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Cabo Verde Ilha de Santo Antão

De Pombas à Trilha de Fontainhas em Santo Antão, Cabo Verde

(Este será um post longo)

O raiar do sol no Vale do Paúl era incrível. Não, não é ainda o que você vê aí na foto de capa — essa seria minha paisagem vespertina em Fontainhas, a segunda trilha mais popular desta Ilha de Santo Antão. 

Antes, eu me reencontrava comigo mesmo nesta manhã até friazinha cá nas alturas de Cabo Verde. Se a noite pouco lhe entrega algum pôr do sol devido às montanhas, e se abrir a janela fica por sua conta e risco devido aos mosquitos, o amanhecer é pleno. A espanhola de meia idade dona da pousada já circulava lá ao salão do café da manhã com sua trupe de cabo-verdianas morenas, frutas a chegar ao meu prato, além de uma tigelinha de cachupa.

A cachupa (que os “badios” da Ilha de Santiago preferem chamar Katxupa) é milho misturado com feijão e temperos — o feijão com arroz dos cabo-verdianos, que eles comem todo santo dia sem reclamar da repetição. (Eu ainda hoje acho inusitado quando estrangeiros vão ao Brasil e se queixam de comer feijão com arroz todos os dias. Tudo é o hábito.) Não vou lhe dizer que morro de anseios por comer cachupa todo dia, mas é gostosa — sobretudo esta aqui da Ilha de Santo Antão, que parece um feijão tropeiro sem farinha, sem caldo. 

E tropeiro era eu hoje novamente, a completar esta trilha Cova-Pombas e — como esforço pouco é bobagem — ainda fazer a trilha de Fontainhas noutro lado desta ilha e, por fim, voltar à Casa de Arlindo em Porto Novo antes do anoitecer. (O “antes do anoitecer” não é porque minha mãe não me deixe ficar fora de casa até tarde, mas é que após um certo horário já não há mais transportes em Santo Antão e aí, como dizem os militarescos norte-americanos, você precisa shelter in place — abrigar-se onde está, porque não há mais como se deslocar.)

Os mais audaciosos estão convidados a seguirem o meu roteiro, mas já aviso que suas pernas e joelhos terão uma conta a pagar. Os que gostam das coisas mais devagar podem se hospedar em algum lugar pelo caminho. 

Bom dia. Vamos caminhar.

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O raiar do sol da minha janela, como é bela.
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Esta foi a paisagem que tive da Casa Cavoquinho, no Vale do Paúl. Recomendo verem o post anterior, em que explico a trilha desde o alto do vulcão da Cova rumo à Cidade das Pombas à beira-mar. Uma descida de 1.500m de altitude a pé, o que resolvi fazer com uma providencial pausa aqui no Paúl para curtir melhor o cenário.
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Tigelinha de cachupa pela manhã, após o café e as frutas. Os cabo-verdianos a comem o tempo todo: milho com feijão e temperos.
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Vamos terminar de descer o vale hoje.

Do Paúl até a Cidade das Pombas, antigo eito de baixo

Às 9:10 da manhã eu estava saindo de Paúl, a caminhar até a Cidade das Pombas, antigo eito de baixo. Quem quiser ser prudente, recomendo sair até 1h mais cedo. Eu não saí, então tive que jogar o jogo num nível mais difícil. 

“Eito” é a designação colonial para um lote de canavial que os escravos trabalhavam. O nome saiu de circulação devido à conotação feia — ainda que, em partes do Brasil e alhures, quem trabalha com cana hoje carregue mais peso por dia do que carregavam os escravos há 200 anos atrás (isso está documentado). 

Já aqui em Cabo Verde não há esses problemas; a produção de cana nunca foi tão volumosa, e historicamente sempre serviu mais à produção de aguardente (o que eles aqui chamam de grogue) que de açúcar. Além do mais, o relevo desta Ilha de Santo Antão não permite grandes extensões.

