome. As praias podem até ser boas, mas há muito mais aqui na região que isso. Além do mais, quando eu cheguei, estava tudo nublado.

As pessoas no Aeroporto de Dakar pareciam eu na escola em Feira de Ciências, cinco pessoas se batendo atrás do balcão para atender quem chega e ver quem faz o que. Porém, tudo transcorreu com tranquilidade — pelo menos até a aterrissagem em Cap Skirring. 

Em tese, eu permaneceria uma noite neste lugar praiano até zarpar — de alguma forma — para Ziguinchor (a 1h dali) na manhã seguinte.

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Vamos entrando.
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Sobrevoando o litoral da Casamansa num fim de tarde nublado. (Desculpe-me, Lonely Planet, mas esta não é a atração n.1 de África Ocidental inteira. Vocês beberam.)
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Bem-vindos à rod… ao Aeroporto de Cap Skirring, Senegal.

Aterrisamos no pequeno — mas arrumadinho — aeroporto de Cap Skirring, onde deveria ter alguém me esperando, só que não.

Avistei, pela saída lateral, aqueles grupos de cinco cadeiras grudadas umas nas outras — igual em sala de espera — sobre a terra debaixo das árvores. Curioso.

Toma-se um breve caminho de 50m, e já se está à rua, à terra, onde taxis vorazes feitos moscas na carne pulam em cima de você e só faltam lhe pegar pelo braço. Eram todos homens jovens com ares de pouca outra ocupação além dessa.

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Eu garanto que você nunca esperou por alguém no aeroporto assim, ao ar livre, sob a sombra de uma árvore.
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Vamos à rua! Você pega a sua bagagem e já sai assim a pé por este caminho de terra pelos portões. Bem-vindos à Casamansa!

Em meio aos ansiosos taxistas, eu rodava e virava com a mochila nas costas a ver se finalmente encontrava a pessoal da pousada de Cap Skirring que deveria estar à minha espera. Que nada. 

Os taxistas já me disputavam, um já apontando “o meu táxi é aquele ali” (sem nenhum sinal formal de táxi), e outros com aquele olhar e o joinha de “lembra que eu falei com você primeiro“. Sabe-se lá Deus que preço exorbitante iriam tentar extrair.

Naquele afã, 10 minutos já de busca em vão pela pessoa, eu via o lugar ficando rarefeito conforme todos que vieram no voo comigo iam tomando cada um o seu rumo. Entreouvi alguém comentar ao telefone que ia a Ziguinchor, e fiquei a me perguntar como. Vi, entretanto, duas vans marcadas com o nome da companhia aérea (Air Senegal) no pára-brisa, e descobri que se tratava de um transfer gratuito (une navette gratuite caso você precise se comunicar em francês aqui) até o Aeroporto de Ziguinchor, já que este estava fora de funcionamento.

Sabe do que mais? Vombora. Não dei satisfação a ninguém, e fui entrando na van junto com os demais — a minha bagagem a última ser carregada, o motorista com aquele leve ar surpreso de “ah, você também vai”. Vou. Os taxistas me olhavam com aquele ar de “Ô, você vai embora?“. Tchau.

Não ficou nenhum passageiro ali naquele cair da tarde nublada em Cap Skirring. Em Ziguinchor eu veria como me virar, já que minha reserva era só na noite seguinte.

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Passando pelo centro de Cap Skirring.
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A paisagem na estrada. Nota-se uma vegetação bem mais verdejante aqui na Casamansa que na parte norte do Senegal. O país está claramente numa zona de transição entre o semi-árido das bordas do Saara e a África tropical úmida. (No reflexo, você pode até ver Navette Gratuite com as siglas dos dois aeroportos, CSK e ZIG.)
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Glup. Anoiteceu.

Depois de 1h e pouco de estrada, chegávamos a Ziguinchor. Uma estrada simples, mas asfaltada e até digna.

Por sorte, o desativado Aeroporto de Ziguinchor se revelou bem mais tranquilo — sem pressão de taxistas. Havia um ou outro, mas distraídos em meio às dezenas de pessoas que desembarcávamos. Eu estava livre na noite de Ziguinchor. E agora, José?

Caminhei corajoso pela rua de chão à noite na esperança de que alguém fosse me atender na casa da Tata Eleonore, onde eu tinha reserva para a noite seguinte e apesar de o check-in ser até as 18h. Chegando ao endereço — que eu estrategicamente havia selecionado por ser a uma curta distância do aeroporto de mosca —, dei com uma grande propriedade murada, quase um casarão, só que de um andar só. Havia um número de telefone na porta, e por providência atendeu-me Edouard.

