“Ser ou não ser, eis a questão“. “Há algo de podre no Reino da Dinamarca“. E, uma das minhas favoritas, “Há mais coisas entre o céu e a terra do que sonha a nossa filosofia“, que no original nunca teve a palavra “vã”, invenção do tradutor (traduttore, traditore — tradutor, traidor — como dizem os italianos), pois que a filosofia nunca foi vã, e que se você puser no Google verá que as pessoas procuram achando que é da Bíblia.
Tudo isso são frases tiradas de Hamlet (1603), uma das peças mais famosas do inglês William Shakespeare (1564-1616), um dos maiores poetas de todos os tempos.
Mas por que Shakespeare falava da Dinamarca e não da Inglaterra? Hamlet, o personagem central da peça, era um príncipe dinamarquês, não inglês. Nada da obra se passa na terra da então rainha Elizabeth I (que nada tem de parentesco com a recém-finada Elizabeth II, exceto que esta foi a segunda do seu nome no trono inglês). Tudo de Hamlet se dá em Elsinore, que é como os ingleses chamaram Helsingør, esta cidade da Dinamarca onde estamos hoje e onde fica o Castelo de Kronborg, a inspiração shakespereana da vida real.
Já pensaram em conhecê-lo? Chegou o dia.



Helsingør, Dinamarca
Helsingør é uma cidade histórica por seu próprio mérito, independentemente do que Shakespeare veio a situar aqui.
Estamos numa ponta da ilha da Zelândia (a maior da Dinamarca), onde fica a capital Copenhague. Aqui diante de nós fica o Estreito de Øresund, que nos separa da Suécia. Logo a norte fica o pequeno mar conhecido como Kattegat, e próxima a Copenhague mais a sul a Ponte de Øresund (8Km) fazendo a estreita conexão por terra com a Suécia. Só que aqui em Helsingør a distância é ainda menor, de apenas 4Km entre Suécia e Dinamarca.
Noutros tempos — nos tempos em que se dá a trama de Hamlet e em que foi construído este castelo —, ambos os lados do mar pertenciam aos dinamarqueses, que tinham fortificações lá e cá, e cobravam impostos de quem passava.


O Reino da Dinamarca já foi muito mais poderoso do que é hoje. No século XV, teve talvez o seu apogeu com a União de Kalmar, quando em 1397 todo o mundo nórdico ficou sob o mando dos dinamarqueses, até a Suécia se libertar 1523. Você pode ler mais sobre esse período na postagem da minha visita à cidade de Kalmar.
Mesmo após o fim da União, a Dinamarca se manteve preponderante na região. Seus domínios no século XVI — quando nasceu Shakespeare e quando este Castelo de Kronborg foi construído — ainda incluía toda a costa ocidental da Suécia (inclusa aí a cidade de Gotemburgo), a Noruega e a Islândia. Aos poucos é que o poder da Dinamarca iria encolhendo, passo a passo.


Essa luz que você vê na foto acima — cá já na rua, fora da ilustração — era o sol de um domingo de outono aqui na Dinamarca. Tendo já visitado Odense e Aarhus, transferi-me para Copenhague e de lá tomei um trem regional até Helsingør. Esse trem custa menos de 10 euros cada trecho (66 coroas dinamarquesas), e não há a mínima necessidade de reservá-lo com antecipação.
Tampouco há a necessidade de pernoitar em Helsingør, que é hoje uma cidade bastante pequena. Um bate e volta vindo de Copenhague fica perfeito. O trem zarpa a cada meia hora ou a cada 15 minutos, a depender do horário do dia, e o percurso leva meros 50 minutos.

Helsingør faz bem o estilo “Mar do Norte” das estações ferroviárias desta parte da Europa. Lembra muito as estações holandesas, que têm essa mesma arquitetura rebuscada, verticalizada, e com base em tijolinhos. Esse estilo você encontra desde a Bélgica (ver Bruges) até a Polônia (ver Gdansk) e a Letônia (ver Riga).
Sendo domingo à tarde, havia algum movimento. Desembarquei e passei por ruas largas e vazias à borda da estação, daquelas onde você nem precisa esperar o sinal para atravessar. Um carro ou outro passava isolado. Passava muito mais intensamente o vento, a brisa ligeiramente fria soprando do mar a contrabalançar o sol. Uma ou outra pessoa passava pelas ruelas que levam ao centrinho histórico, alguns tomando sorvete. Neste interior da Dinamarca, isto é movimento.