Você desce por ruas tortas, ou depois por trilhas de chão, serpenteando por um bom tempo aquele canavial íngreme ao lado do qual as pessoas moram — é uma coisa mais de vilarejo, medieval se diria. E, entre as canas, ouviam-se galinhas e porcos.

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Estradinhas que fazem esta trilha em Santo Antão. Há carros, mas não muitos — nada que incomode demais. Esta trilha, via de regra, daqui para baixo adquire atmosfera mesmo de zona rural.
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A cana em flor — imensa. Boa parte do nosso caminho é descendo por esta estrada de pedras, com a bela paisagem em vista (prepare os joelhos).
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O canavial e a linda paisagem desta Ilha de Santo Antão, Cabo Verde.

O nome Cabo Verde não vem daqui — vem do cabo que os portugueses assim batizaram lá no atual Senegal, a 600 Km daqui em linha “reta”, daí as Ilhas do Cabo Verde — mas às vezes este país que na sua maioria é bastante seco até faz honra ao nome. 

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Como nem só de cana vive o homem (!), temos aqui também uma célebre árvore sangue-de-dragão (daí dracena), popular entre os trilheiros aqui.
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♫ “Home is behind, the world ahead / And there are many paths to tread / Through shadow, to the edge of night / Till the stars are all alight… ” ♫ [O lar ficou para trás, o mundo adiante / E há muitos caminhos a percorrer / Pela sombra, até a boca da noite / Até que as estrelas se iluminem…]. A quem não reconhece, a canção do hobbit Pippin em O Retorno do Rei.
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Paragens pelo caminho. Parecia um interior do Brasil em contexto de montanhas — curiosa mistura.
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Aproximando-me do fim da trilha.

Às 11:40 eu chegava à Cidade das Pombas, portanto após 2h30 de caminhada sem pressa, descendo e parando para fotos.

Um Santo Antônio lá no alto se impunha a convidar quem quisesse subir mais. Eu, da minha parte, não vou lhe negar que dava graças a Deus de estar pisando no plano, depois de tanto descer.

Você adentra a cidade pelos fundos, por assim dizer, margeando o que um dia foi um ribeirão. Hoje, já não há mais quase nada — sobrou o aqueduto colonial de inspiração romana feito aqui pelos portugueses, mas água mesmo agora só há quando chove, poucos meses no ano. Desmatou-se tanto a vegetação que o curso secou. E a cana, sempre sedenta por água, não ajuda nem um pouco. 

Uma moradora torceu o nariz quando falei com certo romantismo da produção de grogue e dos canaviais em flor. “A água vai toda pra eles“.

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Santo Antônio, rogai por nós. (Calma, público evangélico. É o dizer.)
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O ribeirão praticamente seco hoje, na entrada — ou nos fundos — da Cidade das Pombas, o Santo Antônio lá no alto da colina.
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Sobrou o aqueduto que os portugueses aqui fizeram.
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O vale seco e a vista.

Na Cidade das Pombas

Este antigo eito de baixo, que virou Vila das Pombas (alcunha que você ainda encontra) e atualmente é a Cidade das Pombas, é conhecida mais pelo simples nome de Pombas. Houve e há quem a chame também de Ribeira das Pombas, mas já sabemos que a ribeira que aqui jaz hoje pouco faz jus ao nome do que aqui jazera. (Não confundir com a Al Jazeera, que nada tem a ver com esta história.)

Pombas é uma cidade ainda mui católica, como via de regra são Portugal e Cabo Verde — ao menos na cultura social, se não na religiosidade individual de cada um nestes tempos modernos. Ela muito me lembrou certas paragens urbanas do Brasil colonial do século XVIII ou XIX, talvez n’algum recanto da Bahia, de Pernambuco, ou de Ouro Preto.