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À noite em Ziguinchor, Casamansa. Do aeroporto a pé até a acomodação.

Ziguinchor, a maior cidade da Casamansa

É claro que há desde muito há povos nativos nesta região, mas Ziguinchor se estabelece como comunidade e se pronuncia — para se tornar a maior cidade da Casamansa — como uma comunidade de lançados portugueses a partir to século XVII. 

Lançado aí nada tem a ver com lança, mas com lançar-se — eram os portugueses aventureiros que, degredados ou não, vinham a fazer comércio ou tentar a sorte nas terras que Portugal ia contactando além-mar. Como não traziam mulheres brancas consigo, começava aí a famosa miscigenação (que os modernos hoje generalizam achando que tudo foi resultado de estupros).

Vale lembrar que o próprio nome brasileiro começou como uma alcunha quem ia se lançar assim no Brasil, mas a coisa aqui na África começou antes, ainda no século XV. Em 1609, morreria aqui em Ziguinchor o frei jesuíta João Delgado, e a 1690 os portugueses já tinham erigido a Fortaleza de Nossa Senhora da Conceição nestas bandas.

Estas posses portuguesas neste lugar estratégico da margem sul do rio Casamansa estavam vinculadas à Capitania de Cacheu, sediada na atual Guiné-Bissau — a menos de 100 Km daqui.

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O belo e caudaloso rio Casamansa, onde os portugueses navegaram desde o século XV — e, evidentemente, onde os próprios africanos navegam há muito mais tempo.
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O rio que banha Ziguinchor, e ali o belo povo preto com suas mui coloridas vestes.
Cacheu e Ziguinchor no mapa do Senegal
Olhe ali Ziguinchor na margem sul do rio Casamansa. O pino vermelho está em Cacheu, antiga sede da capitania, na atual Guiné-Bissau (que Portugal preservou como colônia ator 1975 e que fala português).

Edouard atendeu-me naquela noite em Ziguinchor, e se mostrou um chapa tranquilo e alegre, rapaz de seus 30 e poucos anos, ativo, atilado, e sem a reserva que eu havia visto nas pessoas da parte norte do Senegal. 

Ele revelaria-se jola, uma das principais etnias aqui da Casamansa. Não que você perceba com os olhos — a menos que tenha olhos muito bem treinados. Falou-me que seu idioma nada tem a vez com o wolof dominante lá em Dakar e Saint-Louis. “É tipo a diferença entre francês e japonês“, sugeriu.

A Casamansa se revelou mesmo diferente. As pessoas aqui parecem ter bem menos daquela empáfia dos homens árabes — embora você também encontre senegaleses do norte nestas bandas. Aqueles lá parecem vestir o traje muçulmano (o djelabá com o chapeuzinho), e aquilo parece lhes conferir uma presunção de superioridade, de status superior (ou eles assim o creem), uma enfatuação como se sua religião lhes conferisse uma dignidade maior — talvez o equivalente ao ar que certos fundamentalistas brasileiros adotam, sobretudo quando põem ternos e gravatas. É curioso. Não é uma religiosidade de humildade, evidentemente.

Já aqui, eu caminharia pelas ruas de Ziguinchor sem ninguém me encher o saco. As pessoas são muito mais sossegadas, lembrando mais o que eu havia encontrado no Benim e no Togo, ainda que um pouco mais soltas. Eu breve sairia para tomar um sol, ver a cidade e resolver coisas, mas não sem antes tomar café na manhã seguinte.

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“Composto lácteo”, margarina com gordura trans, todas estas obras gloriosas da indústria de “alimentos” são empurradas à toute force aqui na África, entre pessoas que geralmente nem têm formação nem dinheiro pra discernir muito.
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Eu optei pelo café da manhã raiz que Edouard pegou para si — uns sanduíches de macarrão com molho apimentado comprados ali na esquina. Havia também de feijão e de lentilhas, que eu provaria no dia seguinte. O povo, afinal, tem certo tirocínio, mas não deixa de estar acossado por uma voraz indústria de “alimentos” das multinacionais gulosas pelo mercado africano.
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Minha rua — e a esquina da mulher dos sanduíches.

Voltas pela cidade

Saí ali e tomei um táxi até o centro de Ziguinchor — que não é lá uma cidade muito pequena. A saber, os táxis aqui cobram 500 francos (quase 1 euro) para qualquer lugar dentro da cidade. (Turista, se bobear, paga 1000 francos.)

