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Cabo Verde Ilha de Santo Antão

Santo Antão, Cabo Verde: Vale do Paúl e a trilha do Vulcão da Cova

(Este será um post longo.)

Quem pensa que as ilhas de Cabo Verde são só praia está equivocadíssimo. Nas ilhas de Santiago e de São Vicente eu lhes mostrei bastante História e cultura. Agora, nesta Ilha de Santo Antão, o mais forte são as paisagens.

Estamos chegando à ilha que tem as vistas mais dramáticas de Cabo Verde — e com as trilhas mais impressionantes a se fazer. Curiosamente, Santo Antão acaba atraindo mais turistas europeus que brasileiros. Você os verá. Não há praia aqui, o mar quebra quase sempre em rochas, aquele mar bravio e pouco convidativo.

É em vez disso a terra quem chama os olhos, com suas montanhas que chegam quase aos dois mil metros de altitude nesta ilha relativamente pequena. Um lado é desértico, onde não chove; já sua outra banda é verdejante, onde os ventos fazem chover. Uma ilha de duas caras com suas elevações. Ver o mar azul margeado por essas montanhas de Santo Antão enevoadas ao longe é nada menos que fascinante. 

Eu cheguei desde o Mindelo na curta viagem de ferry de 1h de duração — que eu diria ser até confortável, não fosse o mar jogar um pouco. Fazíamos em navio moderno aquilo que os portugueses devem ter experimentado à décima potência nas caravelas, como quando o senhor Diogo Afonso aportou nesta ilha então desabitada a 17 de janeiro de 1462 e a batizou com o nome do santo do dia, como era hábito português. Terra à vista.

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Avistando a Ilha de Santo Antão desde o mar.

Prólogo de Santo Antão: A viagem de ferry

Eu diria que esta viagem de ferry entre as ilhas de São Vicente e Santo Antão em si já é uma das grandes atrações de Cabo Verde, pois as vistas bravias não desapontam.

Os ferries que fazem 2x ao dia a travessia de 1h entre Mindelo (Ilha de São Vicente) e Porto Novo (Ilha de Santo Antão) são grandes. Não são aqueles gigantes que transportam caminhões, mas tampouco são qualquer barqueta. Eles aqui levam carros, e podem comportar centenas de passageiros a pé, então estamos relativamente confortáveis.

No post anterior eu dei os detalhes de preço e das companhias que fazem o serviço. Aqui, posso lhes dizer que o ferry sai com pontualidade. Coisa de 10 minutos antes da partida, eles já estavam suspendendo a escada de acesso para finalizar o embarque. 

Não há lugares marcados: você pode se sentar à vontade nos espaços abertos ou buscar algum interior. Há uma pequena lanchonete a bordo, num barco que em nada deixa a desejar aos serviços europeus.

O calor era ameno, e só o vento é que batia com força, ameaçando levar embora o que o passageiro desatento deixasse solto. O marca-páginas do meu livro quase foi ao mar como oferenda involuntária.

E falando em mar, para alguém que mareia (como este que vos escreve), eu não vou lhe dizer que gostei quando uma funcionária passou a distribuir sacoletas pretas de plástico com a função de segurar o vômito dos tontos. Eu queria sair limpo disso tudo. 

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A área do ferry da Nôs ferry (uma das duas empresas que fazem a travessia) é assim. A outra é a CV Interilhas. Costuma haver dois serviços de ida e de volta todo dia, exceto aos domingos, quando há só um de cada. No post anterior eu fiz mais algumas observações. Note a paisagem montanhosa lá atrás.
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Este é o Farol de D. Luís no chamado Ilhéu dos Pássaros. (Eu não sei qual nome os gregos dariam à angústia que me deu imaginar-me ali preso naquele ilhéu. Claustrothalassofobia?).

Passaram-se 70 minutos — portanto pouco mais de uma hora, eu incrivelmente sem marear — até que chegarmos a Santo Antão.

Esperam-se uns 10 minutos até todos os carros saírem primeiro, e depois é a nossa vez de descer a pé pela formosa estação que lembra quase um aeroporto na sua estrutura com altas paredes de vidro.