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Pracinha na Cidade das Pombas, Ilha de Santo Antão.
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O mesmo jeito do Brasil de antigamente.
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Esta é a Paróquia de Santo Antônio das Pombas. Dizem que, nos meses de junho, há ainda romaria com a imagem indo de casa em casa, e toda aquela coisa que era bem costumeira no Brasil até umas décadas atrás.
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Seu interior.
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No teto, um quadro com a conhecida história de Santo Antônio pregando aos peixes.

Pombas já não há, ou pelo menos eu não as vi — talvez tenham sumido junto com a ribeira —, mas os peixes e o mar continuam aqui. Sim, Pombas é onde nossa trilha finalmente encontra o oceano.

O Atlântico aqui bate ameaçador, belo e pouco convidativo ao banho, já vos aviso. Cabo Verde parece o Caribe mais do ponto de vista cultural que do físico.

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O mar, este segundo amor do pescador, quebrava potente nas rochas.
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O amigo aqui a interrogar.

O cão velho e o mar, diria Hemingway — se bem que, em verdade, ele pouca bola deu ao oceano. Caminhou aqui pelo parapeito e tomou rumo, como eu também precisava tomar. (Vejam aí a sabedoria canina, que sabe que a contemplação não pode detê-lo.)

Fazia aqui um calor meio abaianado, só que mais seco. O sol começava a se levantar, e na simpática pracinha deste centro da cidade eu fui me informar sobre onde tomar a besta até a Ponta do Sol, de onde se começa a trilha de Fontainhas. Soube que daqui conseguiria transporte apenas até Ribeira Grande, e que de lá tomasse outra até a Ponta do Sol. O que não tem remédio, remediado está.

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O centrinho da Cidade das Pombas.
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Tudo é muito ajeitadinho — mais que no Brasil. As coisas aqui também são, via de regra, bem mais pacatas.
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O ponto das vans lotação (“aluguer” no linguajar cabo-verdiano) que fazem o transporte entre uma cidade e outra nesta Ilha de Santo Antão.

Muitas mulheres mestiças passavam por ali com o cabelo preso para cima, naquele penteado meio rabanete. Os homens, por sua vez, se ajuntavam para prosear aí debaixo da árvore nos pontos de transporte tal qual no Brasil. Como eu não queria almoçar ainda, comprei um sorvete caseiro de uma gordinha simpática que passou vendendo, e pus-me a esperar.

A chatice dessas vans lotação é que você fica ao bel-prazer do motorista — quase sempre um cara folgado. As bestas faziam fila tal qual táxi, naquele ordenamento habitual de que o da frente é o que sai primeiro. Já éramos alguns esperando, mas o motorista tinha todo o tempo do mundo e não se contentava.

— “Ainda não foram?”, indagou-me um outro, este um taxista, que havia saído de lá e agora voltava, ao que eu passei para jogar fora o copo plástico do meu sorvete. “Toma um táxi e sai desse sol!”, propôs ele risonho.

— “O sol não me assusta assim tanto, não”, respondi eu também sorrindo.

Custa 100 escudos o coletivo, o equivalente a menos de 1 euro, enquanto que o táxi é dez vezes mais, então eu me punha ali a esperar já meia hora até o cidadão de bem se dispor a sair.

Fazia corpo mole, e resolveu atravessar a rua para ainda ir ali na venda, que foi então quando o seu colega de detrás aproveitou e resolveu sair. Fez um “pss” na surdina com o dedo na boca, e fomos todos com ele em vez disso. Para não dizer que era uma pessoa de má fé, deu carona gratuita a crianças numa escola no nosso caminho.

A estrada para a Ribeira Grande é uma beleza e tanto, já vos aviso.

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Da Cidade das Pombas à Ribeira Grande na estrada que margeia a ilha.
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Não, não é que o mar esteja torto, é que nós no aluguer circulávamos e virávamos, e se via tudo de Santo Antão de todos os ângulos, desde o mar ao infinito.

Ribeira Grande e a Ponta do Sol

Como já é tônica aqui e toda a toponímia que faz referência a água doce, já não há mais ribeira nenhuma na Ribeira Grande — ela só existe agora como um filete azul no Google Mapas. Aqui, pessoalmente, você verá apenas a ponte sobre seu leito de pedras.