Parecia que eu estava numa versão mais pobre de Feira de Santana ou de outro lugar do interior do Norte-Nordeste do Brasil — aquele misto de vegetação exuberante e ruas de chão, gentes de pele escura a passar em sua maioria a pé. Ambulantes a perambular, e camelôs a vender coisas da China.

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Rótula no centro de Ziguinchor, Casamansa, com seus carros (velhos), bicicletas, e motociclistas (todos sem capacete).
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Mesquita em Ziguinchor.
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Ambulante com suas artesanias pela rua.
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Isto bem que poderia ser em Feira de Santana, na Bahia.
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Voltas por aquele chão e sob o sol do fim da manhã.

Eu lamento dizer que não resta praticamente nada aqui do que os portugueses erigiram. Boa parte das construções iniciais foram de madeira, e o Forte de Nossa Senhora da Conceição (coitada, com seu nome metido nisso) virou o Presídio de Ziguinchor, que se degradou com o passar do tempo.

Em 1886, os franceses — então bem mais fortes — se impõem sobre Portugal e lhe tomam este pedaço de terra que é hoje a Casamansa, desconectando-o da Guiné-Bissau, sua vizinha cultural que permaneceu sob os portugueses.

Não há o que ver aqui em termos de monumentos, é a verdade, mas a visita não deixa de ter seu lado humano, social, da descoberta das semelhanças com as partes mais africanizadas do Brasil.

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Estas ruas poderiam ser no Brasil.
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Quem se destaca é a senhora com suas africanas vestes neste ambiente tropical parelho ao nosso Nordeste.
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Vendedora de verduras no centro de Ziguinchor. Suas roupas tradicionais indicam que estamos na África.
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Banca com produtos vários — feijões, amendoim, castanhas-de-caju, azeite de dendê, e algo amarelo que não sei se é manteiga de garrafa (poderia ser tucupi, mas não me consta que o façam por aqui, ainda que comam mandioca).

A saber, tanto o amendoim quanto a castanha-de-caju são plantas da América do Sul, não da África. O intercâmbio vegetal e gastronômico foi de mão dupla, com o azeite de dendê, o quiabo, o inhame e outras plantas vindo desde a África ao Brasil.

Acabei me detendo para comprar uns sapatos feitos à mão com um pitoresco senhor wolof vindo do norte do país, até que depois me dirigi à beira do rio Casamansa, que é o que há de mais cênico para se ver aqui em Ziguinchor. 

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Com o formoso vendedor de sapatos e cintos do norte do Senegal cá na Casamansa. Vê-se o seu traje mais adequado ao clima árido que a estes trópicos úmidos de cá. Seu filho era aprendiz e ajudava na loja.
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Moça de reluzente pele negra a olhar o rio. Eita cor bonita.
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As embarcações chegam plenas de coisas e de gente vinda do interior transportando mercadorias e pertences. Dessa grande canoa desembarcaram umas 20 pessoas cheias de sacolas e volumes vários.

A hora do almoço

No Senegal como um todo, as pessoas só costumam almoçar a partir das 13h — e quase sempre umas 14:00-14:30. Cheguei a vários restaurantes onde me disseram que a comida não estava pronta ainda e só o estaria às 13h.

Foi esse o caso aqui, onde enrolei um pouco na rua até poder experimentar um etodjey (às vezes escrito étodié ou dito ainda etodjai), prato típico da Casamansa feito com folha de mandioca cozida com azeite de dendê, amendoim e peixe defumado, e que se come com arroz. Eita! 

O aspecto lembra o de uma maniçoba, também feita com folhas de mandioca. Não acho que historiador nenhum tenha a resposta definitiva se a ideia veio dos índios e eles aqui adotaram ou o contrário; sei que os ingredientes se encontraram nestas terras banhadas pelo Atlântico sul.

O gosto do azeite de dendê com o amendoim faz você se lembrar de um vatapá baiano, mas é diferente, sem a textura grossa dada pela farinha. Pelo contrário, é fino, mesclando-se com o arroz de grãos curtos que eles usam aqui.

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Estão servidos, senhoras e senhores? Etodjey é o menu du jour aqui na Casamansa hoje.
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Etodjey é um prato típico da Casamansa feito com folhas de mandioca cozidas com amendoim e pedaços de peixe no azeite de dendê, e que se come com arroz. Uma delícia, com os pedacinhos crocantes do amendoim misturando-se ao sabor do azeite.

