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Dinamarca

Aarhus e a Dinamarca de outras eras

Bem-vindos a Aarhus [lê-se como se fosse Órrus], a segunda maior cidade da Dinamarca. Não parece pela foto, mas esta é uma cidade de 350 mil pessoas e que só fica atrás de Copenhague em tamanho. Hoje, ela é uma cidade estudantil pujante, mas que também guarda o maior e melhor centro histórico do país. Poucos visitantes se aventuram para além da capital danesa, mas a Dinamarca tem mais a oferecer.

Esse casario histórico que você vê na foto é a chamada Cidade Velha (Den Gamle By no original dinamarquês), uma espécie de parque temático com coisas reais. Não é exatamente um centro histórico no sentido convencional que costumamos imaginar.

No que tange seu passado medieval e do início da modernidade, os escandinavos têm uma abordagem diferente do restante da Europa. Eles gostam de museus a céu aberto para onde transportaram suas antigas edificações originais de madeira, e onde você paga uma tarifa para entrar, mas conta com pessoas vestidas em trajes de época, peças históricas na rua, e às vezes espetáculos culturais. Acaba sendo toda uma experiência. (Eu já lhes mostrei os semelhantes Parque Skansen em Estocolmo, na Suécia, e o Museu Norueguês de História Cultural em Oslo.)

Eu chegava a Aarhus vindo de Odense para ver um pouco dessa Dinamarca de outras eras — assim como para conhecer a cara desta “cidade estudantil” que é a segunda maior do país. Venhamos.

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Calçadão no centro da Aarhus contemporânea.
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A Dinamarca antiga também me esperava.
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A Dinamarca é distribuída assim em ilhas e na Península da Jutlândia, onde Aarhus está. A principal ilha é a Zelândia, onde fica Copenhague, e depois Funen, no meio, onde está Odense. (Essa Zelândia nada tem a ver com a Nova Zelândia, batizada assim em referência à homônima província holandesa da Zelândia. Quer dizer “Sea land”, terra do mar, então um nome comum para províncias costeiras nestes idiomas.)
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A vista desde o trem (1h30 de viagem) desde Odense, atravessando o mar de Funen à Jutlândia.

Aarhus hoje: minhas impressões ao chegar

Era um domingo de manhã, Aarhus pululando de gente. Setembro de sol não é algo a se dispensar na Dinamarca — ainda que o sol aqui seja fugaz. Talvez exatamente por isso. 

As cidades do norte europeu, nesta época do ano assim como por toda a primavera e o verão, têm uma tônica curiosa de todo mundo sair às ruas pedestrianizadas nos fins de semana. É como o shopping dos brasileiros, só que aqui ao ar livre. Há, afinal, um tempo mais ameno e a segurança de ter lojas como Prada e Gucci em plena rua.

Não havia Prada nem Gucci no calçadão em Aarhus, todavia, mas lojas simples e ordinárias de roupas, cafés com as pessoas sentadas à frente e bicicletas estacionadas. A indumentária das pessoas variava entre o verão tardio e o outono precoce — gentes de short, sapatênis e camisa curta, outras já de pulôver ou de jaqueta meia-estação — feito gatos de Schrödinger que você não sabe como estarão até vê-los. Ou talvez o gato aqui fosse o sol, que pode estar morto ou vivo a cada hora que você abrir a porta, só o sabendo por certo quando o fizer.

Em meio a tudo isso, os ricos prédios de tijolinhos do século XIX ou antes, tempos áureos e de dinheiro para a coroa dinamarquesa. Isto é, para os ricos, pois o povo naquele tempo vivia precariamente, e só com a social-democracia do século XX é que começaram a colher dos louros da riqueza desta nação — como veremos.

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Aarhus não é uma cidade turística. O grosso das pessoas que eu via na rua eram dinamarqueses — em grande parte os próprios moradores da cidade com suas bicicletas.
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Os calçadões são agradáveis, as igrejas antigas de tijolinhos quase sempre a despontar na vista.
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Os cafés e restaurantes ficam cheios enquanto ainda há tempo para se sentar agradavelmente do lado de fora — um luxo que aqui, em geral, só se permite de abril até setembro. Depois disso, ocorre, mas já não é a mesma coisa, nem há mais tanto sol.

