Cesária Évora (1941, Mindelo) é daquelas figuras simples que encantam. Quem já a conhece sabe disso. Expressão mais famosa da música cabo-verdiana, ela só ganhou fama internacional depois de madura. Na França, ficou apelidada de “a diva dos pés descalços“, pelo hábito de se apresentar assim no palco.

E como apresentar Dona Cesária, a mais famosa artista de Cabo Verde, sem mostrar da sua música? Impossível.
A música de Cesária Évora é de estilos autênticos cabo-verdianos — as chamadas mornas e as coladeiras. As primeiras são lentas e as segundas, mais animadas. Não usasse palavras da língua crioula cabo-verdiano, seria tomada por artista latino-americana ou caribenha. A veia musical ibérica é evidente.
Como expliquei na postagem da Cidade Velha, Cabo Verde é fruto da mistura de portugueses e africanos neste arquipélago que era até 1460 desabitado — um Novo Mundo sem indígenas.
Historicamente, este país se fez na mesma saga que transformou a América Latina no que ela é hoje — com suas mazelas, mas também com sua forte cultura mestiça. Fosse este arquipélago um pouquinho mais para oeste, era capaz de ter ficado independente junto com o Brasil lá em 1822.
“Sodade“, a famosa palavra supostamente intraduzível do português, aqui na sua pronúncia cabo-verdiana — à mesma fonética também usada pelo poeta cearense Patativa do Assaré no Brasil — é uma das suas canções mais famosas. Se quiserem, tal ênfase na saudade funciona como teste de DNA cultural para provar que estamos mesmo no mundo cultural lusófono.
Mindelo, lugar de origem
Bem-vindos à Ilha de São Vicente, senhoras e senhores, outra das 10 que formam Cabo Verde.
Diz a lenda — e disse Nilza, minha astuta guia na visita à Cidade Velha — que destas bandas deve ter saído uma tataravó minha, cabo-verdiana emigrada ao Brasil. Uma tia avó minha, que conheci e que diziam ser a cara repetida dessa avó dela, tinha bem o perfil comum desta parte de cá do país: cabelos ondulados, traços portugueses finos e pele escura — aquele famoso tom moreno jambo. Eu nunca soube de qual ilha ela veio, mas olhando uma foto Nilza foi categórica.

As pessoas aqui em São Vicente, como na adjacente Ilha de Santo Antão, têm traços africanos menos marcados. Não há ninguém que seja preto nem branco: são todos mestiços.
Porém, não leve sempre à risca aquela alcunha da pessoa “tipo Cabo Verde”, de pele escura e cabelo liso. Na verdade, eu vi bem pouca gente aqui de cabelo realmente liso. A maior parte têm cabelos cacheados. E, sim, há pessoas de biotipo mais africano, embora estes quase sempre sejam imigrantes da Ilha de Santiago.
Foi o percurso que eu também fiz. Lá visitei a histórica Cidade Velha (Patrimônio Mundial tombado pela UNESCO) e Praia, a capital cabo-verdiana. Agora conheceria Mindelo, tida popularmente como sua capital cultural. É a terra natal de Cesária Évora e nascedouro de muitos artistas cabo-verdianos. Como na Bahia, dizem haver algo na água.

Chegando numa noite ao Mindelo
Nunca faz realmente frio no Mindelo — ou em quase lugar nenhum aqui de Cabo Verde —, então quando eu desci no Aeroporto Cesária Évora naquela noite, fazia uma brisa fresca daquelas de verão no litoral. Seus 28 graus, aquele calor pero no mucho que parece ser uma constante neste arquipélago. Um clima agradável, portanto.
Apanhou-me Fredy, um rapaz negro com ares de motorista de Uber — ainda que estivesse dirigindo um táxi. Disse-me que era uma pessoa “da noite” e do mundo dos jogos online na internet, onde disse conhecer bem “a comunidade brasileira”.
Não demoraríamos mais que 15 minutos nas estradas vazias desta Ilha de São Vicente até chegarmos à animada pousada no centro do Mindelo. A esquina era como um oásis de música e sociabilidade numa cidade que de outra maneira parecia plenamente quieta.

O lugar — um casarão antigo à moda portuguesa como os que há no Brasil — era bar-restaurante com música ao vivo no andar de baixo e pousada no andar superior. (Após anos de árduo treinamento em Feira de Santana, música já não me impede de dormir — acho até que embala o sono). Fredy estacionou o carro, e se pôs a chamar alguém lá de dentro para vir me abrir a porta externa que dava acesso a uma escada para o andar superior.
Foi aí que veio me falar um rapaz escuro meio baixinho e que ia passando na rua, de colete laranja daqueles fluorescentes do tipo “obras na pista”. Perguntou meu nome, quis saber se era a minha primeira vez em Mindelo, e disse que se chamava Sidney — e que gostava muito do Brasil. Seu tom de voz era de quem já tinha tomado umas, o que não tornava sua declarativa menos sincera. “Eu trabalho no porto”, disse ele, que parecia carregar consigo aquele colete laranja como uniforme de dignidade.
Despedi-me, ao que Fredy voltou ao carro e Sidney sumiu no escuro rua à frente.
Eu ficava novamente a sós na ampla pousada que tinha ares de casa colonial portuguesa, daquelas com relógio de pêndulo e assoalho de madeira.