Não encaro isso com trivialidade. Acho uma hecatombe ambiental num lugar frágil como Cabo Verde, de segurança hídrica modesta. Você nota, com o tempo, que há inclusive uma certa tônica de sobrevivência na identidade cabo-verdiana, diante do estupro ambiental que estas ilhas sofreram ao longo da colonização portuguesa (até 1975) com desmatamento vasto, colinas peladas, consequente falta de água, e por fim fomes recorrentes devido ao impacto disso na agricultura. Brasil, Brasil, estás a brincar com fogo. As ribeiras secas de Santo Antão são prenúncio.

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Ribeira Grande, que já não é mais — só quando chove, três meses no ano.
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Do outro lado da ribeira seca, via-se o grafite com a figura da cantora cabo-verdiana Cesária Évora jovem. Falei dela na visita ao Mindelo, sua cidade natal.
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As ruas desta ribeira. Certos ares do subúrbio de Salvador — só que mais limpo e asseado.

Eu não me demorei na Ribeira Grande — localizei o outro lugar onde paravam as bestas que levam à Ponta do Sol, e após 25 minutos de espera, paguei os 70 escudos (60 centavos de euro) para chegar à Ponta do Sol às 13:15. Já não era muito cedo, eu me daria conta. A impressão que tive foi que, após o almoço, a frequência de transportes aqui cai significativamente. Glup.

Estamos falando de trajetos breves, de coisa de 10-20 minutos, então eu não demorei a chegar.

Ponta do Sol se apresentaria a mim como uma cidadezinha quieta feito as do interior profundo da Bahia (uma Mucugê da vida), só que à beira-mar. Ou uma versão despovoada e à moda antiga — tipo uns 50 anos atrás — das cidades do litoral. Quem for mais vivido que eu que confirme.

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A Câmara Municipal em Ponta do Sol, Ilha de Santo Antão.
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Sua igrejinha na praça quieta — com o mar lá atrás.
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Suas ruas pacatas. Um ou outro lugar é que tinha gente.
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Certos ares óbvios de América Latina, com até um quê da Colômbia.
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Juro para vocês que estamos em Cabo Verde, não na América Latina. É que talvez os dois, na real, sejam muito mais próximos do que julga a nossa vã geografia.
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Gente mestiça pelas ruas da Ponta do Sol, Santo Antão.
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Quase parece algum bairro de Salvador, só bem mais quieto.

Esta não era exatamente uma tarde em Itapuã, ainda que a estética das casas e o mar ali se assemelhassem. Não há como se negar a origem comum.

Porém, faltava aqui uma certa vivacidade. Em verdade, ainda que fosse pleno meio de semana em horário comercial, parecia que eu estava andando num ermo, ainda que ligeiramente urbanizado. Quase não há comércio, e os carros que passavam eram poucos. Com franqueza, digo-lhes que fiquei satisfeito em não ter planejado pernoitar aqui, pois eu sofreria de tédio.

Naquelas ruas meio mortas, eu procurava um restaurante onde almoçar nestas quase duas da tarde. Os poucos que eu via não tinham música ambiente nem nada — só se ouvia o mar lá fora, o bater de pratos na cozinha lá dentro, e a conversa ocasional de um ou outro turista europeu posto ali a fumar à entrada do restaurante.

Sabendo que eu não podia exigir muita coisa nem procurar algo perfeito indefinidamente (o tempo “rugia”, afinal), sentei-me num restaurante azulado, com temas marinhos, onde fumavam alguns europeus do lado de fora para o meu desprazer, e ali pedi uma cachupa — que para o meu prazer estava muito boa, a me lembrar de um bom feijão tropeiro.  Cachupa no café da manhã, cachupa no almoço… Eu estava virando um cabo-verdiano raiz, afinal.