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Vamos aportando em Porto Novo, Ilha de Santo Antão.
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Eis a estação marítima, que por curioso galismo eles aqui chamam de Gare Marítima. (Gare é estação em francês.)
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Parece que você está dentro de um aeroporto.

Chegando ao Porto Novo, a maior cidade de Santo Antão

Porto Novo é onde o ferry atraca, a maior cidade da Ilha de Santo Antão — uma megalópole de cerca de 15 mil habitantes.

Santo Antão não é uma ilha notável por suas cidades, mas passar por elas é preciso. Eu, inclusive, sugiro a experiência de se hospedar fora delas. Há hospedarias maravilhosas em plenas trilhas, fora das cidadezinhas. É o que eu faria amanhã, mas hoje, neste fim de tarde em que eu chegava, havia uma primeira primeira noite cá mesmo em Porto Novo, na pousada Casa de Arlindo, também conhecida como Pedra de Rala. (Há de se adorar estes nomes lusos.)

“Casa de Arlindo” é, inclusive, como está o endereço formal do lugar no Booking.com, já que pelo visto não há números e nomes de ruas tão confiáveis aqui. Ou talvez Arlindo fosse excêntrico, ele que de fato se revelaria um cabra bastante informal.

É à saída, do lado de fora do prédio, que ficam os motoristas vários aguardando gente com plaquinha ou tentando a sorte com algum turista que precise de transporte.

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E, à saída, a pequenina turba à espera.

Eu não tinha ninguém me esperando desta vez — iria por conta à casa de Arlindo. Tudo aqui em Porto Novo se faz a pé.

Aliás, se você tem a impressão de já ter visto outro lugar chamado Porto Novo aqui neste blog, está correto. Porto-Novo capital do Benim também foi batizada assim por Portugal. Eu gosto de dizer que os navegadores portugueses daquela Era dos Descobrimentos eram como a gente com números de telefone na agenda atualmente: Fulano, Fulano Novo, Fulano Novíssimo, etc. Não sei quantos lugares eles vieram a chamar de Porto Novo. Vai ver foi por isso que apelaram aos santos e datas do calendário (Natal, Ilha de Páscoa…). 

Entretanto, esta Porto Novo não tem a cara muito histórica. Acho que não passava de um vilarejo com casas rústicas até muito recentemente. As suas ruas de paralelepípedos e casario contemporâneo me lembraram algum bairro de cidade do interior no Brasil. É uma atmosfera semelhante, só que aqui bem mais quieta. Não havia cachorros a latir, nem tantas motos a passar, o que com o vasto mar ali ao redor comunicava uma sensação de sossego até um pouco demasiado.

As montanhas na outra ponta davam um ar meio rústico estilo O Senhor dos Anéis, como se ali, para além dos limites da cidade, morassem criaturas que não moram. 

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A pacatez de Porto Novo, Ilha de Santo Antão, Cabo Verde.
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As montanhas lá adiante sob a nuvem, como se guardassem perigos.
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Do outro lado, o mar. Aqui, uma imagem da mulher que fica para trás com o filho enquanto se despede do esposo marinheiro — uma constante na arte portuguesa, como em tantas letras de fados cantados por mulheres.
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A Casa de Arlindo, afinal.

Não há placa nem nada. Após dar com um casal de turistas europeus que confirmou ser este mesmo lugar, eu basicamente fui entrando. Primeiro apareceu um gato, até que enfim emergiu de lá de dentro o sujeito moreno e meio baixinho de seus quase 50 anos, careca, de barba grisalha, e animado de calção. Deu-me as boas-vindas efusivamente, mudou o ventilador de lugar, retirou alguns copos sujos que haviam ficado dos hóspedes anteriores, e entregou-me à vontade a habitação agora limpa. 

Arlindo fazia aquele tipo de pessoa meio joão-de-barro, que está sempre fazendo alguma coisa em casa. Era também do tipo desencucado que fala rápido e sorri, e que não termina bem as palavras — o animado-agitado que derruba o café e logo se apressa pra vir limpar e dizer que nada ocorreu e que não tem problema, e que vamos lá. Tinha um filho já crescido, de seus 20 e poucos anos, que era basicamente o seu clone, mas não vi mulher na casa.