Eu procurei ver o que havia na cidade neste centro antes de rumar para o Castelo de Kronborg e mergulhar nas coisas de Hamlet.
Helsingør hoje não tem exatamente muito. No seu centrinho de seus 500m x 300m e apenas um par de ruas cruzando-se em cada direção, há naturalmente um “Hotel Hamlet”, mas o que há de mais histórico para ver são duas igrejas: a Catedral de São Olavo (atualmente luterana) e a Igreja de Santa Maria com seu antigo mosteiro do século XV.
A Catedral de São Olavo é da mesma elegância renascentista das igrejas que eu lhes mostrei recentemente em Aarhus e Odense. Segue aquele padrão luterano, também encontrado na Alemanha, de interiores brancos com ornamentos barrocos e um órgão. De modo mais geral, é a arquitetura gótica de tijolinhos que também se vê nas igrejas católicas do norte da Polônia.






Logo ali, pertinho desta catedral, eu encontrei na rua o primeiro sinal de Hamlet na cidade.

A obra de Hamlet tem um quê dramático, não resta dúvidas. A tônica geral da trama é que o jovem príncipe Hamlet retorna dos seus estudos à corte para descobrir que seu pai (o rei) foi morto, e que sua mãe (a rainha) agora é casada com seu tio, irmão do finado rei, que herdou a coroa. Daí você deduz por que é que o cara se pergunta se a vida vale ou não vale a pena — imagina chegar em casa com uma notícia destas?
Alguém então lhe sussurra que foi essa uma morte matada para usurpar o trono, e Hamlet ele próprio é o próximo da lista. Tens aí o
Antes de seguirmos adiante nisso para conhecer também o castelo, deixem-me apenas lhes mostrar o antigo Mosteiro de Santa Maria, que foi o único lugar da cidade onde vi turistas estrangeiros — um grupo de japonesas jovens. Todavia, o lugar era um quieto ermo, suas paredes exalando história para ninguém, como um fóssil de outra era.






Como a igreja em si estava fechada, tomei rumo finalmente para o castelo.




Hamlet e o Castelo de Kronborg
Bem-vindos de volta ao século XVI, quando este lindo castelo foi erigido. Ele substituiu uma fortificação mais antiga, dos idos de 1420, feita aqui quando o rei dinamarquês Eric da Pomerânia (1381-1459) começou a cobrar pedágio real a quem passava por este estreito.
“Eric da Pomerânia” recebia essa alcunha de forma pejorativa, para destacar que ele não era escandinavo — e que portanto não merecia a coroa. Ele provinha da região polonesa e germânica da Pomerânia na outra costa do Mar do Norte, e acabaria destronado e mandado para lá. Mais sobre ele você lê na nossa visita a Kalmar.
À altura de 1574, o então rei dinamarquês Frederico II (não confundir com Frederico II da Prússia de 200 anos depois) dá início à substituição daquela fortaleza medieval por um portentoso castelo renascentista — uma tendência que se difundia Europa afora. Vejam como exemplo os vários castelos franceses no Vale do Loire, que são desse período.
Os castelos agora na Renascença precisavam ser belos, agradáveis de estar, artísticos. Passada estava a época medieval das frias e nuas fortalezas de pedra. Entretanto, tampouco estávamos ainda na época dos palácios como Versailles (1631), já totalmente dedicados ao luxo e sem função defensiva, portanto os castelos renascentistas ainda têm muralhas.




Shakespeare nunca veio cá a Helsingør (que ele chamou Elsinore), mas conheceu pessoalmente na Inglaterra vários nobres dinamarqueses que viviam aqui e viajavam a Europa. Sua obra Hamlet, na verdade, inspirou-se muitíssimo num conto medieval dinamarquês de um jovem (Amleth) da Jutlândia que procura vingar seu pai. A semelhança de nome não é casual.
Naqueles idos de 1600, a Inglaterra em si não era lá esse balaio todo. Poderosos eram a França, a Espanha (que havia acabado de absorver Portugal na União Ibérica), os turcos otomanos, e mais perto de casa se contavam as lendas da poderosa monarquia danesa neste Mar do Norte. Eram a inspiração perfeita para um drama sobre uma monarquia em decadência.
Na obra, os sentinelas Bernardo e Marcelo começam a avistar um fantasma pelo castelo após a suspeita morte do rei, que é quando Marcelo solta o famoso “há algo de podre no reino da Dinamarca“, ainda no primeiro dos cinco atos da peça.
Eu não vou contar aqui a peça inteira, mas digo que é uma verdadeira tragédia grega situada na Europa renascentista. Não esperem final da Disney nem de novela da Globo.