Aquelas igrejas de tijolinhos marcando a paisagem da cidade hoje é o que há de mais antigo que vós vedes.

A Catedral de Aarhus é a principal delas, a mais alta igreja do país, com quase 100m de altura (96m para ser preciso). Sua construção gótica teve início no século XIV, ficando pronta em 1500. Iniciou-se como uma igreja católica, mas já em 1524 teve início da Reforma protestante por aqui. Em 1536, estabeleceria-se a Igreja da Dinamarca (de denominação luterana), que atualmente controla a catedral. 

O Teatro de Aarhus, inaugurado em 1900 no estilo romântico do Art Nouveau, é outro dos marcos que se destacam na cidade de hoje.

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A imensa Catedral de Aarhus, completada em 1500 num estilo gótico de tijolinhos característico do Mar do Norte.
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A parte da frente sob o céu de Aarhus, seus telhados de bronze já oxidados.
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O interior da Catedral de Aarhus, a mais alta da Dinamarca. Tem o típico interior luterano aqui dos Países Nórdicos, com paredes brancas e alguns ornamentos barrocos.
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Ainda que com peças em ouro, o altar é relativamente simples sob as arcadas ogivais.
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As arcadas em detalhes. Note os enfeites.
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O sempre destacado órgão das igrejas de denominação luterana no norte da Europa.
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Chamam a atenção também os afrescos de estilo medieval ainda preservados, realizados aqui entre 1470 e 1520.
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A figura do Cristo na sua Paixão, trespassado pela lança.
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O Teatro de Aarhus, inaugurado em 1900 no estilo Art Nouveau, predominante na Europa da época. (A Melancholia que você lê ali é uma peça que estava em cartaz, adaptação do filme homônimo do diretor dinamarquês Lars von Trier.)

Sendo domingo, as pessoas circulavam em grande número pelas ruas e calçadas do centro, sobretudo no chamado Bairro Latino, onde eu me detive para almoçar. 

Esse Bairro Latino de Aarhus é supostamente onde se concentra a vida boêmia da cidade — seus cafés, restaurantes mais descolados etc., em meio ao casario mais antigo da cidade. Essa denominação, na verdade, é recente. Data apenas dos anos 1990, quando se inspirou a emular o homônimo Quartier Latin de Paris. (Esse, por sua vez, recebe essa alcunha porque é onde fica a Sorbonne, e ali os universitários nos séculos XIII a XVII estudavam em latim.)

O de Aarhus é notavelmente mais humilde — desnecessário dizer —, mas não deixa de ter uns lugares legais. Eu comi na Piccolina o que provavelmente foi das melhores pizzas que já comi no norte da Europa. Eu disse ao simpático garçom italiano que me atendeu que havia sido a melhor que já comi na Dinamarca, ao que ele ficou ligeiramente encabulado. “A gente sabia que era a melhor em Aarhus, mas na Dinamarca… obrigado!

Eu precisava, afinal, de energia e alegria para ir finalmente explorar Den Gamle By no que é o parque com a Dinamarca de outras eras, e comida dinamarquesa é igual à sueca, que eu já como todo dia em Estocolmo (peixe, pão, manteiga, batatas cozidas ou em purê, ou almôndegas). 

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Café de esquina no Bairro Latino (Latin Quarter) de Aarhus, na Dinamarca.
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Pessoas, bicicletas e calçadões no centro.
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O Bairro Latino de Aarhus emenda-se com ruelas algo comerciais — mas pouco turísticas — no centro.

Eu tomei rumo — não há foto da pizza porque acho que estava com muita fome —, e nisso o tempo começava a virar. Senti bater aquele vento suspeito, as nuvens a se apressar no céu, e eu aqui na terra a tentar me apressar mais que elas. 

Não deu. Após eu passar por vetustas paredes medievais de tijolos d’alguma outra igreja, desemboquei num parque onde havia música ao vivo — programão de domingo à tarde num setembro dinamarquês, as pessoas a comprar copos de cerveja no quiosque e a se balançar à maneira nórdica (não muito) ao que víamos de pé e sob chuviscos uma banda jovem se apresentar no palco montado.

