Hans Christian Andersen (1805-1875) é o dinamarquês autor de muitas obras hoje conhecidas por quase todos no Ocidente: O Patinho Feio, A Pequena Sereia (daí a famosa estátua da sereia em Copenhague), O Soldadinho de Chumbo e tantas outras.
A Disney e outros estúdios até hoje tratam de adaptar suas obras. Tantas restam por ainda ser adaptadas. Por exemplo, uma bem conhecida na Europa é A Princesa e a Ervilha (1835), onde um príncipe está por casar, mas não sabe como identificar quem das suas muitas pretendentes é mesmo da realeza. Numa noite de chuva, sua mãe a rainha acaba dando abrigo a uma moça, e lhe oferece uma cama com múltiplos colchões — mas há uma ervilha lá debaixo do último. Pela manhã, a moça se queixa de que algo a incomodou, e assim o príncipe conclui que só mesmo uma princesa de verdade se queixaria por uma ervilinha debaixo de tantos colchões. Tenho amigos europeus que usam isso quando a criança começa a fazer manha demais: “Virou a princesa da ervilha?“.
Mas como é a cidade onde Hans Christian Andersen nasceu no século XIX, hoje a terceira maior cidade da Dinamarca? Quase que só se fala em Copenhague quando se trata de turismo aqui, mas há mais o que ver neste país. Odense — que os dinamarqueses pronunciam quase comendo o D, como se fosse Ôensse — pode não ser exatamente uma metrópole, mas ela tem o seu charme.
A saber, seu nome vem de Odins Ve, que significa Santuário de Odin, o principal deus na antiga mitologia nórdica. Ela data de quando os dinamarqueses ainda nem eram cristãos.



Odense, uma visão geral
Era um começo de tarde de setembro quando eu cheguei. A essa época, enquanto a maior parte da Europa ainda está mergulhada no fim do verão, o outono já começa a mostrar a cara na Dinamarca.
Os dias ainda têm sol, mas já há um vento frio à espreita. Os mais sensíveis vestem casacos enquanto os mais atrevidos e amantes do sol — como eu — persistem no mito de que o verão continua. Na astronomia, ele continua mesmo até 22 de setembro, mas na prática aqui nos países nórdicos a banda toca um pouco diferente.
Às vezes, já no fim de agosto as folhas — atrevidas — já começaram a cair, e as pessoas retornadas das férias de verão (fim de junho a meados de agosto) vão retomando aos poucos a rotina de trabalho.
Todavia, ainda havia um quê de pouco movimento aqui em Odense. Uns raros turistas britânicos acompanhavam-me na rara pousada a ser encontrada, onde o magro e simpático senhor dinamarquês dono do lugar ficou chocado que um brasileiro viesse — oriundo de tão longe — a Odense. Ele achou mais plausível quando eu lhe disse que morava em Estocolmo na vizinha Suécia, não tão longe assim. Era sexta-feira, e eu havia tirado um final de semana prolongado para finalmente conhecer melhor este interior da Dinamarca.
Odense me pareceu um bom lugar por onde começar. A cidade em si não é badalada, tampouco de aspecto medieval, mas ela tem algumas ruelas fofas, igrejas medievais impressionantes e um museu sobre o seu filho mais famoso. As referências a Hans Christian Andersen estão por toda parte.





Hans Christian Andersen e seus museus na cidade
As ruas de Odense tinham seu movimento, mas não muito. Nota-se que o turismo aqui é de baixa intensidade.

O que mais atrai os poucos visitantes são mesmo os museus dedicados a Hans Christian Andersen: a sua casa de infância, dedicada a mostrar um pouco de como era a vida naquele tempo, e a casa onde ele depois viveu, hoje vinculada a um museu moderno, interativo e dedicado sobretudo ao público infantil.
Acaba sendo um pouco confuso quando você procura pelos lugares no Google, mas aqui a gente mostra tudo direitinho.
A casa onde ele passou a infância é um lugar bem simples e pequeno. Tem entrada gratuita para “crianças menores de 18 anos”. Se você precisar se informar, chamam-na de Hans Christian Andersen’s childhood home em inglês ou Barndomshjem no original dinamarquês.
Eis o site oficial deste primeiro museu, caso você queira verificar horários etc.



Hans só viveria até os 14 anos em Odense, a maior parte do tempo numa outra casa, hoje vinculada ao museu principal em seu nome: o museu Casa de Hans Christian Andersen. (Eu sei, começa a parecer quase uma hagiografia, com tanta coisa diversa a seu respeito, Odense transformada quase em lugar de peregrinação.)
Verdade seja dita, eu não pirei em nenhum destes museus, pois este último parece mais um “centro de aprendizado” moderno para crianças sobre as suas histórias. Não tem exatamente cara de museu no sentido clássico da coisa. Como os turistas aqui não são tantos assim, se nota que o público alvo são mesmo famílias dinamarquesas com seus filhos. É preciso usar o áudio, que vem em inglês ou alemão também.




Uma curiosidade é que Hans Christian Andersen chegou a ser até enredo de escola de samba no Carnaval brasileiro. Isso foi obra da Imperatriz Leopoldinense em 2005, para celebrar os 200 anos do nascimento do autor.
O que tem a ver com o Brasil? Inspirou Monteiro Lobato e tantos outros, com a ideia de difundir contos também da realidade brasileira, além de ter influenciado diretamente a infância de tantos — ainda que o grosso dos brasileiros não reconheçam seu nome.
Ele chegou também a escrever e publicar relatos de viagem pela Europa do século XIX, ainda que estes sejam bem menos conhecidos que as suas obras de fantasia.