Eu cheguei e me juntei a um Tour do Castelo de Hamlet em inglês, que ocorre várias vezes ao dia e já incluso no preço da entrada. Os horários variam de acordo com a época do ano (e, em algum momento, os preços também vão mudar), então melhor ver isso no site oficial.
O tour não é um recontar da obra — afinal, ele é sobre o castelo de Hamlet —, mas põe você naquele ambiente, e mostra os principais lugares de Kronborg (que você também pode visitar por conta própria, se preferir).



Após superar a ideia da ave inteira à mesa, note as tapeçarias lá ao fundo. São o que há de mais bonito em Kronborg.
As tapeçarias — a serem usadas na parede, não no chão como tapetes — são peças ornamentais que ganharam imensa popularidade nos fins da Idade Média (1350) e início do Renascimento na Europa.
São uma influência claramente oriental, não do Oriente distante, mas do Oriente médio e próximo, adotada pelos bizantinos e depois abraçada pelas cortes da Europa Ocidental. Só depois é que teremos a ascensão dos quadros pintados como forma preferencial de decoração.




Esse salão e praticamente o castelo inteiro que vi hoje são fruto de uma reconstrução pós-incêndio ordenada por Christian IV em 1629. O estilo geral, porém, se manteve o mesmo. Apenas a capela escapou do fogo e ainda é a original.



Christian IV (1575-1648) ainda hoje é o rei escandinavo que mais tempo passou no poder: 59 anos e 330 dias. Seu reinado foi o clássico período renascentista dinamarquês, com atenção às artes, às festas e às regalias que caracterizariam as monarquias europeias até eclodir a Revolução Francesa em 1789.
Ele, que tinha a atual Noruega como parte dos seus domínios, chegou até a rebatizar Oslo como Christiania em sua própria honra, nome que a cidade carregou até 1925.
Christian IV, porém, torrou a economia dinamarquesa na Guerra dos Trinta Anos (1618-1648) entre católicos e protestantes — a Dinamarca do lado protestante. Resultado foi que a decadência já apontada em Hamlet (1603) teve seguimento, com a vizinha Suécia agora em ascensão. Em 1658, os suecos cercariam e conquistariam este Castelo de Kronborg.
Foi nessa ocasião que muitas obras de arte — e a fonte no pátio com o Netuno rei dos mares — foram pilhadas e levadas embora pelos suecos. A Dinamarca perderia a região da Scania, que compõe hoje o sul da Suécia, perderia também a Noruega para os suecos (até a independência norueguesa em 1905), e nunca mais seria a potência preponderante na Escandinávia — exceto talvez no futebol com a “dinamáquina” dos anos 80.

Eu não me banhei — nem ninguém —, pois mesmo no fim do verão esta água é gélida. Mas há dinamarqueses e suecos que o fazem o ano inteiro (“bom pra a saúde”). Nós hoje só olhávamos para aquele mar de azul intenso e ar muito pouco convidativo.
Deixando este perímetro do castelo, eu ainda circulei um pouco pelas antigas instalações militares que construíram aqui no século XIX — umas casinholas coloridas sem muito a dizer —, e desci também ao subterrâneo do castelo, onde se vê uma portentosa imagem de uma figura medieval dinamarquesa, a fazer parecer que você está em alguma cripta saída de Game of Thrones.




Eu não posso dizer que um dos países com os melhores índices socioeconômicos do mundo tenha decaído ou “apodrecido” tanto assim — mas já não é mais aquela referência de monarquia que um dia foi, no tempo de Shakespeare. Em tempo, seria a Inglaterra a dar o tom, e as monarquias escandinavas a seguirem-na.
A obra de Hamlet ficou aí imortalizada — segundo alguns, a peça mais encenada em toda a História da humanidade. Talvez compita com Romeu e Julieta, do próprio Shakespeare.
Suas falas e linhas continuam a infundir a cabeça das pessoas sem elas nem saberem a origem. Um exemplo é a observação agora em voga de que algo não é maluquice, é método. “Embora seja loucura, nela há um certo método” (Hamlet, Ato II).
Fica aqui esta visita ao local e contexto que inspiraram o ensaísta inglês. Eu agora deixaria a Dinamarca, tomando outros mares. Deixo vocês com o trecho inteiro do “ser ou não ser”, que poucos conhecem, em que Hamlet contempla o suicídio mas pondera que a morte, também ela, deve guardar segredos e tribulações que desconhecemos, daí optarmos por tolerar as coisas da vida e seguir em frente.