Eu achei uma árvore onde não tomar tanto dos pingos e tentava segurar a injúria pelo tempo ter virado. Os dinamarqueses pareciam indiferentes à chuva (mas a esta altura, já aprendi que não se trata completamente de indiferença — é ela mesclada com resignação e pouca expressão dos sentimentos). 

Por sorte, ela não demorou muito a se enfraquecer, e eu tomei meu rumo sem deixar antes disso de passar pela rua mais singela de toda Aarhus: Møllestien. (Esse ø se lê como se fosse œ, aquele misto de ô com ê. Tentem em casa.)

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O restinho de azul do céu e a edificação antiga de tijolos. Esta é a católica Igreja de Nossa Senhora, de 1250.
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Sentindo-me meio Viking ambientado.
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O show de domingo no parque em Aarhus, Dinamarca.
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Møllestien, provavelmente a mais formosa rua em Aarhus.
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Trata-se de uma longa e estreita rua de casinhas pitorescas.
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Parece de brinquedo, mas aí moram pessoas.
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Os recantos da Europa que parecem saídos de fábulas infantis. (Na verdade, foi o contrário: fábulas infantis como as de Hans Christian Andersen foram inspiradas nestes ambientes reais.)

A Aarhus de ontem: Den Gamle By

Este parque da Cidade Velha (Den Gamle By) se presta a mostrar a vida dinamarquesa da população em três períodos distintos do passado: 1864, 1927 e 1974. A quem viveu 1974 e porventura se sinta velho por essa realidade agora virar exposição, saiba que o parque está terminando de inaugurar a seção 2014 também — e breve a realidade de todos nós se tornará material de museu, é incontornável.    

Eu cheguei sob os respingos no que se provou uma entrada bem despretensiosa do parque. Já os preços aqui nos Países Nórdicos nunca são despretensiosos (você paga 160 coroas dinamarquesas por um ingresso adulto, o equivalente a cerca de 22 euros, comprando no site oficial ou pessoalmente na bilheteria — não precisa reservar). É meio salgado, mas é uma ocasião. Aqui neste parte da Europa, se você tiver o punho fechado demais, não faz nada ou quase nada.

Adentrei então pelo que eram ruas dos idos de 1864 — que você talvez até interpretasse como sendo de uma época ainda mais antiga, mas é que a cara da Dinamarca nesse período não era lá tão diferente do que havia sido em 1700 ou 1600. A vida do povo era simples, com carroças, vida aldeã rural e casas de armação de madeira.

O mais legal é que, além de ser tudo original, você tem espaços como a padaria onde realmente há pessoas vestidas nos trajes da época (ainda que elas não atuem como se fossem personagens, mas podem lhe explicar como eram as coisas) e onde se pode comprar mesmo alguns quitutes.

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Bem-vindos ao Den Gamle By, a cidade velha dos dinamarqueses em Aarhus.
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As nuvens de chuva ainda à espreita, e eu com o ingresso já no interior do parque.
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As ruas com o casario de enxaimel (estas armações de madeira), característico de muito da Europa germânica, o transportam logo a uma outra época. Até o século XIX, a paisagem urbana dinamarquesa era muito assim.
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Barris e janelas, os visitantes a passear.
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Nesta padaria eu comprei um biscoitinho amanteigado de amêndoas, daqueles que você vê na janela.

Escondi-me ali um pouco, e o chuvisco logo passou. A roda da fortuna não para de girar.

Eu continuei a circular por aquela Dinamarca de 1864, e vi mais alguns interiores. O mais notável mesmo era notar como eles foram pobres. Tive que admitir ter realmente sido influenciado por exibições, filmes e obras outras que me mostraram demais a Europa dos ricos e de menos a Europa dos pobres, como se estes tivessem deixado de existir após o medievo.

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Representação de uma menina numa casa de Aarhus do século XIX.
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O menino com preguiça de levantar da cama para iniciar a jornada, ele um jovem aprendiz de sapateiro.
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Este interior de sapataria dinamarquesa data de 1850. Não era raro que estes homens de ofício — a classe média da época — tivesse seus aprendizes e ajudantes.