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Naquele dia, já à tardinha, eu basicamente me assentei, tomei um banho, e saí para jantar algo na cidade onde não há nada para fazer. A pequena cidade à noitinha era um ermo. Ninguém imagine qualquer bar badalado por turistas — não há. As ruas eram quietas como num bairro residencial à moda antiga onde todos dormem cedo.

Na manhã seguinte, aí sim, eu partiria para o Vulcão da Cova a fazer a Trilha do Paúl (favor não chamar de Paul como se fosse em inglês — também cometi esse erro). Lá do alto da verdejante eu desceria 1.600m de altitude a pé até a Ribeira das Pombas, passando no caminho pelo vilarejo de Cavoquinho.

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Meu belo jantar de peixe no molho servido com arroz, que arranjei à noite em Porto Novo.
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A estátua que lhes mostrei antes, agora ao anoitecer. Obra do famoso escultor cabo-verdiano Domingos Luisa, nativo aqui de Santo Antão. As ruas de Porto Novo à noite ficam todas assim bastante quietas.
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A quieta pracinha pela manhã.
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Despedindo-me de Arlindo. Ei-lo.

A Trilha Cova-Paúl em Santo Antão

Ao alto da Cova

Para fazer essa que é a mais famosa das trilhas de Santo Antão, o ideal é ir de carro até o topo (a caldeira do vulcão, chamada apropriadamente de Cova), e depois ir descendo a pé.

As duas formas mais comuns de se chegar lá em cima são: tomando um táxi que cobra em geral 2 mil escudos cabo-verdianos (2.000 CVE, uns 18 euros) e chega em 20 minutos subindo a montanha, ou uma lotação por cerca de 300-350 CVE por pessoa, que dizem levar cerca de 30 minutos para chegar. (Essas lotações se chamam aluguer aqui em Cabo Verde, e você verá carros com o letreiro em cima dizendo Aluguer da mesma forma que o dos táxis dizem Táxi.)

Tal como no Brasil, não é raro que as acomodações conheçam um motorista que faz lotação e pode levá-lo. Tal como no Brasil, também, não é raro que sejam furadas e a pessoa chegue bem atrasada ou jamais apareça. Foi numa dessas que eu entrei.

Essas lotações em geral sobem até Cova umas 8:30-9:30 da manhã — depois disso, não tem mais. Arlindo disse que conhecia alguém, e chegou até a me sugerir onde tomar café da manhã na cidade (já que ele próprio não servia refeições) e que o motorista passaria lá para me pegar no caminho.

Cheguei a prosear com um proseador casal de coroas portugueses — o senhor a me tirar, à moda portuguesa, dizendo que se eu não tinha ido ainda a Coimbra, então não conhecia Portugal. Quis saber de onde no Brasil eu era, e ali ficamos a conversar — sentados todos em mesas do lado de fora da lanchonete para eu melhor ver quando o motorista chegasse — até ele nunca chegar. Uma atitude era preciso.

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As ruas pacatas de Porto Novo, Ilha de Santo Antão, naquela manhã. Nenhum sinal de aluguer nenhum a passar.

Não titubeei: aproximei-me de um taxista parado e negociei quando ele gostaria para me levar até a Cova, sozinho que fosse. Claro que eu teria preferido pagar pouco num aluguer, mas agora remediar era preciso. Os 18 euros fariam pouca diferença no meu orçamento — importante era fazer o que eu vim fazer. Até mesmo porque a minha noite agora seria numa pousada lá em Paúl, então eu precisava chegar até lá. Deixei na Casa de Arlindo — aonde eu retornaria um dia depois — o peso da minha bagagem, e vim só com os pertences mais essenciais.   

Barganhar aqui é um tanto como fazê-lo no Brasil: é possível nas vendas de rua, mas não é fundamental como na África continental e Ásia. Significa dizer que o taxista não arredou muito pé do seu preço de 2 mil escudos; chegou até a dizer que faria por 1.800 e depois voltar atrás, antes ainda de dar partida no carro. “É que eu pensei direito e vi que 1.800 era muito baixo. Não tem como“, disse ele numa sinceridade quase singela. Vamos pelos 2.000 mesmo — que seja. Não havia outro ali naquele ponto no momento, e eu já havia perdido muito tempo esperando.