Voltas pelo Mindelo, noite e dia
Noite
Cheguei, comi algo ali mesmo à noite enquanto ouvia música, conversei brevemente com o altivo rapaz português dono do estabelecimento, e saí a dar umas voltas pela noite do Mindelo.
Mindelo à noite tem uma certa fama de ser animada, é o que lhe dirão os guias e materiais de divulgação, mas eu francamente achei a cidade bem quieta — a me lembrar de São Tomás de Trás ou outra daquelas cidades cenográficas de novela da Globo. Vi a hora de o Cadeirudo aparecer por uma daquelas ruas bonitinhas, coloniais e já vazias ainda que fosse apenas 21:30.
Há uns poucos lugares, uma meia dúzia de restaurantes com música ao vivo, que ficam picados de gente, mas o restante da rua é um ermo. Feito cães à beira da mesa à espera de alguma comida, os coitados pedintes e vendedores de artesanato aguardam do outro lado da rua ou bem às portas, olhando cada turista que entra e sai, e lhes pedindo algo. Há pobreza em Cabo Verde, ainda que não seja a miséria observada no Senegal ou na Guiné-Bissau.
Ao contrário do Brasil com suas típicas mesas à calçada, aqui tudo parecia ocorrer do lado de dentro, como se os restaurantes fossem vivazes reuniões secretas que haviam deixado a cidade vazia.



Dia
Eu vinha ao Mindelo com dois objetivos. Um era fazer a devida peregrinação a esta terra de origem de Cesária Évora, com visita à sua antiga casa, hoje um museu.
O segundo objetivo era ir desde aqui até a formosa Ilha de Santo Antão logo, a uma curta distância de ferry. É das raríssimas conexões inter-ilhas que você pode fazer por mar em Cabo Verde, todo o mais requerendo voos. Como Santo Antão não tem aeroporto (ainda que seja maior), é preciso voar aqui ao Mindelo nesta Ilha de São Vicente primeiro.
Mindelo — ou a Ilha de São Vicente em geral — não é um lugar terrivelmente turístico, mas vale dispor-se uma manhã para dar umas voltas e conhecer algo.


Esse aí acima, de costas para nós todos e de frente para o mar, é Diogo Afonso, o descobridor desta Ilha de São Vicente no século XV. A marina, como vocês podem notar, hoje é repleta de barcos e barquetes de passeio que circulam por esta costa rugosa. O lugar é pitoresco. Parece até que você está numa parte ligeiramente deslocada do Caribe — um Caribe lusófono, meio diferente.
Como eu ainda hoje à tarde tomaria o ferry para a vizinha Ilha de Santo Antão, tratei de ser prudente e ir comprar logo as minhas passagens. Há duas empresas: a Nôs Ferry e a CV Interilhas. Não há classes. São duas companhias diferentes, com dois guichês diferentes, mas com preços e horários quase idênticos. Nos sites oficiais você encontra seus horários de partida, em geral duas vezes ao dia. Porto Novo é o atracadouro de chegada na Ilha de Santo Antão. Em média, uma passagem só de ida custa 800 escudos (R$ 40) para uma viagem que dura cerca de 1h.
Há um sistema de vendas online, mas ele nem sempre aceita bem os cartões de fora de Cabo Verde. O mais habitual é vir comprar as passagens pessoalmente algumas horas antes da partida. Formalmente, a CV Interilhas diz que você precisa adquirir as passagens ao menos 90 minutos antes da hora de saída, mas não sei se eles realmente aplicam isso.
É fácil achar o porto de onde todos esses ferries zarpam — até os doidos da rua lhe ensinam o caminho. Apresente-se 30 min antes para o embarque, e traga o passaporte tanto na hora da compra quanto para a viagem.



Como eu não sou tão rato de praia assim, optei por dedicar a manhã que eu tinha a ver um pouco mais de perto a herança colonial do Mindelo e a visitar o Núcleo Museológico Cesária Évora — o nome pomposo que deram ao pequeno museu do que era sua casa.
Mindelo traz um forte ar de cidade do interior à moda antiga. É pequena, com meros 70 mil habitantes, e numa manhã você vê tudo.


Embora não haja “pontos turísticos” propriamente, uma voltinha para contemplar o casario colonial da cidade é tempo bem empregado.




Uma curiosidade é que, como esta é a segunda maior cidade do país e tida como o seu coração cultural, Mindelo quase se tornou a capital do Cabo Verde independente em 1975, mérito que terminou ficando com Praia, que é a maior cidade.


Cesária Évora: Legado no Mindelo
A obra de Cesária Évora está aí para o mundo ouvir. Uma simples busca pode entregá-la aos seus ouvidos. O que se encontra aqui no Mindelo é um pouco mais da pessoa por detrás da artista. Cesária Évora faleceu em 2011 aos 70 anos, em grande parte por consequência de uma vida que não foi frugal em matéria de álcool e cigarro, mas sua obra vive.