A Europa no século XIX era mais parecida com o Brasil de hoje do que se imagina. Os índices de desigualdade eram semelhantes (coeficiente de Gini, que mede a distância entre as fatias mais rica e mais pobre, era na casa dos 0.6. Quando mais perto de 1, mais desigual. Os países nórdicos hoje estão na casa de 0.3).

Foi somente com as sociais-democracias instauradas após a debacle da Primeira e Segunda Guerras Mundiais, com políticas distributivas como uma taxação progressiva e um Estado de bem-estar social, que a coisa começou a virar. Ou seja, não foi mérito individual, como naquele culto do esforço próprio, mas um mérito coletivo por a sociedade reconhecer que o país precisava funcionar para todos os seus cidadãos e não apenas para uma aristocracia. 

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Você pode passear de carroça e sentir como era naquele tempo.
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Casa de época em Den Gamle By, Aarhus.
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O sol abriu, e se podia ver o reflexo das casas de madeira na água. Não eram todas residências, mas também estábulos, moinhos de água, pequenas fábricas, etc.

A vida na década de 1920 não muda tanto. Sim, Aarhus é agora uma cidade moderna, com eletricidade, algumas lojas e os primeiros automóveis, mas ainda notei aquele ar “de época”, bem distinto da nossa contemporaneidade.

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Ruas pavimentadas, e a cidade já com seus primeiros lampiões na Aarhus de 1927.
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Lojas e vitrines naquela cidade do entreguerras.
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Interior de uma mercearia dos anos 1920 na Dinamarca. (Ali não são manequins, são pessoas de verdade.)

É na parte dos anos 1970 que a coisa realmente muda de figura. Eu não vivi aqueles tempos, mas já passou a ter o cheiro do Brasil da minha infância, com fuscas, televisões grandalhonas e lojas de fita cassete. O ambiente do parque muda completamente — e eu tenho certeza de que o tiozão na loja de televisões, com preços da época (!), viveu aqueles tempos pessoalmente quando era jovem.

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Rua da cidade de Aarhus em 1974. Já é outra atmosfera.
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A loja de televisores com o vendedor aqui de azul que tinha toda a pinta de ter conhecido muito bem — quem até sido vendedor numa — naqueles tempos. Note nas prateleiras também as radiolas onde tocar disco de vinil.
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Eu não sei se estes números são valores atualizados pela inflação ou não, mas o equivalente deste valor seriam R$ 3.850 por esta televisão aqui na década de 1970 (!).
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A loja de discos de fitas cassete, de antes de existir o CD.
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O fusca, talvez um dos maiores símbolos dessa década no Ocidente.

Era divertido ver aquilo tudo. Se quiser, você se entretém em detalhes com cada item ou exposição. Acho que os mais nostálgicos serão capazes de passar horas só nesta parte. Quem sabe o que dirão as crianças em 2030 da nova parte acerca de 2014. (Tampouco sei por que escolheram 2014. Vai ver é porque foi antes da acolhida em massa de refugiados em 2015, que influenciou bastante as coisas de lá para cá em países como Dinamarca, Suécia e Alemanha. Espero que não idealizem esse status quo ante.)

Eu, nesta década de 2020, retornaria agora à estação de trem de Aarhus para regressar à minha humilde residência temporária em Odense. De lá, eu no dia seguinte rumaria para ver um dos lugares mais emblemáticos da História da Dinamarca: Helsingør e seu castelo de Kronborg, a versão da vida real que inspirou a Elsinore de William Shakespeare, de onde um dos amigos de Hamlet emitiria o famoso “há algo de podre no Reino da Dinamarca“. Veremos.

Por aqui, eu sei que há algo de belo — ainda que este belo com contornos nórdicos que divide gostos e opiniões. A quem sentiu falta, eu deixou vocês com o vídeo que fiz durante o chuvisco no parte da banda de mulheres a tocar. Há certas belezas menos controversas que outras.

Quem sabe uma delas não é tataraneta da menina camponesa pobre retratada em 1864.

Mairon Giovani
Cidadão do mundo e viajante independente. Gosta de cultura, risadas, e comida bem feita. Não acha que viajar sozinho seja tão assustador quanto costumam imaginar, e se joga com frequência em novos ambientes. Crê que um país deixa de ser um mero lugar no mapa a partir do momento em que você o conhece e vive experiências com as pessoas de lá.

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