Às 10h da manhã eu finalmente saía de Porto Novo, a subir de carro agora as vazias estradas estreitas que levam até o alto da Cova. Você não demora a ver a discrepância dos ambientes desta ilha: este lado árido onde só havia arbustos espinhentos de repente dando lugar à verdejância do outro lado da montanha.

O motorista no caminho se revelou um pouquinho estouvado. Fincou o pé no acelerador, dizendo que gostava era de dirigir esta hora porque não havia mais tantos outros carros na estrada. E se pôs a esculhambar os cabo-verdianos da Ilha de Santiago, que via de regra atendem pelo apelido de badios (de “vadios” mesmo). Se lá eles vestem esse nome com certo lirismo e sem problemas, o camarada aqui pôs-se a levar ao pé da letra. Após 25 minutos daquela cantilena — eu mais focado na paisagem e no frescor que começava a entrar pela janela conforme íamos subindo — enfim chegamos. Ele me deixou ali na boca da Cova, indicou-me amigavelmente onde o percurso se iniciava, e sumiu na vida. 

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A estrada deste lado da Ilha de Santo Antão é assim.
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A paisagem seca ao redor fazia parecer que eu estava na Palestina.
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Burros descendo carregados, um raro outro carro pelo caminho.
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As curvas passavam a ser assim.
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Até que, lá elevados, era possível até ver a vizinha Ilha de São Vicente, onde fica o Mindelo.
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Eis a paisagem agora cá do alto da Cova, a vegetação já mudando.

A trilha Cova-Paúl

Às 10:25 eu estava lá no alto. Após me situar e tirar essas fotos, às 10:30 eu começava a trilha propriamente dita.

Primeiro se vai em sentido horário em redor da cova, que é a vasta caldeira que, se bobear, você nem percebe que se trata de uma ampla boca de vulcão. Os solos aqui sendo férteis — como o são os solos vulcânicos —, este lugar é onde muito se planta. Você verá o milharal e os animais de fazenda pastando.

Você esbarrará em vários turistas europeus aqui, inclusive grupos que estão em cruzeiro e aportam por um só dia para as pessoas fazerem esta trilha e retornarem ao navio. Vi vários coroas estrangeiros que não falam português acompanhados de um guia local — mas isso me pareceu ser mais pelo idioma que por necessidade de orientação. O caminho por onde se seguir é quase sempre evidente.

O primeiro passo é dar esta volta em torno da caldeira vulcânica e chegar a um mirante onde se inicia o percurso de longa descida pelo lado verdejante de Santo Antão.

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Por lá seguem os carros na estrada, e por aqui por terra seguimos nós para a Cova, início da trilha por Paúl e até a Ribeira das Pombas junto ao mar do outro lado.
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Aquele solzinho de manhã para começar.
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Isto é uma caldeira vulcânica, senhoras e senhores. Aqui estamos a cerca de 1.500m de altitude, num lugar de solos férteis e vegetação crescida.
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Deve-se percorrer as bordas da caldeira em sentido horário para fazer a trilha — um percurso no qual você vai envolvo pelos rochedos.
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Milharal.
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A gente depois sobe umas escadas até chegar ao ponto de passagem para o outro lado — o início da descida.
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Eis aqui.

No momento em que você chega a este ponto por onde avista o outro lado de Santo Antão, um vento fresco repentinamente o assalta. Eu cheguei aí às 11:15, portanto 45 minutos após iniciar a trilha com a volta na caldeira — isso levando de boa e parando para tirar fotos, sem pressa.

Ao longe você é capaz de enxergar a cidadezinha de Ribeira das Pombas lá no litoral, à beira-mar, e todo o caminho tortuoso de descida que o espera, baixando quase 1.500m de altitude a pé.

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As lindas vistas desde o alto de Santo Antão, da caldeira chamada de Cova.
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Eis aqui o tortuoso caminho até nosso destino. Vejam a vila de Ribeira das Pombas lá na outra ponta, junto do mar, e o nosso caminho até lá. Estão prontos?