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Minha cachupa neste almoço. Ela aqui na Ilha de Santo Antão lembra um feijão tropeiro, e é costumeiro servir assim com linguiça. Novamente em evidência suas origens comuns com o Brasil.
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Monumento ao pescador e à mulher com a bacia de peixes aqui na costa — um ar meio Dorival Caymmi mesmo, ainda que não houvesse redes, pois aí já foi input dos índios que aqui não há.

Fontainhas, a trilha e a vila

Vamos, afinal, chegar à trilha de Fontainhas — ideal para fazer de barriga cheia e após o almoço. Praticamente todos os turistas que vêm à Ponta do Sol o fazem por causa de Fontainhas. 

Fontainhas foi alçada à fama quando, em 2005, a revista National Geographic a elegeu um dos 3 vilarejos mais pitorescos do planeta. Se é, eu não sei, mas que é remota e peculiar na sua geografia, isso é. Depois dela — se você é do tipo que gosta muito de caminhada e quiser ir mais adiante — ainda há Corvo e Formiguinhas, e por uma outra rota há também Cruzinha neste litoral rochoso do norte da Ilha de Santo Antão, mas Fontainhas é mesmo a mais famosa e a principal.

Eram já 14:15 quando eu finalmente comecei a subir de Ponta do Sol rumo a Fontainhas, por aquele subúrbio beira-mar com ares da Colômbia ou coisa parecida. Como cheguei a indicar antes, a essa altura a maior parte das pessoas já estava voltando enquanto eu ia, então recomendo vir aqui pelo menos 1h mais cedo que eu.

Andiamo. Se a Trilha Cova-Pombas passando pelo Vale do Paúl era só descida, aqui se preparem para subir — e depois descer.

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O mar neste litoral rochoso e acidentado do norte da Ilha de Santo Antão, Cabo Verde. (Aquilo ali é uma estátua de ave. Não é de verdade.)
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A trilha para Fontainhas começa assim nos subúrbios de Ponta do Sol…
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…por caminhos inconspícuos, no meio da vizinhança. Eu tive que perguntar a alguém.
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Eu não vou negar que me lembrava uma versão de Terceiro Mundo das Cinque Terre na Itália, com o casario amontoado de frente para o mar.
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Você margeia um cemitério no fim da cidade e vai subindo, até não haver mais calçamento. Ponto do Sol vai ficando para trás, com a imensidão do mar em vista.
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Sigamos, pois Fontainhas está lá adiante entre as montanhas.

O meu pé deslizava nesses pedregulhos aí acima fazendo força para subir. Não parecia haver viv’alma no local. Ouvia-se o mar lá embaixo, e se sentia um calor relativamente modesto sob as nuvens. 

Eu não deixei de achar a atmosfera do lugar um pouco vazia e triste. Como tampouco há muita fauna, o ambiente me parecia por demais desolado. O casario latino amontoado à beira-mar me lembrava em algo, mas obviamente lhes faltava o charme das Cinque Terre italianas. Tampouco havia o envelope cultural da imaginação como acerca dos incas no Peru ou do misticismo chinês à là O Tigre e o Dragão naqueles picos da China.

Aqui havia as montanhas, e para elas eu me dirigia. Gradualmente, o caminho não-existente na saída da cidade ganhava agora contornos de estrada.

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O caminho para Fontainhas, Santo Antão. Hic sunt dracones, dizia a frase dos fins da Idade Média para denotar os lugares inexplorados do mapa onde, quem sabe, viviam dragões.
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Não vou lhes dizer que este caminho não é pitoresco. Eu o trilhava sozinho, com pouquíssimos transeuntes — todos eles vindo no sentido contrário.
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Aqui, as montanhas, e lá embaixo, o mar. (Às vezes vem carro, mas o que seria desta trilha se não fosse a emoção?)
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Escondendo o cansaço.
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Ponta do Sol já lá bem longe.