Uma curiosidade — ou melhor, duas — foi que exceto por uma turista europeia acompanhada de um homem africano, todos os clientes eram homens — tudo gente local ou aparentemente local, exceto por mim. A outra é que eles aqui não têm cerimônia em puxar uma cadeira na sua mesa e se sentar ali sem necessariamente lhe fazer caso. Não há essa concepção de aquela ser a sua mesa e de sentar-se ali exigir permissão. É mais como em refeitório, onde é normal se sentar em lugar vago, que logo se supõe disponível.

Talibê, os Capitães de Areia do Senegal

As tias que regiam o lugar foram simpáticas, perguntando se eu gostei. Sim. O que eu não gostei foi de ver, mais uma vez, os tais Capitães da Areia que circulam em bandos por todas as cidades senegalesas, incluso aqui. São grupelhos de meninos pedintes que passam com seus baldinhos mendigando — e que a esta altura, depois de um tempo no país, eu aprendi do que se trata.

Chamam-lhes talibê, meninos de 5 a 15 anos que frequentam escolas corânicas — colégios internos islâmicos só para homens, onde estudam o Alcorão de manhã cedo sob um tutor, passam o dia na rua atrás de doações, e à noite retornam para mais aulas e para dormir. 

São uma instituição aqui no Senegal, sobretudo com a ausência do Estado como fornecedor de uma educação pública laica. Perguntei aos senegaleses — que a esta altura veem isso como algo normal —, e me disseram que às vezes as mães nem têm escolha, pois os pais querem pôr os filhos nesse regime e, neste patriarcado, eles é que mandam.

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Talibê em Ziguinchor, meninos que mendigam pela rua atrás de comida ou outras doações diariamente enquanto frequentam colégio interno islâmico no Senegal.
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Talibê em Ziguinchor, Senegal. Passam com suas tigelas mendigando como monges, só que com baldinhos ou vasilhas plásticas sem tampa.

O senegalês que me levou de Saint-Louis até o aeroporto tentou dourar a pílula, dizendo que lá na escola islâmica os meninos aprendiam a disciplina, sobre como se comportar, etc. Talvez, mas não mudou minha reprovação completa a esse sistema. É perturbador.

Depois de presenciá-los aqui sem saber do que se tratava foi que fui ler a respeito, e na mídia internacional há bastante coisa, seja da Anistia Internacional, outras organizações de direitos humanos, e observadores diversos. Separei alguns links abaixo que você pode ler em espanhol ou com a função de tradução automática do Google Chrome, se desejar.

Das coisas que acontecem no mundo e que não viram notícia, enquanto estamos ocupados lendo quem marcou o terceiro gol do time X, ou o último divórcio de celebridade, ou sobre inteligência artificial.

Claro que não deve ter lhe escapado que talibê soa parecido com Talibã, e isso é porque ambas as palavras etimologicamente provêm do árabe talib, que quer dizer estudante.

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Tô vendo o estudo. Menino talibê na porta de uma mercearia com seu baldinho em Saint-Louis, Senegal. Muito melhor estava o aprendiz de sapateiro trabalhando com o pai que mostrei acima.

Voltando a Ziguinchor, à saída do restaurante eu vi alguém despejar o resto da comida de seu prato na vasilha de uma criança, que levou. Toquei meu caminho. A saber, cheguei a perguntar — ainda no começo da minha estadia no Senegal — a um desses meninos por que ele não estava na escola, como comumente se faz no Brasil. Aqui, ele só me olhou com o olhar perdido, ao que alguém depois disse que, sim, eles vão à escola — esse colégio interno que é externo e que os põem pra mendigar nas ruas.

Adieu, Senegal

Se você se pergunta o que vim fazer em Ziguinchor, digo-lhe que foi aos poucos migrar desta África Ocidental francófona à África Ocidental lusófona. Brasileiros ainda necessitam de visto para ir até a vizinha Guiné-Bissau, e não há forma mais fácil de obtê-lo que aqui, no Consulado da Guiné-Bissau em Ziguinchor, onde o emitem para você em 10 minutos.

Essa foi minha missão principal aqui, e já no dia seguinte eu partiria por terra para Bissau — aventura que vem em seguida.

Vi o Senegal de norte a sul na sua diversidade, coisas de que gostei e coisas que me fizeram clamar por Allah. A Deus então, Senegal. Até quando Ele quiser que eu volte. 

Mairon Giovani
Cidadão do mundo e viajante independente. Gosta de cultura, risadas, e comida bem feita. Não acha que viajar sozinho seja tão assustador quanto costumam imaginar, e se joga com frequência em novos ambientes. Crê que um país deixa de ser um mero lugar no mapa a partir do momento em que você o conhece e vive experiências com as pessoas de lá.

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