Cá perto deste mirante, ainda antes de descer, eu encontrei uma dupla de idosas suíças que viajaram do meu lado no voo de Praia a Mindelo, uma das quais merendava chocolate Lindt copiosamente como se fosse biscoito e me deu dois pedaços grandes. (Veja como se faz amizade.) Saudei-as, e seu guia cabo-verdiano me cumprimentou com a cabeça. Vinham com aquelas bengalinhas de andarilho, mas julgaram que descer até a Ribeira das Pombas lhes exigiria demais dos joelhos. Eu que o diga.

A primeira parte da descida é o chamado caminho das mulas, um zigue-zague de degraus bem demarcado, por onde tradicionalmente esses animais descem e sobem com cargas. Aos poucos, você vai sentindo o frescor do ar da altitude se esvair e ir dando lugar ao calor dos trópicos, ainda que seco. 

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Este é o chamado caminho das mulas na trilha de Paúl, entre a Cova e a Ribeira das Pombas. Note o mar à nossa volta.
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O zigue-zague é assim. (Prepare os joelhos.)
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Humanos no caminho das mulas. Passar à frente deles um a um era um deleite, mas às vezes dava trabalho porque esta parte da trilha é estreita. Era um grupo de germânicos, não sei se da própria Alemanha, da Áustria, ou da parte da Suíça que fala alemão.
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Impossível ignorar as vistas de Santo Antão que se vai tendo no caminho.

Eu só me distraía destas vistas de Santo Antão quando passava a guia desse grupo, que era uma germânica da minha idade. 

Eram 13h quando eu terminei o Caminho das Mulas, à frente deles. Foi portanto cerca de 1h30 descendo sem parar. Já fazia certo calor a esta altura — também pelo esforço físico, obviamente, mas já não havia mais aquele ventinho fresco lá de cima para amainar. Se fizessem uma boa sorveteria aqui, ganhariam muito dinheiro.

Porém, não há sorvetes em vista (ainda). Agora começava uma paisagem menos íngreme e mais rural, de plantações de cana na encosta e algumas casas. Breve eu encontraria também as primeiras pessoas vendendo coisas.

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A vista diante de nós.
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…mas se nota que já deixamos bastante para trás.
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Agora era pelo caminho das canas, que eles usam para fazer o grogue (como se chama a cachaça em Cabo Verde).
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Levante a mão quem já viu canavial em flor.

Dizer que esses pés de cana são maiores que uma pessoa é eufemismo — eles são muito maiores, atingindo uns bons 5m de altura. Você vai passando feito Dorothy na estrada de tijolos amarelos do Mágico de Oz, mas numa versão tropical e montanhosa.

Estes lugares eram chamados eito de cima e eito de baixo. A quem perdeu aquela aula de História, eito era um lote trabalhado por escravos. Quase tudo que ocorreu no Brasil ocorreu também em Cabo Verde, ainda que a plantação de cana aqui nunca tenha ganho a escala que adquiriria no Brasil (ou mesmo na Ilha da Madeira). Acabou virando mais uma “cultura de quintal”, usada mais para produzir aguardente (o grogue) que açúcar.

Um relato já de 1506, quando o Brasil mal acabara de nascer, já abordava a fertilidade de Santo Antão. Esta ylha dá todas as fruitas de Portugal que se nella prantam figos, uvas, melões açucares e todas as outras fruitas há por todo o ano, relatou Valentim Fernandes. A cana não é portuguesa, é indiana, trazida ao Mediterrâneo pelos árabes na Idade Média, e ela logo se difundiria Atlântico afora.

Hoje, ela se mistura também com as frutas das Américas, como o mamão, a goiaba e o abacaxi, trazidas para cá junto com outras asiáticas como a banana e a manga. Os pomares lembram os brasileiros, não fossem as típicas casas de pedra aqui de Cabo Verde dizendo que há algo diferente.

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Segmentos da trilha também o levam bananal adentro, onde você encontra das típicas casas de pedra e telhado de palha de Cabo Verde. Encontra também seus moradores, e a trilha começa a ficar um pouco antropológica também.
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À beira do canavial, com a linda paisagem à frente.