Eu não demorei tanto assim até vislumbrar Fontainhas ao longe. Tudo depende do pique e do passo na subida. Havendo saído de Ponta do Sol às 14:15, eu comecei a ver Fontainhas em menos de uma hora, e já às 15:25 eu chegaria lá. Portanto, 1h10min de caminhada.

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Ecce Fontainhas, ali escondida. (Não sei o que deu nos portugueses pra construir uma cidade justo ali.)
Fontainhas no cenário com as montanhas
Deixo aí a critério de vocês julgar se a National Geographic estava certa em elegê-la uma das três vilas mais pitorescas do mundo. É preciso descer em zigue-zague até lá.
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Chegando em Fontainhas, um vilarejo com menos de 500 habitantes.

Caminhei já meio podre aqui, tendo feito toda a trilha de Cova até Pombas pelo Vale do Paúl nas últimas 24h. Minhas pernas já estavam cansadas de subir e descer. Acho que nenhuma trilha na vida havia me deixado mais quebrado que aquela e esta de Fontainhas juntas — ou talvez seja a idade avançando, e não seja justo comparar aos 38 àquilo que eu fazia aos 25. 

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Adentra-se a vila com seus altos e baixos, onde cada via é um beco, e cada beco tem degraus, até que cheguei ao Bar Tchu na esperança de tomar dos sucos de frutas que eles anunciam ali em francês — certamente de olho nos turistas.

Se alguma coisa acontece no meu coração quando cruza a Ipiranga e a avenida São João, aqui em Fontainhas não acontece absolutamente nada. A vista é bela, mas não espere um vilarejo com movimento. Às 15:25 quando cheguei ao Bar Tchu, já estavam com cara de fim de expediente. O suco havia acabado, e agora só tinham refrigerante e água. Peguei uma água. Os gatos do lado de fora circulavam pelos telhados como se o tempo tivesse parado, aquela maresia de fim de tarde precoce.

Não havendo realmente o que ver em Fontainhas — e eu estando com o tempo apertado, já a pensar em como retornaria de Ponta do Sol até Porto Novo do outro lado da ilha antes do anoitecer —, resolvi tomar rumo. Tomei o caminho de volta já às 15:30 no passo que pude, deixando Fontainhas para trás.

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Voltando de Fontainhas para Ponta do Sol no entardecer. (Deve ser alta emoção dirigir aqui.)

O retorno a Porto Novo — via Corda

Às 16:30 após 1h de caminhada eu cheguei de regresso a Ponta do Sol, a volta sendo ligeiramente mais rápida porque se sobe menos e se desce mais. 

Era agora iminente achar um táxi que me levasse daqui até Porto Novo do outro lado da ilha, de onde eu havia partido na manhã do dia anterior e onde na manhã seguinte eu teria um ferry de retorno ao Mindelo, para ir direto ao aeroporto tomar um voo para Praia, e de lá outro para a Ilha do Sal. Nada como tudo assim bem conjugadinho, arriscado dar um belo efeito dominó e você perder tudo.

Portanto, eu precisava chegar a Porto Novo esta noite, e a única forma de conseguir isso no fim da tarde é realmente com um táxi — e mesmo isso não é muito garantido se você deixar entardecer demais. As vans lotação (aluguer) já se tornam rarefeitas depois do almoço, e após o anoitecer, já nem táxi se acha mais.

O preço não é dos melhores, mas é um preço praticamente fixo e quase imbarganhável: 5.000 escudos (ou o equivalente a uns 45 euros) para a viagem de 1h entre um lado e outro da ilha. O valor às favas — eu já havia orçado isto. O fundamental é só que você exija que ele vá pelo caminho de Corda, que fica no centro da ilha e é muito mais pitoresco que dando a volta pelo litoral.

Dei a sorte de achar um taxista ainda disposto neste fim de tarde, e lá fomos nós. As paisagens são de arrepiar.