O “causo” de São Canuto em Odense
O que mais há para ver na cidade? Em verdade, apesar das referências onipresentes — e estátuas várias, dele próprio ou de seus personagens — a Hans Christian Andersen em Odense, em termos de monumentos, o que mais me chamou atenção na cidade foram suas igrejas, que remontam a uma Odense mais antiga, medieval.
Para isso, nós precisamos voltar ao século XI, com uma história — agora da História com H maiúsculo — que, se não infantil, nos lembrará dos filmes de aventura medieval ou fantasia à là O Senhor dos Anéis.

Naqueles idos, o Reino da Dinamarca já era oficialmente cristão, mas o cristianismo ainda nada mais era que uma película imposta pelos reis e alguns nobres na população. (Afinal, era-lhes conveniente fazer parte do mesmo “clube” de monarquias europeias com quem realizar comércio e alianças, em vez de sofrer com cruzadas e guerras santas.)
A conversão oficial, a saber, se deu em 958 quando ascende ao trono dinamarquês Harald Bluetooth — o “dente azul” e, sim, a origem da alcunha da conexão bluetooth entre aparelhos móveis, daí seu símbolo ser uma runa (nunca percebeu?). Isso porque ele juntou povos na Escandinávia, trazendo as gentes da atual Noruega sob seu comando.

A população, todavia, ainda preservava muito das antigas religiões nórdicas e daquele espírito tribal de liberdade do tempo das navegações vikings (séculos VIII a X).
Só que o mui católico rei Canuto IV (1043-1086), futuro São Canuto, era um homem à frente do seu tempo. Queria uma sociedade como se veria depois pela Europa: monarquias centralizadas, coletas de impostos para cobrir os gastos, guerras e afazeres dos reis, etc.
Quando ele chegou ao poder em 1080, a Inglaterra havia há pouco (em 1066) expulsado os dinamarqueses de suas terras com a invasão do normando Guilherme, o Conquistador. Falei-lhes mais dele na visita a Rouen, Normandia, na França.
Canuto IV, entretanto, queria retomar a Inglaterra. Os normandos também eram estrangeiros, afinal. Ele começou então uma campanha de rígida coleta do dízimo usando os coletores de impostos da própria coroa, e instando os nobres e contribuírem recursos para uma invasão.
Quando esses não contribuíram, Canuto IV — talvez à maneira dos reis absolutistas do século XVI em diante — começou a confiscar posses das gentes daqui e dali em revanche, sobretudo das regiões do reino que não enviaram homens para lutar. Não prestou.

Victor Hugo dizia que nada é mais forte que uma ideia cujo tempo chegou. E talvez nada seja tão perigoso quanto defender uma ideia cujo tempo não chegou ainda.
Cheios do que viam como abusos do rei, as pessoas do reino rebelaram-se contra Canuto IV e seus familiares. Perseguiram-no até que o rei, seu irmão Benedito e alguns outros guerreiros leais acabaram refugiados aqui em Odense em 1086. Tentando instigar as pessoas a abrir mão desse levante contra a coroa, mas sem sucesso.
Aldeãos munidos de lanças e peões com espadas cercaram o rei no que era a Abadia de São Albano aqui em Odense, uma igreja de madeira agora sitiada pela turba. O rei achou que ali não se atreveriam a agredi-lo, mas isso se mostrou um engano. As pessoas não eram tão cristãs assim, e já estavam azedas pelo tal dízimo forçado.
“Isso é pela vaca que me roubaram!”, “Este é pelos meus cavalos que levaram embora!“, gritava o povo nas investidas, segundo os relatos. Tentaram atear fogo na igreja com o rei dentro, mas a chuva apagava as chamas — o que os cronistas católicos depois tomaram por auxílio divino.
Quando a plebe conseguiu adentrar a igreja, a batalha final se deu na própria nave central. O rei Canuto IV acabou morto a lanças e pedradas em pleno altar-mor — segundo alguns cronistas, no que me parece um certo toque de zelo, sem oferecer resistência.
A chuva caía e o sangue real corria pelo chão da igreja naquele 10 de julho de 1086 aqui em Odense, no priorado de São Albano. Foi um prato cheio para o que depois viria a ser tratado como o martírio de um santo. Historiadores mais tarde veriam um monarca centralizador que favoreceu a Igreja, chegando a usar os coletores de impostos do reino para cobrar o dízimo.


O finado rei Canuto IV foi enterrado pelos monges beneditinos ali no interior da própria antiga abadia de São Albano, que já não existe mais. Erigiria-se então uma catedral em seu nome ainda no século XI, mas que seria incendiada numa guerra posterior, até que de 1300 a 1499 fizeram esta atual catedral de tijolos. Nesta Catedral de São Canuto aqui em Odense estão seus restos mortais.






Não acho que os dinamarqueses hoje deem muita atenção a essas coisas — talvez um tinha tenham-no feito. Quem sabe os mais religiosos, mas estes aqui são uma minoria.
Eu daria ainda minhas breves voltas pela cidade, entre os parques, os bares e os restaurantes asiáticos aqui e ali. Preparava-me para, no dia seguinte, fazer um bate e volta até Aarhus, a segunda maior cidade do país, a ver o que ela tinha. Revejo vocês lá.