Essas pessoas sentadas quase sempre vendiam coisas caseiras ou souvenirs. Havia doces, geleias e pontches, que é como eles chamam as batidas engarrafadas de grogue com algo mais (coco, café, etc.). 

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Café torrado ali mesmo num panelão, soltando o cheiro montanhas acima. Havia cocadas também.
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A mulher com impressionante cabelo black power que encontrei pelo caminho. Acompanhada da sua filha de seus 3 anos, morava ali e vendia coisas a quem passava.

Nadia, como ela se chamava, tinha um jeito afável, porém sentido. Não imagine uma dançarina de dança baiana só pelo seu biotipo — ela fazia mais o estilo reservado das pessoas da África.

Sua criança brincava ali serelepe, solta subindo nas pedras e me olhando com curiosidade, ao que Nádia veio me mostrar o doce de mamão em feitura que ela fervia num panelão do outro lado da trilha. Os mamoeiros estavam ali mesmo ao nosso redor.

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Olhe o doce de mamão verde ali sendo feito.

Ao que voltamos ao ponto de venda e parte do grupo de trilheiros germânicos nos alcançou, ninguém lhe fez o menor caso. Saudou-a apenas um cabo-verdiano rapaz que lhes servia de guia local e ia ao final.

— “Esses alemães são racistas. É sempre assim. Eu já os conheço. Passam parecendo que a gente não é gente“, soltou ela me olhando sem alterar a voz, como quem reitera uma coisa antiga.

— “Esses são passageiros de cruzeiro. É um público um pouco diferente“, tergiversou o guia cabo-verdiano com certa solidariedade mas meio dividido, que se detinha ali para tomar um gole de água da sua garrafa.

Comprei um pontche — eles escrevem assim — de coco de Nadia numa memorável garrafa plástica reutilizada de coca-cola sem rótulo, aquela coisa bem de garagem e sem prazo de validade (pra quê?), e levei comigo para depois. Segui descendo, pois toda esta trilha é de descida constante.

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O caminho já começava a passar por estes povoados que se diria de beira de estrada, aqui confundida com a trilha. Já havia carros aqui e ali.

Há também um quê do Brasil de algumas décadas atrás. Você passa por muitas mercearias daquele tipo antigo, com os produtos detrás do balcão, cada qual levando seu nome de família: Sousa, Reis, Neves.

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Os detalhes. Há sempre algo sobre o Brasil. Eles, inclusive, nos conhecem muito mais do que nós os conhecemos.

Fazia já um tempo que alguém não me dava um susto assim deliberadamente, ainda menos alguém estranho, mas foi o que me ocorreu quando eu inocentemente me detive num banco daqueles de frente de mercearia antiga para descansar.

Pus-me a ver o restante da rota pelo celular, e foi quando de repente me pega no ombro pra dar susto — com um ar traquino de moleque risonho — a Dona Guiomar, uma senhora morena e magra de seus 80 anos. Ria divertidíssima quando viu que deu certo, ela que levava um grande colar de contas em volta do pescoço e usava um lenço de pirata amarrado na cabeça. Eu ia dizer o quê? Dona Guiomar me ganhou ali naquele instante.

Sentou-se também no banco da frente da Mercearia Reis — que era dela própria — e perguntou de onde eu era. Num jeito amistoso de avó quando você a visita, insistiu para que eu comprasse algumas das poucas coisas que ali havia — laranjas, doces de mercearia. Fez um combinadão por 100 escudos (menos de 1 euro) e contente me vendeu. Perguntou onde eu me hospedaria, e quando lhe falei Casa Cavoquinho, ela animada disse que sua filha trabalhava lá. 

Quem vier aqui, pergunte por ela.

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Dona Guiomar, que me pregou um susto, e sua mercaria. Uma simpatia de figura. Tomava conta da neta ali naquela tarde.

Fim de tarde no Paúl

Você pode descer a trilha inteira até Pombas na beira-mar num só dia, mas nesse caso é recomendado começar bem cedo — umas 8h, mais cedo que o meu começo às 10h. Você chegará então a esta altura aqui do Paúl na hora do almoço, e pode até comer por cá sem precisar recorrer a sanduíches na mochila. 