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A rota por Corda entre Ponta do Sol e Porto Novo, em extremos opostos da ilha.
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A estrada atravessa o coração da Ilha de Santo Antão.
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As vistas são um esplendor.
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Você sobe, e a temperatura desce. Cheguei a ver moradores de casaco, de repente, em algumas casinhas por onde passávamos.
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De repente parece que você está no Canadá ou nos Estados Unidos.

Essa paisagem segue assim temperada e verde até que você cruza o ponto de inflexão na altura da caldeira do vulcão em Cova — onde eu no dia anterior havia iniciado minha longa descida. Depois dali, adentra-se novamente a banda seca e árida desta Ilha de Santo Antão. O sol caía no horizonte.

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Adentrando novamente o lado seco de Santo Antão.
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Este lado árido de Santo Antão no entardecer. Devido aos ventos, só chove do outro lado das montanhas, e com isso a vegetação fica radicalmente diferente.

Cheguei às 17:45 de volta a Porto Novo, o taxista um daqueles tão focados em chegar logo que nem conversou muito. Foi bom assim, pois deu ainda para pegar um restinho de luz. Reencontrei-me com Arlindo — que lhes apresentei no post anterior — e com minha saudosa mochila. Minha disposição era para um bom banho e descansar após jantar algo na cidade.

Na manhã seguinte bem cedo, estava eu a postos novamente, a buscar o ferry e rumar para o Aeroporto Cesária Évora mais uma vez.

Quem adivinhar o que eu comi no café da manhã ganha um doce. Sim, cachupa. Detive-me rapidamente às 8h pouco antes do ferry num restaurante ali perto e, não havendo tempo para fazer a refeição ali, perguntei se a embalariam para viagem. Claro, retrucou o mulato rapaz, que dali a pouco me teria a bela cachupa numa daquelas quentinhas de alumínio. 

Você tem colher descartável?“, indaguei eu, de repente me lembrando que teria que comer com algo. O rapaz fez um ar meio atônito para dizer que não, ao que — após um pouco hesitar — abriu uma gaveta e ali pegou uma colher normal de metal, a qual olhou fixamente como aquele povo que diz entortar colheres com o pensamento. Quase como quem entrega um filho para a adoção, me entregou a colher — generosidade que eu só encontro em país pobre. Adotada, a colher agora me acompanha na bagagem de mão aonde quer que eu vá.

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De partida da Ilha de Santo Antão, talvez a mais bonita de Cabo Verde.
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Adieu, Santo Antão.

Epílogo

A volta no ferry balançou — a ponto de alguém cair. Não dentro d’água (felizmente), mas ao chão com o balanço do mar. Ela acabou sendo mais rápida, coisa de 1h de travessia até o Mindelo, embora se ponham aí mais uns 15 minutos de espera até descer do ferry, pois os carros desembarcam primeiro. Eu já estava de olho no relógio, já que tinha um voo a apanhar e precisava rumar daqui diretamente ao aeroporto. 

Ao que eu desci do ferry, lá aos portões de saída estava Sidney entre os vários taxistas a chamar, com seu típico colete laranja aberto e o boné para trás. Logo sinalizou, ao que nos saudamos, e estava ele ali com o seu chapa escolhido que me levaria ao aeroporto. Tínhamos acertado de que ele receberia um trocado pela facilitação.

Perguntei a ele como se passou o aniversário de 18 anos da filha. “Foi bom, mas tomei muita cachaça”, respondeu ele com um dionisíaco sorriso de meia culpa.

Disse-lhe que não fosse encher a cara, mas receio que acabei dando uma contribuição financeira à sua bebedeira. Perdão, Pai. Tomei meu voo, e com vocês eu me reencontro na Ilha do Sal.

Mairon Giovani
Cidadão do mundo e viajante independente. Gosta de cultura, risadas, e comida bem feita. Não acha que viajar sozinho seja tão assustador quanto costumam imaginar, e se joga com frequência em novos ambientes. Crê que um país deixa de ser um mero lugar no mapa a partir do momento em que você o conhece e vive experiências com as pessoas de lá.

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