Cesária — que, como disse uma poética amiga minha, de tão boa deveria se chamar parto natural — pertenceu àquela velha guarda de artistas da noite que se fizeram no chão dos bares e só muito posteriormente ficaram conhecidos na mídia, como ocorreu também aos saudosos do Buena Vista Social Club. Tal como estes cubanos, Cesária sabia embalar a sentimentalidade ibérica com o toque mágico de música e ritmos africanos.
Ela começou a cantar em bares ainda aos 16 anos, Cabo Verde ainda colônia portuguesa. Seu pai, um fazedor de instrumentos, falecera quando ela tinha sete anos. Deixou ali como semente o gosto pela música na criança. Cesária foi posta num orfanato, onde não se adaptou, de lá sendo levada a viver com a avó. Acabou caindo na noite, nos bares de marinheiros e prostitutas da zona baixa do Mindelo.
Dizem que Cesária Évora, muitas vezes, sequer era paga pelas apresentações — recebia em bebidas e cigarros. Além do grogue (aguardente de cana, a cachaça aqui de Cabo Verde), ela era grande apreciadora de conhaque.
Tudo isso ajudou a formar uma mística de pessoa “da vida” tão bem-quista aos franceses, os responsáveis por levá-la ao estrelato internacional.

Cesária chegou a ter muitos homens, mas nenhum ficou com ela. Três filhos ela teve, o primeiro já aos 18 anos. Os pais partiam sem dar notícias, abandonando-a. A sua escora foi a mãe, que viveu até 1999, e cuja partida Cesária disse ter sido o baque mais forte da sua vida.
Tinha um espírito quieto e leve, apesar de tudo. Alguns dizem até que ela era algo tímida. Divertida, quando via alguma briga ou bate-boca na rua, pedia que parassem o carro para ela poder ver o barraco.
Foi uma boa avó, que insistiu para que seus netos estudassem e não tivessem que passar pelas dificuldades materiais que experimentou. Ela, que de início tanto em Lisboa quanto em Paris teve contratos rejeitados por ser “velha e vesga”, diziam os produtores, acabaria vencendo o Grammy internacional de 2004 e o seu equivalente francês, o Victoire de La Musique, antes de aos 68 anos receber a honra ao mérito da Légion d’Honneur na França.
Hoje, você pode visitar tanto a casa que ela recebeu do governo (onde não viveu, mas que irá confundi-lo na hora que procurar pela casa dela no Google) quanto aquela onde realmente habitada. Esta última atende pelo nome pomposo Núcleo Museológico Cesária Évora, ainda que seja uma casa simples e de pouca evidência. A entrada custa o equivalente a 3 euros.







Rumando para o barco
Eu já estava praticamente arrumado para zarpar quando vim aqui a este núcleo museológico na Rua Guerra Mendes. Daqui saí e voltei à pousada, a pegar minha grande mochila, e dali a ir almoçar antes de pegar o barco das 14h.
Já com a bagagem, eu acabei parando para almoçar num restaurante destes que servem prato feito em centro de cidade — a mesma cara do Brasil. Uma televisão ligava tocava vídeos do YouTube com versões ao vivo de músicas do que se convencionou chamar de “sertanejo”. Ao que eu degustava o meu arroz com lentilhas e peixe frito aqui em Cabo Verde, via escutava Marília Mendonça.

Comprei ainda uma broa de milho levemente doce para o caminho, e segui para o porto de mochila e cuia. Ao que eu me preparava para adentrar a vasta sala de espera do terminal, ouvi Sydney — o que já havia tomado umas na noite anterior — me gritando lá de trás: “Mauro!! Mauro!”. (Estou habituado às pessoas errarem o meu nome, desde sempre).
Veio correndo para falar comigo, dizendo que estava feliz hoje porque era o aniversário de 18 anos da sua filha, e que de manhã já havia tomado duas doses — mas pontuando que não podia beber muito de manhã em dia de serviço. Pediu uma moeda, e disse que depois arrumaria quem me levasse barato ao aeroporto quando eu retornasse de Santo Antão. Perguntou quando era, e eu lhe disse que retornaria dali a duas noites, no ferry da manhã. A ver.
Por ora, eu deixo vocês com o show das músicas que renderam o Grammy a Cesária Évora em 2004, e os reencontro lá da vizinha Ilha de Santo Antão. O Cabo Verde tem mais coisas por descobrir do que supõe a vossa vã geografia.





1.
Bela e significativa a foto de abertura. Histórica e original.
Ela é bem conhecida, pois apareceu em algum programa da TV ha um tempo atrás, Mas não sabia ser de Cabo Verde.
Interessante essa característica dos pés descalços, sinal de simplicidade. Simpática.
Adorando Cabo Verde. Muito interessante. E com a Natureza e povo parecidos com o do NE do Brasil.
Que horror essas mazelas cá e lá… E que linda a cultura mestiça. Rica e bela. Maravilhosa.
Com certeza, se estivesse mais para cá teria ficado independente desde aquela época e talvez integrasse a reação. a Portugal. E olhe lá se não fosse junto com a Bahia… hahahah em 2 de julho de 1823.