Eu aqui, entretanto, já estava quase às 15h (e havia recorrido a sanduíches trazidos na mochila, comprados na lanchonete de café da manhã onde esperei pelo motorista que não chegou). Como a maior parte dos lugares onde se pode jantar já fecha umas 17-18h, o que fiz foi localizar a Casa Cavoquinho, onde eu pernoitaria, e ir jantar n’O Curral, um restaurante que recomendo.

Achei o acesso até a Casa Cavoquinho, e ali eu descansaria a minha breve bagagem diante de uma espetacular vista para as montanhas. 

Eu não estava ainda tão morto, já que a trilha foi toda pra baixo, mas os pés e os joelhos se queixam da descida constante. Nessa brincadeira foram quase mil metros de altitude descidos em algumas horas.

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Os meandros por onde passar.
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A Casa Cavoquinho. Oh vida.
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A paisagem conforme o sol cai se escondendo.

Como você há de notar, esta trilha da Cova ao Paúl em Santo Antão é um negócio assim meio Machu Picchu, só que sem ser. Não há misticismo inca aqui, mas há povoados, gente local e guloseimas pelo caminho.

Eu terminaria este dia com uma ida ao curral, um bar-restaurante com uma área coberta, mas ao ar livre, e uma atmosfera ligeiramente alternativa — enfatizando os ingredientes orgânicos, etc., mas sem ser gourmet. Fazia mais um ambiente família, e naquela hora ali às 17:30 já havia uma mesa onde uma pequena trupe de crianças pequenas faziam a refeição.  

Não vem muito brasileiro por aqui. É raro“, comentou a simpática jovem cabo-verdiana que gerenciava o lugar com 0 marido. Ela já havia vivido no Brasil — morou em Belo Horizonte e disse que adorou tanto o Pelourinho quanto o Carnaval de Salvador, seguindo Daniela Mercury no circuito Barra-Ondina.

Pedi uma cachupa aqui de Santo Antão para experimentar. Eu já havia experimentado desse “prato nacional” lá na capital Praia, mas aprendi que a daqui é diferente, mais seca. Eles separam o líquido para sopa, e o sólido vira uma saborosa mistura de milhos com feijão temperado — um baião de outros dois — na cebola refogada, etc. (Arroz aqui é caro porque vem de fora, é importado, então eles usam pouco.)

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Esta é a cachupa sendo feita, um misturão de feijão com milho. Se na Ilha de Santiago (onde fica a capital Praia) ela é mais um guisado — e a lá eles a pronunciam catchupa —, aqui eles escorrem o caldo para fazer sopa, e a cachupa vem seca no tempero, como um baião de outros dois.
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Tomando um suco de frutas no Curral. Note ali o molho de pimenta conhecido como piri-piri para os afeitos.

O esposo da moça cabo-verdiana que geria aqui o Curral com ela era alemão — um homem da minha idade que escorria a cachupa ao que eu sentado à mesa estava, a aguardar. Pelo visto, nem sempre racistas são as atitudes, e nem só de violações se faz a mestiçagem.

As crianças pequenas ali sentadas eram obviamente mescladas dos dois. Uma moreninha menor, de seus cinco anos, me olhava curiosa. Achava engraçada a minha forma brasileira de falar. “Eu gostaria de experimentar esse gelado caseiro de vocês”, repetiu ela divertidíssima depois de mim me olhando de soslaio quando pedi o sorvete — que eles aqui chamam de gelado.

Estava uma beleza. Até o de banana ficou bom. Ficou o melhor, na verdade.

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Gelado caseiro no Curral, em Santo Antão, Cabo Verde.

Entre Dona Guiomar e essa pequena que imitava o meu falar brasileiro, eu me divertia com os cabo-verdianos aqui enquanto as paisagens gritavam beleza em Santo Antão. Continuaria amanhã.

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O Curral.
Mairon Giovani
Cidadão do mundo e viajante independente. Gosta de cultura, risadas, e comida bem feita. Não acha que viajar sozinho seja tão assustador quanto costumam imaginar, e se joga com frequência em novos ambientes. Crê que um país deixa de ser um mero lugar no mapa a partir do momento em que você o conhece e vive experiências com as pessoas de lá.

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